DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

FANTASIAS

          12.  FANTASIAS
   Numa postagem anterior, falei da minha paixão à música, tanto bossa nova como jazz e, especialmente, música chamada clássica ou erudita. Contudo, a música foi, e talvez ainda seja, a maior frustração da minha vida. Explico porquê.
   A minha irmã Isabel (a mais velha e a única mulher dos cinco irmãos), estudava francês em casa, piano e não sei o que mais, ou seja, professoras a domicílio, como era a norma das famílias burguesas dos anos trinta. Pois bem, quando ela chegou ao sexto ano teve que estudar harmonia, certamente fora das atribuições da gorducha e simpática senhora que ia lá em casa lecionar piano, acho que duas vezes por semana. A solução foi a minha irmã matricular-se na Academia dos Amadores de Música, então na Rua António Maria Cardoso (hoje na Rua da Misericórdia).
  Mas, como uma menina de boa família na época não podia andar sozinha na rua, pois a vizinhança torceria o nariz a essa audácia e falta de decoro, lá fui eu escalado para a acompanhar no trajeto para a Academia. Eu, o terceiro dos irmãos, com apenas oito anos, como se um frangalhote pudesse ser um respeitável guarda-costas. Morávamos na Rua Quatro de Infantaria, a um quarteirão da Ferreira Borges e a dois da Silva Carvalho, onde apanhávamos o elétrico, que nos deixava exatamente na porta da Academia.
  Como eu ficava sem nada que fazer enquanto decorriam as lições da minha irmã, inscrevi-me no primeiro ano de piano e, em pouco tempo, a professora estava entusiasmada com o meu progresso e afirmava à minha irmã que eu tinha muita vocação. Um dia, o diretor da Academia passou casualmente na sala onde eu tocava, interessou-se em saber quem era eu, perguntou-me se eu tinha linhagem musical, não, não tinha. Saiu da sala para logo voltar com alguns dos seus alunos de anos mais adiantados para eles “verem como se colocavam os dedos no piano!”. Até hoje não sei como era, mas o certo é que ele, mais de uma vez, voltou a exibir a minha perícia ou habilidade.
  Por esta razão, fiquei bastante convencido que a minha vocação e vida futura seria a de pianista, claro de grande sucesso, e via-me de fraque, em maravilhosos palcos de todas as grandes cidades culturalmente de renome a ser entusiasticamente aclamado pelo público. Em casa praticava bastante, primeiro num pianinho caquético que havia sido da minha irmã, mas depois, atrevido, avancei para o belo Steinway, a melhor marca de pianos, pelo menos então, que o meu pai tão benevolentemente comprara para a Isabel.
   De quando em quando, era necessário afinar o piano, como é da praxe. Aparecia então um afinador, cego, vindo do Instituto Feliciano de Castilho, mesmo em Campo de Ourique. Ele vinha sozinho pelos passeios, atravessava as ruas, é certo que havia pouco movimento de carros. Andava devagar e com cuidado servia-se de uma bengalinha branca, equipada por uma sineta como a das bicicletas, com a qual ele alertava outros transeuntes e rompia a espessa escuridão dos seus passos. Angustiava-me vê-lo assim tão desprotegido, parecia-me um passarinho caído do ninho, tanto que, por vezes, quando ele saía lá de casa, segui-o para o acompanhar naquele passeio cego e incauto pelas ruas, em vez de mais inteligentemente lhe dar o braço e conversar com ele, mas tinha receio que ele se ofendesse.
   Lá em casa, ao afinar o piano, ele premia uma tecla de cada vez, esticava o pescoço e virava a cabeça para o alto, como que a perseguir no ar a nota emitida. Premia a tecla mais umas vezes, sempre a perseguir no espaço, para ele apenas densa escuridão, o som ideal. Ficava muito tempo nesta afinação, o que irritava alguns lá em casa, mas ao contrário a mim enfeitiçava-me. Eu queria atinar como ele ouvia, a mim mais parecia que os ‘via’, aqueles sons, e como os adestrava. Um dia, atrevi-me e perguntei-lhe o que me intrigava há muito, se ele via cores diferentes conforme as notas. Ele ficou algum tempo calado, o que me levou a pensar que ficara zangado comigo, mas depois muito delicadamente perguntou-me porque eu lhe fazia aquela pergunta, “não sendo eu cego”. E continuou, que sim, via cores conforme as notas, e a tonalidade, conforme soava mais forte ou mais fraca, ajudava-o a afinar o piano. Não terá sido assim exatamente que ele me falou, mas foi assim que entendi. Quando lhe falei que também via cores ao ouvir música de olhos fechados ele manifestou espanto e sorriu, como quem encontra um parceiro simpático. Pela primeira vi um sorriso naquele rosto tão triste.
  Na realidade, eu gostava de ouvir música deitado e de olhos fechados. Não tardava a sinfonia de sons que ouvia a rivalizar com a de cores que via, o que me divertia muito. Por isso, naquele momento, senti uma grande identificação com aquele cego, já tão velhinho, ou o era só aparentemente, penso agora, um senhor tão competente e tão misterioso que deixava o Steinway afinadíssimo.
    O que é curioso é que passados não muitos anos, no início da Segunda Grande Guerra, Disney lançou nos ecrãs de cinema Fantasia, um filme extraordinário que eu vi mais de uma dúzia de vezes. Apresentava oito peças musicais de grandes compositores, e criava histórias com pessoas e animais adequadas à música, em uma ou duas só com cores. Direção musical da Orquestra de Filadélfia pelo renomado maestro Leopold Stokowski.
   Apenas para informação, as músicas eram: “Tocata e Fuga em Ré Maior”, de Bach, “Uma Noite no Monte Calvo”, de Mussorgsky, “Suite Quebra-Nozes”, de Tchaikovsky, “Sinfonia Pastoral”, de Beethoven, “Sagração da Primavera”, de Stravinsky, “Dança das Horas”, de Ponchielli, “O Aprendiz de Feiticeiro”, de Dukas e “Ave Maria”, de Schubert.
  Apesar da sua beleza, teve críticas verdadeiramente idiotas, o filme não fez muito sucesso inicialmente, e só a partir de 1960 é que passou a ser tão apreciado quanto merecia. Felizmente em 2000 foi lançado em DVD, para minha alegria e de muitos milhares de melómanos.
  Mas, voltando ao afinador. Não sei a razão por que, enquanto o mirava na sua persistente busca dos sons, eu aliava o seu trabalho com o que se contava sobre o genial Beethoven, surdo, surdíssimo, que para compor tocava nas teclas do piano com a mão esquerda, enquanto encostava o ouvido no piso, e talvez a mão direita, para, imaginem só, pelas vibrações das tábuas alcançar a leitura da sua própria partitura. E eu, miúdo tonto, perguntava-me: “Será que aquele compositor, sem dúvida um dos maiores de todos os tempos, também via cores quando premia as teclas?” Quem sabe, talvez o dó em vermelho, quem sabe se o ré em rosa, porque não o mi em azul?
  Ao escrever estas linhas resolvi fazer uma experiência. Afundei-me na poltrona enquanto ouvia, de olhos fechados, durante algum tempo, a magistral interpretação de “The Art of the Fugue”, de Bach, por Glenn Gould. Adorei, mas não, não vi cores. Há muito que não fazia esta ‘entrega’. Afirmei que via cores ao ouvir música, quando jovem, em casa dos meus pais, e lembro bem que ficava estendido num divã junto das janelas da marquise que continuava a sala de jantar. Era lá que se encontrava a ‘telefonia’ barata, de marca Pilot, branca, que irradiava a Emissora Nacional, com programas de música clássica. A marquise era totalmente envidraçada e o Sol banhava o meu rosto, talvez por isso a razão das nuvens coloridas que me alegravam. Ou talvez, com a idade e falta de prática, tenha perdido essa maravilhosa faculdade. Seja como for, foram e serão momentos inolvidáveis para mim.

  Fiz o primeiro e o segundo ano de piano com bom aproveitamento e elogios da professora. No final do segundo ano, como é habitual, aconteceu um recital especialmente para os pais dos alunos dos vários anos. A minha professora, que tinha uma filha a aprender piano paralelamente comigo, teve a ideia luminosa de nos apresentar a tocar em conjunto, creio que uma valsa de Chopin. Começámos com desenvoltura, tínhamos ensaiado muito, até que a coleguinha se enganou. Eu, em vez de continuar a tocar, para dar a oportunidade de ela retomar o acompanhamento, parei, levantei-me do tamborete furioso e vociferei: “Eu bem sabia que não devia acreditar em mulheres de olhos verdes!” Foi uma gargalhada geral e, certamente, o ponto alto e mais divertido da apresentação. Devo dizer que a professora nos incitou a repetir e, dessa vez, tudo decorreu bem.
  Passaram-se oitenta anos, sim oitenta, e até hoje não consigo explicar a razão da minha sanha contra os olhos verdes, de que eu nem sequer tinha conhecimento. Felizmente que no decorrer da minha vida adorei e amei alguns olhos dessa bela cor.

  Comecei este texto a falar em frustração. Explico. Quando entrei no primeiro ano de Liceu, no Pedro Nunes, tinha então dez anos, inscrevi-me também no terceiro de piano na Academia. No final das aulas, à tarde, quando eu dizia que ia ter lições de piano, a chacota era geral, chamavam-me de maricas e outros nomes pouco simpáticos. A verdade é que naqueles anos os jovens não tinham a idolatria do rock, pois nem existia, os meus colegas desconheciam os grandes intérpretes de jazz, e para eles o piano era apenas para meninas. Os ‘machões’ não tocavam piano.
Fui dizer à minha professora que queria desistir do curso e expliquei-lhe as razões. Ela levou-me ao diretor que tentou convencer-me a continuar, mas eu estava inflexível, o meu prestígio masculino estava em jogo. O diretor sugeriu o violino, e lá fomos conversar com o professor deste lindo instrumento, que tanto apreciava e que continuo a adorar. A desilusão foi grande quando ele falou que, naquela idade, apesar de apenas dez anos, segundo ele, eu nunca conseguiria a flexibilidade necessária dos pulsos para ser um bom violinista. Desta forma, nem piano, nem violino, tão pouco tambores ou flauta lisa para encantar incautas, como na Mitologia. Desisti.
  A partir daí fui apenas ouvinte, um entusiasta e perseverante ouvinte, com muita alegria e uma boa coleção de CDs. Mas, lá no mais profundo do meu coração, quando ouço um Horowitz, um Glenn Gould ou um Pollini, Ashkenazy ou Argerich, sinto uma dorzinha no peito. Mas logo me conformo e grito para mim mesmo: “Não sejas parvo, aproveita enquanto podes ouvir com deleite estes maravilhosos intérpretes ou outros. Tu nunca serias um bom pianista, acredita!”
 Então, serenamente, coloco Maria João Pires a interpretar magistralmente os “Noturnos” de Chopin e o mundo volta a sorrir-me. Sou um felizardo.
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domingo, 26 de outubro de 2014

ROMANCE DE AMOR?


11.ROMANCE DE AMOR?
 Na última quinta-feira (23/10) fizemos um novo lançamento dos meus dois livros recém-publicados, no simpático espaço ‘Âmbito Cultural’, do El Corte Inglés, em Lisboa, uma sala ampla e com uma vista estupenda que o El Corte Inglés disponibiliza, gentilmente, para lançamentos de livros e outros eventos culturais. Além de ter adorado essa sala, apreciei muito a competência e amabilidade dos funcionários que se ocupam desta área, Ana Neves e João Faria. É maravilhoso colaborar com pessoas como eles.
   Tinha pedido ao meu amigo e excelente editor Carlos Veiga Ferreira, que, como é sabido, há alguns anos criou a conceituada Teorema, e que em 2008 a vendeu para a Leya, mas que, apesar disso, continuou à frente dessa editora. Porém desiludiu-se com a situação geral e resolveu sair e criar a Teodolito, para alegria dos bons leitores, pois continua a editar muitos dos seus anteriores autores e outros igualmente bons.
Veiga evocou as boas relações que mantinha com os meus irmãos Rogério e Rui, também editores, e lembrou que me conheceu na Feira de Frankfurt, onde eu e os meus irmãos éramos conhecidos por ‘Os Três Mosqueteiros’, quando lá nos encontrávamos, eles vindos de Lisboa e eu do Rio, pois então não podia visitar Portugal, por em tempos idos ter cometido o crime de… ser antissalazarista.
   Há um ano atrás, enviei ao Veiga um exemplar, em edição digital, de O Contador de Estórias, que ele nesse dia elogiou no seu conjunto e depois comentou conto a conto, com a inteligência e o humor que lhe são peculiares. O que, claro, me agradou imenso, já que ele não é um homem de pronunciar palavras não sentidas e é, sem dúvida, um rigoroso crítico literário. Haverá alguma benevolência graças à nossa amizade, mas foram para mim um estímulo, e por isso lhe agradeço.
  Desta forma, quando me coube falar, tentei explicar que sempre escrevi, mas apenas mentalmente, raras vezes fiz um rascunho, e os que porventura fiz, evaporou-os a voragem do tempo. A minha vida muito ocupada com as editoras que tive, em certos períodos com muitas dificuldades que me tiravam o ânimo, em outros, de situação folgada, que me proporcionavam ocupar o tempo em viagens e outros prazeres, como as amizades e eventos culturais, afastavam-me da escrita. Por outro lado, tinha que cuidar de quatro filhos e, ainda, de uma fazenda grande, em Teresópolis, a que me dediquei muito.
 Uma outra razão de peso, como editor achei sempre que não deveria publicar livros de minha autoria, pelo menos em editoras minhas.
  Depois destas ‘desculpas’, talvez esfarrapadas, acabei por revelar a Verdade, a verdade nua e crua. Apesar de pensar em escrever contos, de que gosto mais do que de romances, leitor voraz desde muito jovem, de milhares de obras, perguntava-me: “Para quê escrever se nunca poderei ombrear com contistas como Gogol, Tchecov,  Cortázar, Thomas Mann, Fitzgerald, O’Henry, Jack London, Mark Twain, Stefan Sweig,  Alice Munro, Virginia Woolf, Nabocov, para citar apenas alguns?” Como atrever-me a escrever um conto depois de ler Boneca de Luxo (Breakfast at Tifany’s), de Truman Capote?
  Então, perguntarão “porquê escrever e publicar, agora aos noventa anos?”  Bom, acho que nesta idade posso permitir-me muitas coisas e contar com a benevolência dos leitores. Sinceramente, hoje preciso de escrever para viver ilusões ou para relembrar cenas do passado, e modificá-las ao meu gosto, como eu gostaria que tivessem acontecido e não como aconteceram. Quase poderia citar aquele poema de Pessoa: “Poema em Linha Reta”, e cito apenas alguns versos: “Nunca conheci ninguém que tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” “Eu, que quando a hora do soco surgiu me tenho agachado / para fora da possibilidade do soco;” “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho. / Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”

  Por fim resolvi falar um pouco de O Escultor de Almas, romance escrito deliberadamente como tal e não, diria que acidentalmente, como O Roxo dos Jacarandás.
 ‘O Escultor’ foi o último livro que publiquei em edição digital (junho de 2014) e que em setembro lancei nas livrarias, em edição comercial. Como sempre, distribuí os cinquenta exemplares da edição digital exclusivamente para amigos e familiares. O retorno deixou-me perplexo, vários desses meus escassos leitores disseram: “mas, é um romance de amor!” Mas porque não? Deveria ser sobre zombies, fantasmas, monstros, gorilas, extraterrestres, erótico e mal escrito por uma mal amada, biografia de algum vulto histórico absolutamente inócuo, policial,  de branqueamento do nosso ditadorzinho…?
   E porque não sobre o amor? Eu acredito no amor, indiscutivelmente é o sentimento mais importante na vida humana. Eu amei muito e, estou seguro, fui também muito amado. Amar e ser amado é uma bênção, um privilégio. Mas mais que sobre o amor, ‘O Escultor’ é sobre uma relação amorosa, o que é muito diferente do amor propriamente.
 O amor é um mistério e um milagre. A relação amorosa é uma arte e o exercício de compreender o outro e aceitá-lo de ânimo aberto, assim como o de entregar-se abertamente. Caso contrário, essa relação é corroída como que pelo ácido sulfúrico.
  Na relação amorosa há sempre uma bomba-relógio de permeio: os filhos, ter ou não, criar assim ou assado, poucos ou muitos. Além de que o homem e a mulher vivem ‘os filhos’ de maneira diferente. O homem deseja ter filhos de forma mais intelectual, mais pragmática, por razões sociais, para a continuidade do seu nome e da sua personalidade, até da sua profissão. A mulher vive a gravidez e a maternidade visceralmente, com o coração, com todo o seu corpo e mente, com esperança, com altruísmo. De um modo que o homem não entende, não pode entender. A mulher tem absoluto direito a essa maternidade, a lutar por ela, mesmo em prejuízo de uma relação amorosa.
   Numa relação, há ainda uma outra bomba, e mais potente: a interrupção da gravidez, voluntária ou não, decidida pelos dois ou apenas por um deles. De qualquer forma, é sempre muito difícil e traumático para a mulher, deixa-lhe sempre angústias, mágoas, remorsos e frustrações. O homem aceita muito melhor essa situação, afinal nem a vive fisiologicamente. É possível que isso faça toda a diferença.
  Foi todo este quadro que tentei criar ao escrever O Escultor de Almas, mas não sei se com a arte e o engenho suficientes para transmitir a mensagem. Sim, o personagem masculino é um homem de sucesso, sim, ele ama muito a jovem que arrancou da favela, sim, ele moldou-a, esculpiu-a, por amor e para que a relação deles fosse equilibrada. Sim, o personagem feminino amava muito o seu amante, sim, ela desejava viver com ele, sim, ela queria ter um filho, custasse o que custasse. E quanto a isto não se entenderam. É isto um romance de amor? E se for?
Foi tudo isto que tentei explicar para os que tiveram a gentileza e paciência de me ouvir naquela sala do El Corte Inglés, enquanto lá fora o crepúsculo crescia. Presença que agradeço com sinceridade.

  Tentei ainda responder à pergunta no ar: “porque voltei a ser editor, quatro anos depois de deixar de o ser?” Mas porque não, se o fui durante seis décadas? Como respondi a um livreiro que me enviou um mail de boas vindas ao setor: “Estive internado nos ‘editores anónimos’ quatro anos, mas saí, não consigo livrar-me do vício.”
  Enfim, aqui estou, a aguardar a ressonância das minhas mensagens escritas, por um lado, e, por outro, disposto ao diálogo, como sempre franco e amigável, com os autores que me procurarem.

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terça-feira, 21 de outubro de 2014

Páginas de Prazer

10.   PÁGINAS DE PRAZER
 Como escrevi anteriormente, no início de 1955, estava eu sem trabalho e sem qualquer negócio, pois havia saído deliberadamente da Editorial Andes. Por uma questão de ética, achei que não deveria criar, pelo menos de imediato, uma outra editora e publicar títulos de autores que publicara na Andes.
 Contudo, havia um autor, não da Andes, Hugo Schesinger, com o qual mantinha uma boa amizade, independentemente da área editorial. Ele organizava livros de referência, sobre indústrias e produtos de todo o Brasil, muito úteis naquela época e naquele imenso país em rápido desenvolvimento, que apareciam como edições de autor, e eram. Ele sugeriu que os editasse e distribuísse, pois o esquema de vendas dele era fraco e tinha pouco tempo para se ocupar da produção. Passei a editá-los, já nem me lembro com que chancela, e a distribuí-los. Publicava edições pequenas, que eram atualizadas constantemente, apesar de infelizmente não haver, então, o recurso a edições digitais. Estamos a falar de obras com informações atualizadas, indispensáveis num país imenso e em constante transformação e crescimento. Na realidade, esses livros vendiam bem, por serem únicos no género, e a venda era quase exclusivamente pelo correio, pelo que geravam uma boa margem de lucro.
Pensar nessas edições, hoje, dá-me até vontade de rir, pois qualquer dessas informações que esses guias prestavam, atualmente, em segundos, na net, cá estão.
  Esse meu amigo e autor dirigia uma grande fábrica de móveis de aço, em São Paulo, e insistiu para eu representar essa linha de modernos móveis para escritórios no Rio. Não era uma proposta sedutora para mim, mas entretanto nascera o meu terceiro filho. Topei!
 Não foi fácil, a concorrência era grande e desleal, principalmente nos fornecimentos para o governo, que era onde se ganhava. Consegui penetrar em alguns ministérios e secretarias, mas as concorrências eram publicadas de forma a respeitar acordos anteriormente estabelecidos entre os habituais fornecedores e os compradores. Era, é, o Brasil.
  Em toda a minha vida comercial sempre tentei seguir caminhos diferentes dos outros concorrentes, pois invariavelmente comecei independente de ricos e dos grandes grupos, portanto, com dificuldades.  Foi assim que achei por bem sugerir à fábrica que criassem um cofre sólido e pesado, mas pequeno, oitenta centímetros de altura e cinquenta por cinquenta de lados. Estes cofres pequenos são normais atualmente, mas na época, modelos deste tipo não eram produzidos.
 Consegui uma reunião com a direção geral dos Correios (então ainda no Rio, sede do governo, Brasília nem ainda era um sonho), e propus-lhes o tal modelo com um argumento de peso: nas agências, quando o(s) funcionário(s) durante o expediente, ou de um dia para o outro, eram revezados, como só havia um cofre, parava tudo para a conferência de existências. Ora, isso resolvia-se -- afirmava eu à Direção dos Correios -- se cada funcionário tivesse o ‘seu’ cofre, que fecharia e abriria com exclusividade. Vendi bem a ideia, em breve saiu o edital para a venda de quatrocentos e tal cofres com estas especificações. Ganhei facilmente pois a concorrência não poderia fabricar cofres com essas características rapidamente, enquanto nós já estávamos a produzir, no prazo estabelecido no Edital da Concorrência. Aquando da entrega, os outros fornecedores, por despeito, obrigaram o funcionário recebedor a serrar um dos cofres, para conferir se entre as paredes duplas havia amianto, como era exigido, e tinha. Foi uma boa venda.
  Entretanto eu organizara uma equipe de meia dúzia de senhoras para vender estes cofres para as madames. Argumento: lá podiam guardar as joias e os perfumes franceses, muito caros, e que estando à vista ‘evaporavam-se’ rapidamente. Três ou quatro vidrinhos pagavam o cofre. As vendedoras levavam uma lista de preços desses perfumes para exercerem essa aritmética.
  Contudo, apesar de, no ‘lavar dos cestos’, conseguir manter-me razoavelmente, queria sair deste tipo de negócio. Não me agradavam as relações que era obrigado a manter nesta área. Tratei de conseguir alguém de confiança para continuar essa representação, não queria deixar mal o meu amigo, enchi-me de coragem e… voltei ao livro, que era para mim o chamamento do oásis na travessia do deserto de aço.
  Com pouco dinheiro, teria que limitar as edições e concentrar-me a publicar somente em temas determinados, para poder ter  maior poder de oferta. Fundei a EDITORA PÁGINAS, só com duas coleções: Páginas de Cinema e Páginas de Teatro, temas absolutamente descurados pelos outros editores brasileiros. Fui o editor brasileiro que mais editou nesta área, e em língua portuguesa. O meu irmão Rogério Moura, na Livros Horizonte, publicou muitos dos livros publicados pela Páginas e editou muitos outros de sua seleção.
 A Páginas vendia bem em livrarias, porém o forte das vendas era pelo correio para os associados dos cineclubes, que nessa época proliferavam como cogumelos. E naqueles tempos de livrarias fracas nas cidades não muito grandes, no Brasil os transportes eram demorados e caros, os livros demoravam a chegar às pequenas livrarias, pelo que era uma vaidade receber um livro em primeiro lugar, antes de chegar às livrarias, pelo correio, para poder ler primeiro mas, também, para poder exibir aos amigos.
  Adorei esta editora, tanto pelos livros que publicava, pois sempre adorei cinema e teatro, como porque a sede era uma sala no 18º andar num edifício novo, no Largo da Carioca, nesses tempos o centro nevrálgico do Rio. Dela desfrutava-se de uma linda vista para o Convento de Santo António e para o casario velho construído pelos portugueses, nas ruas em continuação desse morro.
 Além de sede, a sala também era livraria, só de livros de cinema e teatro em diversos idiomas, e praticamente todos os publicados no Brasil. Falta mencionar algo de muito importante: num canto, funcionava um barzinho onde rolava o uísque e caipirinhas, na companhia de alguns salgadinhos.
  A frequência desta livraria era maioritariamente de quem trabalhava em cinema, TV e teatro. As conversas eram muito ricas e, por vezes, acaloradas. De realizadores posso citar Alex Viana, Nélson Pereira dos Santos, Lima Barreto, Alberto Cavalcanti, Glauber Rocha e outros. De artistas, uma longa lista que nem cito. De escritores para teatro e cinema: Augusto Boal, meu bom e saudoso amigo, fundador do Teatro de Arena também em Portugal, Vinícius de Moraes, Salviano de Paiva, Abdias do Nascimento, fundador e diretor do Teatro do Negro do Brasil, e outros. De alguns destes editei os seus livros.
  Ocorre-me relatar um evento interessante promovido pela Páginas.  Como o cineasta Alex Viana estava interessado em adaptar ao cinema Orfeu da Conceição, uma peça teatral de Vinícius de Moraes,  resolvemos promover uma leitura pelo próprio autor,  para um público de empresários, no excelente auditório da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Uma tentativa de encontrar um produtor ou patrocinador para o filme, que não conseguimos.
  Mais tarde, o realizador francês Marcel Camus interessou-se pela peça e realizou Orfeu do Carnaval, filme esse que ganhou a Palma de Ouro em Canes (1959) e o Óscar do melhor filme estrangeiro (1960). Trilha sonora de Tom Jobim e outros compositores brasileiros, não mencionados nos créditos. Essencialmente com intérpretes brasileiros, negros, é uma produção franco/italo/brasileira. Inspirado na Mitologia grega, de Orfeu e Eurídice, em que Eurídice (Marpessa Dawn) se apaixona por Orfeu (Bruno Melo), que tem uma noiva, a bela Mira (Léa Garcia), que se enfurece de ciúmes. O filme é lindíssimo e o seu ponto alto são as cenas do Carnaval, em que a Morte (belo desempenho do tricampeão olímpico de salto triplo Ademar Ferreira dos Santos) persegue Eurídice até que ela na fuga morre eletrocutada. Numa sessão espírita, Orfeu recupera o corpo de Eurídice, o que enraivece Mira e acaba por provocar a queda de Orfeu num precipício com Eurídice nos braços.
   Revi com muito prazer este filme há dias.
  Foi talvez a editora que me deu maior satisfação, mas que não durou tanto quanto desejaria. A razão foi que tive que largá-la para enfrentar um desafio maior, um voo muito alto que afoitamente resolvi enfrentar. Fui convidado para criar uma grande editora de Ciências Sociais pelo Prof. Bilac Pinto (deputado, senador, embaixador do Brasil em Paris), proprietário da maior editora de livros de Direito do Brasil, a Revista dos Tribunais. Era um homem de uma família muito rica, ligada à área bancária, mas principalmente muito culto, inteligente e correto.
  Deste convite nasceu a Editora Fundo de Cultura, da qual qualquer dia falarei.

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sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O FUTURO DO LIVRO

          9.  O FUTURO DO LIVRO

  Ontem (16/10), tive o prazer de apresentar os meu livros no espaço cultural da FNAC de Cascais: O Contador de Estórias e  O Escultor de Almas. Presentes muitos amigos, assim como autores que editei em tempos, um encontro que muito me agradou. Quero aqui agradecer a todos os que me honraram com a sua presença, e à FNAC pela oportunidade desse evento. 
  Após a apresentação da nova editora (a 4Estações) e do autor pela sua diretora, Ione França, coube a mim fazer uma pequena intervenção sobre o que me levou a escrever e a editar estes títulos, já com noventa anos, e não antes, no decorrer da minha vida editorial de seis décadas.
   Curiosamente, enquanto o fazia, surgiu-me uma pergunta tola: e se fossem livros digitais, como seria o lançamento? Julgo que não haveria! Ou os leitores sentavam frente a um ecrã gigantesco? Ou todos em volta de um iPad?
  Os lançamentos de livros já tiveram em Portugal  a sua força comercial e promocional. Comercialmente, hoje para as pequenas tiragens, as pequenas vendas que proporcionam podem significar algo. Mas para grandes tiragens (em Portugal isso significa mais de três mil exemplares), mesmo a extraordinária venda de duzentos exemplares não é importante. Têm algum valor promocional, mas já lá vai o tempo em que os jornais e as rádios divulgavam razoavelmente bem todos os lançamentos. Hoje são tantos que os jornais já não consideram como notícia, a menos que seja de um figurão, como é típico desta cultura de subserviência portuguesa.
  Contudo, estas sessões de autógrafos são ainda uma gostosa festa de amigos, uma oportunidade para os leitores fiéis conhecerem o seu ‘adorado’ autor, e aproveitarem para lhe pedirem um autógrafo e trocarem umas palavrinhas.
   É curioso como em mercados livreiros muitíssimo mais pujantes do que o nosso, como por exemplo o da Inglaterra e dos Estados Unidos, as apresentações pessoais ao público pelos autores sejam tão frequentes, apesar da gigantesca força da televisão. E como é sabido nos Estados Unidos, por pressão dos editores e até contratualmente, os autores prestam-se às célebres ‘leituras’, em livrarias e clubes de leitura, frequentes e cansativas.
  Eu, que anteriormente como editor tantas vezes apresentei os meus autores na FNAC e em outras livrarias e espaços, fiquei feliz por o ter feito agora das minhas próprias obras, principalmente pela oportunidade de esclarecer alguns pontos da minha serôdia trajetória de escritor.

  Voltando aos livros de edição apenas digital. Sabemos que muitos, apesar de algum sucesso neste suporte, não o ultrapassam, nunca são editados em papel. Que outros, pelo seu sucesso nesse mesmo suporte, ganharam a edição como livros em papel, para venda no mercado livreiro. Também sabemos que muitos arautos do futuro bramam que o livro de papel não  tem qualquer hipótese em anos vindouros. Ouvimos até de um dos escritores que mais vende no mundo, Paulo Coelho,  150 milhões de livros em papel,  e não sei quantos digitais, falar na última Feira de Frankfurt que editores e livreiros não se atualizaram aos novos tempos do livro.
  Com a minha idade, e se isso acontecer mesmo rápido, isso não me preocupa nem me assusta. No decorrer da minha vida ouvi que o cinema iria matar o teatro, também que a televisão eliminaria a rádio e o cinema, que a fotografia tiraria todo o sentido à pintura, e por aí fora. De facto, a fotografia tem hoje status de uma apreciada arte e as exposições fotográficas vêm ombreando com as de pintura. Mas levou um século. A televisão usa o cinema e  fortalece a produção de filmes, pois precisa deles. O teatro não terá o fascínio dos áureos tempos de Shakspeare, mas está vivo, muito vivo, em todo o mundo, nos países ricos e nos mais pobres, nos de boa estrutura de teatros, como nos de menos, como Portugal. Os bons livros são adaptados para o teatro, para o cinema e para a televisão.
  Na realidade o que me assusta não é os jovens lerem apenas e-books nos seus computadores, iPads, iPhones, etc. O que me pasma e entristece são os que têm um peixinho num aquário virtual, que têm de alimentá-lo virtualmente e, não o fazendo, o peixinho morre. O que me preocupa, e muito, é esses jovens buscarem as namoradas nas redes sociais. Dispensam o perfume, o  acarinhar de uma pele suave, o magnetismo, os modos, o sorriso e a lágrima de uma jovem de carne e osso.
  Lembro de,  há mais de vinte e cinco anos, ver um belo, muito belo, filme (Barbarela) com Jane Fonda. Ela interpretava, neste filme, com o charme privilégio dos Fonda e a exuberância e beleza de Jane. O tema era o amor num futuro próximo, em que ‘fazer amor’ consistia em encostar a palma da mão na palma do parceiro, com direito a orgasmo mútuo, imediato e pleno. Assustei-me muito, temi que esse futuro acontecesse rápido. Felizmente nunca vi sinais da sua chegada.
   É por isso que não acredito no desaparecimento do livro em papel, com o seu caraterístico cheiro, seu toque gostoso, sua presença sólida, como quando pegava num livro de Emílio Salgari ou de Júlio Verne, quando tinha os meus dez anos.
 Tenho fé de ainda assistir a muitos, muitos mesmo, lançamentos e de lá sair com algum ou alguns dos assistentes para beber ou comer algo.

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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A ESCALADA... 'DA ANDES'



8.  A ESCALADA… DA ‘ANDES’
  Entre o que um jovem de dezanove anos sonha que será a sua vida futura e, depois, com noventa anos, relembra da sua vida, há uma diferença abissal. A diferença de um livro de Nora Roberts para Camorra.
Em março de 1948, eu estava preso no Forte de Caxias, incomunicável, e estava muito longe de imaginar que em março de 1953, apenas cinco anos depois, estaria no Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa, dirigindo uma editora, de que era sócio. E muito menos poderia pensar que, nesse entretempo, tivesse vivido na Venezuela e no Canadá, onde, na primeira, dirigi uma carpintaria e uma fábrica de tijolos, fui vendedor de perfumes e batons, dono de uma fábrica de caramelos e, por fim,  de uma boa agência de viagens em Caracas e, também, em Montreal.
Também poderá parecer estranho a alguns leitores que eu sem qualquer prática no ramo da edição, sem especialização nas artes gráficas ou em marketing (que na altura se dizia vendas), sem dominar uma dúzia de idiomas, sem sequer ter um curso mais afim com a edição do que a Silvicultura, dizer que criei uma editora a partir do zero, pouco depois de chegar ao Brasil, como diz o povo “com uma mão atrás e outra à frente”. Será, portanto, natural que me perguntem: Teve o apoio de algum partido político? De alguma religião? De algum movimento com este ou aquele programa? De algum mecenas? Casou com mulher rica? Tinha um bolão de dinheiro guardado?
 Não, nenhum apoio institucional. Tão pouco capital próprio. Tinha chegado há pouco mais de um ano ao Rio… com a quantia “exata” para pagar apenas a renda de um mês de um quarto de estudante. E posteriormente não ganhei no ‘bicho’ (a lotaria clandestina brasileira).
  Acho que não foi estranho, apenas miraculoso, apenas o que eu chamo de a ‘força da vida’. Talvez, sim, muito de ousadia, determinação e perseverança. Passo a contar como sucedeu.
Poucos meses depois de ter chegado ao Brasil, fui contratado para dirigir a primeira pesquisa de ‘padrão de vida’ no Brasil, durante muitos meses. Pesquisa que serviria para determinar os ‘pesos’ dos gastos da população das classes mais baixas, para determinar o valor do primeiro salário mínimo e dos seguintes. Uma pesquisa nacional em cujo diretório participavam as dez principais instituições afins à matéria, como a Fundação Getúlio Vargas (a principal promotora e a que cedia a logística), o Banco do Brasil, o IBGE, etc. Os resultados desta pesquisa foram muito elogiados, em livro sobre essa experiência num país tão grande, pelo Padre Lebret, o notável sociólogo francês, que concebera essa pesquisa em geral e que elaborou os resultados finais. Nessa publicação final elogiou o meu trabalho.
    Conseguira esse trabalho por indicação de um amigo da minha infância e juventude, Luís de Vasconcelos, que era da equipe da revista Conjuntura Económica, da Fundação Getúlio Vargas, de quem eu me aproximei de novo ao chegar ao Brasil. Quando acabou a pesquisa, eu fiquei a trabalhar, como contratado, na Conjuntura Económica, sem dúvida a melhor e mais respeitada revista dessa matéria no Brasil.
  A certa altura, Luís, que tinha pegado de um editor um livro para traduzir, mas andava muito sem tempo para o fazer, pediu-me para me encarregar dessa tradução. Interessou-me pois era sobre demografia, área de meu interesse, e de autoria de um renomado demógrafo, Alfred Sauvy (um pequeno livro da coleção Que Sais-je?). Quando terminei a tradução, o Luís pediu-me para ser eu a ir à editora para entregá-la. Fui.
   A editora era um departamento editorial da Casa do Estudante do Brasil. Uma instituição politicamente muito forte, de apoio aos estudantes universitários de todo o Brasil (carente de universidades nos estados mais pobres). Contudo, essa editora publicava sem qualquer critério: poesia, discursos académicos, romances de novatos, enfim, o que entrava pela porta.
 Quando o editor, um homem bastante inteligente, me perguntou o que achava da editora, foi isso exatamente o que lhe disse, e acrescentei que com a responsabilidade e a imagem da C.E.B. teria que editar a nível universitário, exatamente como a Presse Universitaire de France. Um bom exemplo era o livro dessa editora que eu acabava de lhe entregar, sugestão editorial do meu amigo Luís. Após a primeira exaltação veio o diálogo que, aliás, se prolongou até à meia-noite, quando fechou a leitaria onde acabámos por ir para continuar o diálogo.
 Conversa vai, conversa vem, ele desafiou-me para eu o ajudar como empregado na direção da editora. Repliquei que sim, que poderia dirigir totalmente a editora da C.E.B., sem salário (não havia propriamente um salário, mas uma gratificação anual para o diretor, da qual também abdiquei). Contudo, coloquei três condições: lº - Ele continuava ‘oficialmente’ como diretor, mas na prática como conselheiro; 2º - Eu teria liberdade total para dirigir aquela editora; 3º - Nós criávamos uma editora comercial, paralela, usando as fracas estruturas existentes.
 Tive coragem para fazer esta proposta porque percebi que ele poderia interessar-se por ela, pois tinha ido para São Paulo, por razão da filha ser surda-muda e necessitar de frequentar o Instituto Helen Keller, e lá ter montado uma gráfica para viver, apesar de ser advogado.
 Ele propôs um outro sócio, amigo dele, um renomado cirurgião diretor de um hospital, mas com muito trânsito na área bancária, pois era mineiro (de Minas Gerais) e, então, todos os bancos fortes que operavam no Rio eram mineiros. Acordado: três sócios com quotas em partes iguais… e a realizar. Assim nasceu, no início de 1953, a Editorial Andes. A parte editorial e comercial ficava a meu cargo, a administrativa do outro sócio, o Dr. Lavigne, uma das melhores pessoas que conheci.
  Nesse tempo eu também trabalhava, à noite, na redação de um jornal vespertino, tabloide, e a minha função era preparar a página de política internacional, política essa que não interessava muito aos brasileiros, na época. Eu apanhava as longas fitas de papel que saíam continuamente do Telex e serpenteavam pelo chão, selecionava o noticiário a publicar, traduzia e enchia a página que me cabia. E ganhava uns trocados. Era uma ocupação muito agradável pela boa camaradagem, tanto na redação como nos ‘botecos’  da Lapa, onde se localizava o jornal.
 Estávamos em plena Guerra da Coreia e eram as notícias que enchiam as manchetes e que despertavam a atenção. Julgando-me já um grande editor, não tive dúvidas, o primeiro livro lançado pela na nova editora (a Andes) foi A Verdade sobre a Guerra da Coreia. Neste eu juntara dois grandes artigos publicados numa revista da especialidade, norte-americana, que cedeu free os direitos, e antecedi com uma longa introdução minha, citando bastante o nosso querido Eça de Queiroz, que tinha sido embaixador na Coreia. Vali-me da farta correspondência dele sobre o país, que explicava muito bem as razões do conflito.
 O livro saiu em abril de 1953… pelos caprichos da sorte exatamente na semana do armistício e, claro, ninguém mais queria saber a tal Verdade e a edição foi um fracasso. Primeiro round, K-O, para mim.
 Contudo, aprendi que, no futuro, não deveria editar livros ‘datados’, e fui em frente. Durante dois anos construí um catálogo generalista para a Andes, mais forte em três vertentes: pedagogia, relacionamento humano, cinema. Também aprendi quanto pude de artes gráficas, na oficina do meu sócio, em São Paulo, e palmilhei, ou seja, voei, por todo o Brasil para garantir uma distribuição nacional e conhecer a rede livreira do país, onde consegui muitos bons amigos.
  É verdade que viajava com muito pouco dinheiro e em condições que hoje acho incríveis. Mas conheci aquele fantástico Brasil, na época uma economia fraca e uma democracia incipiente. Que importavam as condições para aquele jovem idealista, se ele conheceu tantas cidades míticas, outras bem menos e atrasadas, mas um Brasil castiço, que ainda não via televisão e por isso cada região tinha uma identidade própria. Comi as refeições mais estranhas para mim, dormi em redes em hoteizinhos para viajantes, voei em aviões quase sucata, de companhias que faliram mais tarde. Visitava faculdades e livrarias, para conseguir autores e vendas, fiz amizades que duraram décadas.
  Paralelamente, renovei por completo a programação da editora da C.E.B., onde lancei Josué de Castro (Geografia da Fome, Geopolítica da Fome, etc.), com grande sucesso; Manuel Bandeira (Guia de Ouro Preto, Apresentação da Poesia Brasileira e outros); Artur Ramos, o mais renomado antropólogo brasileiro (trabalhei com a viúva, doente de cama, na preparação da 2ª edição da sua obra mestre , Antropologia Brasileira); Sadoul (A Vida de Carlitos, o Charlot em Portugal); Adolfo Casais Monteiro, o meu bom amigo, etc. e tal.
  Entretanto a relação comercial Andes-Gráfica (do meu sócio) não ia bem, pois ele sacava letras em cima de obras ainda a imprimir, o que era ruim. Mas, pior ainda, também em cima da editora da C.E.B., o que para mim era inadmissível. Assim resolvi desligar-me da sociedade, numa boa. Recebi a minha parte em livros, que enviei para Portugal, para os meus irmãos distribuírem. E que foi uma boa experiência para eles, talvez não financeiramente.
Fim de linha para o meu primeiro e esforçado projeto editorial. O ano de 1955 estava a acabar e eu perguntava-me o que iria fazer.Tinha-me divorciado amigavelmente da minha primeira mulher, ficara com a guarda dos filhos, ainda muito pequenos, e aguardava um terceiro da minha segunda companheira.


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domingo, 12 de outubro de 2014

O CONTADOR DE ESTÓRIAS

7-O CONTADOR DE ESTÓRIAS
  A vaidade é terrível! Contudo, é um poderoso motor para movimentar os indivíduos. É curioso como os sentimentos negativos (o ciúme, a vaidade, o despeito, a raiva, o ódio, a inveja e outros semelhantes) impulsionam mais as pessoas a agir do que os sentimentos positivos (a bondade, o amor, a compreensão, a amizade, etc.), que tendem acomodar as pessoas nas suas posições conquistadas.
  A verdade é que então (estamos a falar de abril do ano passado), animado pelos elogios de muitos dos leitores a O Roxo dos Jacarandás, resolvi voltar à minha ideia inicial de escrever alguns contos. Espremi o meu cansado cérebro e imaginei umas duas ou três estórias, escrevi as suas sinopses e parti para desenvolvê-las.
  Ao longo da minha vida, de quando em quando, em especial nas noites mal dormidas ou nas madrugadas preguiçosas, imaginava um conto, um artigo, um guião para um filme, e, às vezes, não muitas, escrevia uma breve sinopse, a que chamava de ‘esqueleto’ e que guardava numa gaveta, na ilusão ou esperança de que o dia a aproveitaria. Mas as gavetas mudaram muito, não gosto de guardar papéis, aliás tenho horror a papéis do passado, e com o tempo tudo foi deitado fora, tantas foram as mudanças (de países, cidades, casas) que fiz pela vida fora. Gostaria de ter preservado alguns desses esqueletos, mas talvez de pouco servissem, pois eram apenas um resumo, em letra ruim, criptografado, que já não daria a ideia global do que imaginara nalguma madrugada.
  É certo que nas minhas leituras, ao contrário da maioria dos leitores, sempre privilegiei os contistas, li e reli Tchekov, Gogol, O. Henry, Jack London, Nabokov, Cortázar, Stefan Zweig, Fuentes, Sepúlveda, Mark Twain, Borges, Fitzgerald, Capote, etc.,  etc.
Voltando à minha decisão de escrever contos. Peguei numa dessas sinopses agora escritas, e era muito pobre, realmente apenas um ‘esqueleto’, e ao buscar nela o fio da meada achei-me mais perdido do que num labirinto mitológico. Não dava para me lembrar bem como imaginara a estória completa.
  O processo passou a ser sempre o mesmo. Ao pegar na sinopse para iniciar o conto não conseguia imaginar como desenvolvê-la. Mas, à medida que ia escrevendo e criando ação, os personagens iam aparecendo, como que convidados para um cocktail, sentavam ou não, e logo dominavam a cena. Eu ficava feliz, pois era o primeiro leitor desse meu próprio conto, antes não concebido desta forma, e que a maior parte das vezes, ao estar terminado, resultava totalmente diferente da proposta inicial.
  Em três meses (abril, maio e junho) escrevi dez pequenos contos, com os enredos e os personagens mais diversos. Comecei por inventar um tio, excelente contador de estórias nos nossos serões familiares, para justificar que eu, agora, tantas décadas depois, ao recordá-las, me abalançasse a tentar reproduzi-las.
 Pensei inicialmente afirmar ter ganho, do meu pai, uma prenda nos meus quinze anos de um gravador e que, passados setenta anos, descobri num sótão esse gravador e assim ter conseguido ouvir as gravações e reproduzir as estórias do meu tio. Mas então perguntei-me: Havia gravadores portáteis em 1940? Se havia, setenta anos depois teriam alguma possibilidade de funcionarem ainda? E se sim, as fitas não estariam irrecuperavelmente deterioradas?
  Tive então a noção de que um escritor tem que ter cuidado com as datas, ou seja, o que elas permitem ou não. Lembrei-me como para produzir filmes e novelas há sempre uma competente equipe de pesquisadores e historiadores. E eu, ainda não escritor, não dispunha de uma equipe de 25 elementos (historiadores, técnicos, advogados, pesquisadores, especialistas em arte, etc. e tal), como Ken Follett. Como não estava disposto a perder tempo com averiguações, pura e simplesmente, mudei para o facto de ter descoberto, nesse tal sótão, um diário da minha juventude e que nele, obviamente, não figuravam as estórias do meu tio, mas apenas referências a algumas delas. Assumi, assim, que as estórias eram de minha autoria.
  Comecei com um conto sobre um touro, ou melhor, sobre touradas (“Miúra”), depois um outro (“ O Ciúme”), a estória de um ciumento que imagina o que não acontece… e perde a mulher que ama. A seguir, um conto (“O Velho Marinheiro”) que apresenta um pintor frustrado que, na busca de pintar um quadro bom como nunca conseguira, não hesita  em sacrificar o seu modelo. O quarto conto (“O Plágio”) é sobre um outro pintor que, estranhamente, escreve uma novela… mas que já fora  escrita quarenta anos antes por um escritor estoniano. Passo depois para a estranha aventura de dois rapazes (“Tia Rosa”) na qual, numa viagem com eles, a sua tia morre num hotel onde ficaram, e as peripécias deles para levar a defunta para casa. Mais dois contos pequenos: num (“Professor Napoleão”) um professor desmemoriado aceita uma intervenção cirúrgica de implante de um chip para recuperar a memória, e noutro (“Zuluaga”), passado na Venezuela, um careca total recupera a cabeleira com um elixir doado por um índio, mas não recupera o índio. No oitavo (“Una Birra Presto”), de que gosto especialmente, onde o personagem é um rico e empreendedor executivo brasileiro, vindo do nada, que se acompanha de um sagui, que a certa altura foge para a floresta para copiar o estilo de vida do seu dono. Apresento então “O Pesadelo”,  o encontro de dois amantes nos dias de hoje… que tinham sido amantes há um século e a descoberta, pelo homem,  de algo horrível nesse passado.  Acabo com a descrição dos tormentos e angústia de um preso político (o título é exatamente “O Prisioneiro”), na prisão do Aljube, no período salazarista, claro. Experiência por mim mesmo sofrida, numa das vezes em que fui detido pela PIDE.
  O volume saiu em julho, sob o título de O Contador de Estórias,  também em edição digital, não comercial, desta vez de cem exemplares, pois entretanto tivera que reeditar mais trinta exemplares do “Roxo”.  Saiu sob a marca de 4Estações, na realidade uma edição de autor, não de uma editora, aliás como o primeiro romance.
   Sinceramente, acho, de uma maneira geral, estes contos de boa leitura e interessantes, mas claro que é uma opinião para lá de suspeita. Ao relembrar alguns autores que li, pergunto-me “porque escrevo?”, quando a comparação é abissal. Todavia, posso dizer que foi para mim muito bom, muito estimulante, exercitar a minha criatividade ao escrevê-los, e que tenciono continuar, publicando ou não.
  Apesar do que acima afirmo, resolvi inaugurar a editora que acabo de criar (4Estações-Editora) com a publicação destes contos, sem qualquer ilusão de que venha a ser um sucesso de vendas, conheço bem o mercado. Foi como que uma comemoração dos meus noventa anos, na intenção de partilhar com desconhecidos aquilo que escrevi com tanto empenho. Assim, posso ter a veleidade de pensar que, neste exato momento, alguém  esteja a ler essas estórias e a agradar-se da sua leitura...
Lembram-se como comecei: “A vaidade é terrível!”?




quinta-feira, 9 de outubro de 2014

JAZZ E LITERATURA

6. JAZZ E LITERATURA
  Adoro jazz, como também a Bossa Nova. Contudo, antes e mais ainda, a música erudita. Enfim, sou um admirador e um consumidor de música, em geral, desde garoto. Tenho centenas de CDs de música clássica, de jazz e de bossa nova. Ainda não aderi às novas tecnologias, meio piratas, mas não por razões éticas,apenas porque deliberadamente não quero saber o como.
   Quando leio livros escuto música instrumental, e deixo a cantada para leitura de imprensa e outras ocasiões. Mas hoje quero falar só de jazz. É longa a lista dos meus preferidos, e variada, mas não up to date, talvez Wynton Marsalis seja o mais moderno. Os outros são por demais conhecidos: Miles Davis, Dizzy Gillespie, Count Basie, B. B. King, Gill Evans, Duke Ellington,  Louis Armstrong, Chet Baker, Charlie Parker (Bird),Stan Getz,Oscar Peterson, não na ordem de preferência, como instrumentistas, mas não só.  No jazz sinfónico, o extraordinário e melódico George Gershwin, maravilhoso. Cantores masculinos: Ray Charles, Cole Porter, mas quase todos os instrumentistas também cantam, como o Gillespie e o Armstrong. As três melhores cantoras: Mahalia Jackson (que eu, agnóstico, ao ouvi-la, vejo nitidamente o Deus poderoso ao qual ela  dirige as suas súplicas e agradecimentos), Dinah Washington e Bessie Smith. A seguir, claro, as mais celebradas: Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Sarah Vaughan, a que devo acrescentar Aretha Franklin,  Helen Merril, Nina Simone, Carla Bley e Shirley  Horn.
  Há algumas semanas, de volta do Brasil, para enfrentar aquelas longas horas noturnas naquela lata de sardinhas gigantesca, tão espetacular quanto preocupante, peguei um livro de bolso de edição brasileira (L&PM) de Julio Cortázar, uma antologia de contos intitulada A autoestrada do Sul, que como sabem é um dos seus contos mais emblemáticos, e dos mais loucos, ali incluído. Um relato de um enorme engarrafamento numa autoestrada para Paris, no qual os personagens não são tratados pelos seus nomes mas sim pelas marcas dos seus carros. Reli-o com prazer.
  A agradável surpresa: um conto dele que eu desconhecia, “O Perseguidor”, onde, apesar de não o citar pelo nome, mas sim por Johnny Carter, com mestria Cortázar escreve sobre a vida e o génio de Charlie Parker, mais conhecido por Bird. Uma maravilhosa e extensa análise (é mais uma novela do que um conto) do processo de criação do referido ‘monstro’ do jazz, da sua obsessão pelo tempo e dos seus, não poucos, tormentos privados. Passo a citar alguns textos (respeitando exatamente o estilo e grafia), para  vosso deleite:
  Diz Bruno, o narrador, jornalista residente em Paris, onde também se encontra Parker:
“Ninguém mais sabe quantos instrumentos ele já perdeu, empenhou ou destruiu. E em todos tocava como acredito que um deus é capaz de tocar sax alto, supondo-se que os deuses tenham renunciado às liras e flautas.”
 Porque depois da passagem de Johnny pelo sax alto não é mais possível continuar ouvindo os músicos anteriores e acreditar que são um não plus ultra; … Johnny passou pelo jazz como uma mão que vira a página e fim de papo.”
 “Mas só ele pode fazer o inventário do que colheu enquanto tocava, e provavelmente já terá passado a outra coisa, perdendo-se numa nova conjectura ou numa nova suspeita. Suas conquistas são como um sonho, ele as esquece ao despertar, quando os aplausos o trazem de volta, a ele, que está tão longe vivendo o seu quarto de hora de um minuto e meio.”
  “Mas nesse momento, dono de uma música que não facilita os orgasmos nem a nostalgia, de uma música que eu gostaria de poder chamar de metafísica, Johnny parece contar com ela para explorar-se, para morder a realidade que todos os dias se esquiva a ele.”
  E as palavras de Johnny/Charlie:
   “A música me tirava do tempo. Sei muito bem que isso é só maneira de dizer. Se você quer saber o que eu verdadeiramente sinto… acho que a música me fazia entrar no tempo. Só que aí é preciso acreditar que este tempo não tem nada a ver com… bom, connosco, por assim dizer.”
“… se eu conseguisse viver apenas como nestes momentos, ou como quando estou tocando e o tempo também se altera. Você dá conta de quantas coisas podem acontecer em um minuto e meio? E aí um sujeito, não só eu, mas também aquela dali e você e todas as pessoas, poderiam viver centenas de anos.”
“É um sax incrível, ontem fiquei com a sensação de estar fazendo amor enquanto tocava. Se você visse a cara da Tica quando acabei. Era ciúme, Tica?”
 Enquanto o ronco das turbinas ecoava forte lá fora, eu aprofundava-me na leitura e ouvia nitidamente, de memória, um espetacular solo do Bird, maravilhoso, envolvente, que me ajudou a ultrapassar o aborrecimento da viagem. Não pude, claro, deixar de me lembrar do excelente filme Bird, no qual Clint Eastwood nos apresenta magistralmente, como lhe é habitual, a trajetória de glória e derrota deste tão infeliz, quanto ímpar, saxofonista.
 Vem tudo isto a propósito de eu querer assinalar, aqui, o poder da escrita e o deleite da leitura, quando o autor é bom, muito bom como Cortázar.  Na realidade ele oferece-nos uma história de vida de Parker, romanceada e informal mas muito séria, com profundidade e humanidade, desse músico que se destruía compulsivamente pelas drogas e álcool, enquanto os amantes da sua música o ouviam bebericando alegremente. Texto que nos permite um melhor conhecimento desse saxofonista, mas também genericamente do jazz, como música renovadora e desafiadora, visceral e telúrica, que emanou da revolta e da esperança, da segregação social e da dor da negritude sofrida através dos tempos.
Sorte para nós, leitores, podermos, com a maior facilidade, ter acesso a estes textos. 

                                                    ***

domingo, 5 de outubro de 2014

O Roxo dos Jacarandás

5-O ROXO DOS JACARANDÁS
  Quando em abril do ano passado enviei a edição digital da minha primeira novela, O Roxo dos Jacarandás, para os meus amigos e familiares, tive algumas surpresas e muita indecisão. Surpreendi-me porque muitos dos que o receberam, leram realmente o livro e, bastantes, declararam ter gostado e lido com prazer. Ao enviar alguns desses exemplares não esperava que fossem lidos, mas não podia deixar de os remeter por uma questão de cortesia. Quanto ao elogiarem, evidentemente que era uma opinião ‘suspeita’ para mim,  devido aos laços que nos unem, claro, não que estivessem deliberadamente a mentir, mas porque,  sendo um texto escrito por mim,  era lido com benevolência.
 Escrevi esse romance em dois meses, não o deixei amadurecer, nem o revi cuidadosamente, portanto não esperava tão calorosa recetividade. Não, não tem a profundidade de um Joyce, e talvez isso tenha ajudado ao agrado. Em geral, também agradou muito o facto de a novela acabar com quatro finais diferentes, pois como durante a leitura o final era previsto com facilidade, decidi trocar as voltas ao leitor.
 Nunca mais reli essa novela e agora, mais de um ano depois, lembro pouco dela e tenho dificuldade em avaliá-la. Talvez um dia a releia, a amplie, a modifique, ou seja, tente melhorá-la. Só então decidirei se a publico e a coloco nas livrarias.
 Também me surpreendeu muito descobrir que a maior parte dos lisboetas não sabem o nome dos jacarandás que tanto embelezam Lisboa, na primavera.
  Mas acabada essa novela, escrita sem muita determinação, eu perguntava a mim mesmo: porque é que em vez de continuar, como sempre, a leitura de tantos autores que adoro, e outros que ainda penso conhecer, deveria continuar a escrever? Sabendo, como muito bem sei, que já não tenho tempo de vida suficiente para criar leitores. Um escritor leva o seu tempo, maior ou menor, a conquistar o seu público.
 Claro não estamos a falar dos autores lançados com uma gigantesca operação de marketing e, que muitas vezes, nem são escritos pelo que aparece como autor. Hoje é muito mais difícil para um escritor português conseguir emergir no mercado nacional, perante a enxurrada de lançamentos de títulos que chegam todos os dias às nossas livrarias, impulsionados por sucesso em outros mercados, de autores de todos os idiomas, países, religiões e raças.
Antes de me decidir a continuar a escrever, cultivei as minhas dúvidas hamletianas, até que me decidi a experimentar de novo. Ocasionalmente, há dias, li em Tabucchi (Viagens e outras Viagens) um texto muito interessante: “Ao escrever imaginamos ser outro e viver uma vida diferente. E estar noutro lugar.” E, ainda: “A literatura – disse um poeta –  é a prova de que a vida não basta.”
  Encontrei nestes textos uma explicação porque desde aí, em treze meses, escrevi mais três livros, dois livros de contos e um romance. Tempo roubado à leitura e à exibição de filmes em casa.
 Mas, voltando a Tabucchi, sim, acho que quando escrevo viajo dentro de mim, ao meu passado, vivido ou desejado, ao encontro dos meus amigos e, especialmente, das mulheres que amei, das pessoas que estimei.
  Não que eu não viaje mais geograficamente, não que eu não continue a cultivar a amizade de alguns bons amigos, não que eu não mais ame intensamente, mas a recordação de uma vida já tão longa e tão cheia, como da que felizmente beneficiei, inunda-me e dá-me vontade de mergulhar de novo em mundos já longe, no tempo, no espaço, na realidade.
   Não tenho a veleidade de escrever, como Neruda, Confesso que Vivi, mas vivi também intensa e entusiasticamente. E amei muito, muito mesmo, mulheres, crianças, escritores, poetas, atores, atrizes e realizadores, cidades, pintores, músicos e compositores e, com persistência, os livros.
 Além de amar os livros passivamente, como leitor, amei-os e amo como editor. Abracei entusiasticamente a arte de editar, a faculdade de levar as mensagens, as ideias, o verbo e o verso, de outros autores até aos seus leitores. Posso garantir que sempre em obras bem cuidadas, no texto e na estética, como sempre foi o meu desígnio, o que, modéstia à parte, consegui.
Recordá-lo faz-me feliz, tentar agora continuar com uma nova editora será um bálsamo. Esta é  a razão de ter  criado agora a  «4 Estações-Editora»,  quatro anos depois de vender a «Vogais & Companhia».
Parafraseando  Pessoa: “Editar é preciso.”


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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O sedimento das minhas leituras.

4. O SEDIMENTO DAS MINHAS LEITURAS


Ao reler o que escrevi atrás, pareceu-me que dou a entender que comecei a escrever porque aprendi a trabalhar num computador, e porque este facilita mais a escrita. Mas não era o que eu queria dizer, é exatamente o contrário, pois eu comecei a escrever porque, durante décadas, em vez de navegar na net, li livros, milhares de livros, muitos milhares. Foram essas leituras que me deram o embasamento para escrever e, talvez, para imaginar estórias. Li, mal ou bem, os melhores e, talvez, os piores autores, textos deste ou daquele género, neste ou naquele idioma, que domino bem ou menos bem, isso não importa. Li os clássicos consagrados e os de sucesso recente, românticos, policiais, de intriga internacional, humorísticos,ensaios, divulgação científica, de aventuras, épicos, políticos, de viagens. Não ficção científica nem biografias, que abomino, pouco de história mundial ou de Portugal.
   Muitos americanos, possivelmente tantos como europeus, bastantes espanhóis e sul-americanos, muitíssimos brasileiros e, razoavelmente, os portugueses. Terei lido mais de seis mil títulos, o que pode parecer muito, mas afinal leio desde os dez anos, o que até aos noventa são oitenta anos, bem mais do que quatro mil semanas. Rara a semana em que não leio um livro, sem contar os fins de semana, em especial os chuvosos, em que posso ler dois ou três.
  O que ficou? Muito? Pouco? Não sei! A verdade é que hoje ao escrever temo plagiar inconscientemente um escritor que tenha lido há décadas, um conto, uma ideia, um personagem, um diálogo, que me tenham marcado bastante, sem sequer conseguir identificar ou disso ter a noção.
  No meu primeiro livro de contos, O Contador de Estórias, agora com uma edição comercial, mas do qual antes encomendei uma pequena edição digital para amigos e familiares, incluí um conto sobre touradas: “Miúra”. Ao lê-lo, uma amiga alertou-me que Torga escrevera um conto com título idêntico. Fiquei preocupado, já que fui um leitor assíduo desse notável escritor português, em especial dos Contos da Montanha, mas não me lembrava de ter lido algum com este tema e título, apesar de recordar vários. Corri a comprar uma antologia que incluía esse texto, e li-o, mas felizmente não há qualquer semelhança. E se eu tivesse repetido frases ou situações desse conto, 75 anos depois de o ter lido, como reagiria?
    Eu creio que de cada romance, conto, poema, filme, conferência ou simples conversa, fica sempre em nós qualquer coisa que se incorpora a um ‘sedimento’ onde se aglutina toda essa poeira de vagas recordações, sedimento esse que se aloja não sei onde e que não é estático. Dizia Neruda, em Confesso que Vivi: “Estas memórias ou recordações são intermitentes e por vezes fugidias na memória. Muitas das minhas recordações desvaneceram-se ao evocá-las em pó…”
 Claro, lembro-me perfeitamente de frases, personagens e ideias de livros que li há muito, ou filmes que vi, contudo esqueci (será?) o que li ou ouvi há semanas ou há muitos anos. Oiço agora, e nas horas e locais mais inesperados, “Mi compañero se murió a las cinco de la mañana”, declamado por Maria Barroso, ou, pela voz do saudoso Villaret: “Vou-me embora pra Pasárgada”. E tudo o mais de Llorca  e de Bandeira, que ouvi e li, e gostei, onde estão?
 Também não esqueço, enternecido, a cena final da mulher dando de mamar ao velho esfomeado, em Vinhas da Ira, de Steinbeck, nem tão pouco, quase na íntegra, O Capote, de Tchecov. Fecho os olhos e relembro nitidamente o tenso embarque de Ingrid Bergman para Lisboa, em Casablanca, assim como vejo o carrinho de bebé rolar escadaria abaixo em Couraçado Potemkin. Mas onde está tudo o mais dos filmes que vi ou dos livros que li?
  Por vezes, o que eu já não recordava há muito surge inopinadamente e mistura-se com o que estou a pensar, ler ou escrever, não por associação de ideias, mas de súbito e sem nexo algum. Talvez seja o que, na pintura, se chama de ‘Pentimento’, ou seja, por vezes os pintores pintam um quadro mas, mais tarde, ou porque não gostam dele ou por não terem tela disponível, pintam outro por cima. Acontece que, com o tempo,  algumas imagens ou cores do primeiro quadro sobem e invadem a pintura do mais recente, criando imagens estranhas.
  Lembro-me agora da belíssima novela de Lillian Hellman (que deveria ter incluído na relação dos meus autores preferidos) com o título de Pentimento, um livro de memórias ficcional. Recordo pouco do texto, tenho que relê-lo, lembro melhor o filme Júlia, baseado num capítulo desta novela e em uma outra da autora, e da espantosa interpretação de Vanessa Redgrave e Jane Fonda. Um filme extraordinário e corajoso.
  Hellman nesse livro usa o ‘pentimento’ para explicar a mistura de sentimentos de épocas diferentes, um texto sublime como toda a prosa dela. Ela foi casada durante trinta anos com Dashiel Hammett, considerado como o pai do romance policial americano, de que a obra mais conhecida é O Falcão Maltês, que mereceu várias adaptações ao cinema, das quais a melhor e mais célebre é a do realizador John Huston e na qual Bogart desempenha o papel do detetive durão Sam Spade.


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