26. ROSEBUD
As novas gerações na
sua maioria não conhecerão O Mundo a seus
Pés (1941), em alguns países intitulado Cidadão
Kane, do jovem realizador e ator Orson Welles, um filme corajoso, inovador,
que desrespeitava a narrativa cronológica e as técnicas cinematográficas de
então, um marco na história do cinema, hoje considerado um filme de culto. Se
não viram, ou não se lembram, permitam-me recordar o enredo.
Na hora da morte, o
magnata da imprensa norte-americano Charles Foster Kane (um magnífico
desempenho de Welles) pronuncia uma última e enigmática palavra: Rosebud. Um jovem jornalista resolve pesquisar
no passado obscuro de Kane o que ela poderá significar. Na realidade, o filme
retrata o real dono de uma grande cadeia de jornais muito contestado, William
Randolf Hearst, que tentou impugnar a exibição, felizmente que sem êxito.
Finalmente, Rosebud é apenas um trenó pertença de Kane quando garoto e que nos
seus momentos derradeiros recorda-o a ser consumido pelas chamas.
Se eu tivesse sido um
mediático, influente e contestado editor, e ao morrer proferisse uma só
palavra, também enigmática, seria: Cabeda. E se por acaso algum jovem e
esforçado jornalista tentasse descobrir o que significava, ficaria espantado ao
saber que é uma pequena e insignificante aldeia da Estremadura, a meia dúzia de
quilómetros de Sobral de Monte Agraço, a cerca de cem de Lisboa.
Cabeda foi o meu shangri-lá quando era um miúdo, entre os
sete e os treze anos. Meu tio António (casado com uma irmã da minha mãe) era
meeiro há muitos anos de uma quinta de boa extensão (talvez uns 50 hectares,
imagino eu agora) e de boa terra mas com muita pedra. Era sobranceira à aldeia
e a água da fonte e do bebedouro, e do lavadouro público, emanava da nascente que
alimentava a grande horta do meu tio, a sua principal receita regular, e da
qual saíam semanalmente alguns camiões totalmente carregados de legumes dos
mais variados, desde o feijão-verde ao agrião, da cebolinha à couve portuguesa,
rabanetes, favas e ervilhas.
Não, não era esta
atividade hortícola que me encantava, mas não deixava de ir por lá para
arrancar alguma cenoura da terra e comê-la, ou mirar com curiosidade as moças
na sua tarefa, e para ouvir o seu canto aberto e alegre, de que gostava. Tão
pouco deixava de apurar os ouvidos para as conversas entre elas que eu achava
algo ‘picantes’.
O que me encantava
eram os campos de trigo, em especial depois de ceifado, por onde corriam
coelhos e lebres, as muitas árvores de fruta das quais colhia as madurinhas, os
vastos vinhedos, os muros de pedra solta, a vastidão, os pássaros e borboletas,
sapos, rãs e lagartixas que eu perseguia de brincadeira. Nascido e criado em
Campo de Ourique, aquele ‘mundo’, aquela vastidão, aquele isolamento, dava-me
uma sensação de liberdade. Descobertas e aventuras até então inimagináveis para
mim, eram um grande atrativo.
Os meus pais tinham
uma casa arrendada ao ano, na Parede, durante uns 4 ou 5 anos, dos meus 7 aos
11. Contudo, a família toda viajava nas férias grandes, todinha, com gato,
canários, papagaio, empregada, no dia 1 de julho para regressar no dia 31 de
agosto, impreterivelmente. Durante o resto do ano só lá ia alguém fazer
vistoria e limpeza. Apesar de a linha de comboios ser a mesma de hoje, sem
muita diferença, e da estação à casa serem poucos minutos, nesse tempo a Parede
eram poucas casas em volta da estação e campos, onde eu e os meus três irmãos
diabolávamos. Fora do período ‘oficial’ de férias na Parede, no resto do verão
e nas mini-férias, como o Carnaval e Páscoa, eu gostava de ir para a ‘quinta’, muitas
vezes sozinho, nem com algum dos meus irmãos. O meu pai ou alguém deixava-me na
‘camioneta de carreira’ (era assim mesmo que se dizia) que ia pela Nacional 115
e me largava perto de Cabeda, não sei avaliar a distância, talvez um ou dois
quilómetros, sei que uma parte era de ladeira, que enfrentava bem. Por vezes ia
por um caminho entre muros de pedras, chão com bastantes lajes, que a lenda
popular dizia ser romano.
A minha felicidade
começava ali. À minha espera, rabo a abanar com alegria, a ‘minha’ cadela
Lisboa lá estava. Fielmente, nunca falhava. Como? Ninguém sabia explicar, mas
quando ela desaparecia à hora da ‘carreira’, a minha tia proferia: “O Mário vem
aí!” Eu subia a tal ladeira, passava ao lado da aldeia e alcançava o casarão,
que apesar de rente ao caminho não tinha janelas para este e era construída a um
nível pouco mais abaixo.
Ao passar o portão entrávamos
numa varanda larga, em pedra, que ladeada os três lados da casa, toda coberta
de uma parreira densa de uva de mesa. Dela avistava-se uma paisagem ampla,
donde se via boa parte da quinta e, a perder de vista, colinas graciosamente
onduladas, com pastos, campos de cultura e pinheirais e, claro, muros de pedra
solta demarcando áreas ou propriedades ou caminhos. Ainda hoje consigo fechar
os olhos e revê-la, com os seus verdes e castanhos fortes, pequenos fiapos de
neblinas mas, predominante, o azul do céu e o manto prata da luz solar. Por
vezes, aqui ou acolá, discretas fumaças de alguma chaminé de casa isolada.
Como disse, da varanda
avistavam-se grandes pinheirais nas colinas distantes. Num final de tarde
abrasadora aconteceu um pavoroso incêndio num desses pinheirais. Correram
homens e mulheres de todas as aldeias em volta para atacar o fogo durante
muitas e muitas horas. Já a noite chegara e o fogo ainda não fora dominado. O
problema é que não havia água nas proximidades (eu conhecia bem o pinheiral) e
o combate era com machados, pás, enxadas… e ramos de árvores. Julgo que o
carro-tanque dos Bombeiros Voluntários (de Monte Agraço) não tinha condições de
se aproximar muito.
Da varanda eu olhava
abismado como tantos não conseguiam debelar o incêndio e, ao mesmo tempo,
surpreendia-me com o espetáculo dantesco, feérico e maravilhoso que admirava
confrangido, à distância, sem poder aquilatar o desastre que representava para
os donos do pinheiral e o perigo para quem lá estava, naquela luta insana
contra as chamas. Além do mais, a minha preocupação era grande porque o meu tio
evidentemente que para lá tinha corrido, seguido pelo seu fiel perdigueiro que
além das caçadas sempre o acompanhava. Eu gostava muito de ambos e temia o que
lhes poderia acontecer. Ao longe só se viam os vultos a correr desesperadamente
de um lado para o outro, não se distinguiam os rostos. À noite eram sombras
opacas que lembrariam um Teatro de Sombras se não fossem as labaredas por vezes
a agigantarem-se afastando para longe os atacantes.
Há bem pouco tempo
tive a oportunidade e o prazer de ler uma obra de António Manuel Venda, Uma Noite com o Fogo, em que ele
descreve, com o rigor e a beleza que lhe são peculiares, um incêndio em que ele
e o irmão lutam para dominar num pinheiral próprio, na Serra de Monchique. Ao
ler aquele belo texto, o pinheiral em chamas que vi em miúdo daquela varanda voltou
avassaladoramente à minha memória, com toda a nitidez e grandiosidade. Só então
pude realmente aquilatar a tragédia humana, além de ecológica e económica, que
representa uma floresta em chamas, que por vezes vemos tão distraidamente nos
ecrãs.
Na casa não havia água
canalizada, ela era transportada em grandes recipientes de latão para a cozinha
e os banhos. Como eu recordo os banhos numa imensa bacia de latão, e o cheiro
da água do banho ao ser despejada sobre a terra fora da varanda! Tão pouco
havia eletricidade, além das velas, as candeias a petróleo ou uns candeeiros
alimentados por uma pedra que, colocada na água, alimentava a chama, mas soltava
um cheiro estranho. Na cozinha dominava uma espécie de lareira em pedra,
majestosa, que albergava o fogão a lenha e onde se penduravam chaleiras com
água e panelas com sopa. Era o reino da Luiza, que além disso comandava as
mulheres na horta. Uma vida de tanto trabalho, sem descanso, mas ela nunca se
queixava e tinha muita paciência connosco.
Os quartos eram
espaçosos, alguns com janelas, outros ligados por portas uns aos outros (a
velha arquitetura portuguesa!), tetos altos forrados em tabuinhas. Neles eu
imaginava as mais incríveis cenas enquanto me deleitava com a maciez dos
colchões cheios com ‘camisas’ das espigas do milho. Havia duas salas
importantes, uma armazenava em montes nas tábuas do chão batatas, melões,
melancias, etc., sempre fresquinha. A outra era a sala de visitas, que
praticamente não apareciam, mas se aparecessem lá estavam os móveis da praxe, a
grande mesa com cadeirões, os aparadores pretos com serviços de porcelana e naprons, o relógio de pé badalando
quando devia. Curiosamente, e nunca entendi porque ali, uns estradinhos de ripas de
madeira pendurados do teto alojavam os queijinhos de cabra ou de ovelha postos
a ‘curar’. Ali? Talvez porque a sala mantinha as janelas fechadas e com
cortinas, meia obscuridade, por isso não haveria moscas em cimas dos queijos.
Ao lado da casa, uma
área grande em nível bem mais baixo, fechada para a rua e para a quinta por
muros, onde eram criados porcos e à noite refugiavam-se cabras e ovelhas. Para lá
eram lançadas as frutas já não comestíveis ou em excesso, restos de legumes e
cascas, tudo o mais que engordava os porcos grandes e brancos, turbulentos.
Logo adiante, um
comprido e alto casarão, de que a parte final com pouca luz servia para adega,
fechada, porta aferrolhada, onde se perfilavam tonéis e barris. Chão de terra, com
cheiro forte a vinho, resultado dos restinhos de copos que por lá eram jogados
nas provas dos vinhos novos e, claro, na ‘abertura’ da água-pé, acompanhadas
com chouriço na brasa. Todos estes cheiros ainda relembro.
Na parte mais à
entrada do casarão era o lagar, mais adiante a estrebaria, onde comiam nas suas
manjedouras quatro bois, uma ou duas vacas, uma égua e dois jumentos. A parede
lateral que dava para um vinhedo era muito alta, talvez mais de dez metros. Bem
no alto, aberturas servindo de janelas, sem vidros, substituídos por algumas
barras de ferro, numa das quais faziam o ninho um casal de milhafres. O curioso
é que estes nunca atacaram as galinhas e pintos que por ali ciscavam, apesar de
percebermos os seus voos mais longe nessa caçada.
Depois do casarão, um
imenso tanque quadrado, com um metro e tal de profundidade, armazenava a água
das chuvas utilizada em regas. Para minha alegria hospedava dezenas de rãs que rompiam
o ar com o seu coaxar constante. Não devo omitir que muitas vezes tentava atingi-las
com pedras arremessadas pela minha fisga quando elas se expunham em cima das
folhas de plantas aquáticas. Felizmente para elas, a minha pontaria era
deplorável. Penso até que na realidade não queria acertar-lhes, só assustá-las,
para ver o pinote que davam.
Ainda falando dos
animais, é muito importante informar que um dos burros, o Ginga, era ‘meu’,
claro que meu por decisão minha. A égua era muito alta para mim e meio
doidivanas, o outro burro era pequeno e feio, nunca o montava. Já o Ginga era
um companheirão. Além de o montar no final da tarde, quando todos os animais
eram levados à fonte na aldeia para saciarem a sede, indo eu no cortejo, cavalgando
vaidoso o Ginga, tinha várias oportunidades de o montar em pequenas folgas do
seu trabalho.
Certa manhã (nunca o
esquecerei!), estava na varanda, o portão para a rua aberto, quando eu vejo boquiaberto
uma junta de bois a arrastar pelo chão o Ginga, hirto, de pertas para cima.
Sim, isso mesmo, o meu amigão, o Ginga, estava morto, mortíssimo, percebi então.
Não acreditava, na véspera, horas antes, tinha cavalgado nele. Foi o meu
primeiro contacto com a morte, doloroso, inaceitável, inacreditável, injusto…
como sempre o foi para mim aceitá-la, mesmo mais ao longo da vida. Mas eu era
uma criança, ingénuo, como aceitar que me roubassem o meu amigo, o meu Ginga?
Chorei muito, fiquei desconsolado, quis voltar para Lisboa, tinha-se
desmoronado o teto do meu Shangri-lá.
Eu conhecia
perfeitamente toda a quinta, pois andava o dia inteiro de um lado para o outro
acompanhado da minha cadela Lisboa. Por vezes carregava um farnel numa tosca
mochila de pano e passava horas e horas a percorrer áreas fora da quinta, nas
colinas lá ao longe com pinheirais aprazíveis. Depois de comer algumas fatias
de pão com pedaços de queijinhos curados de cabra, bebendo depois água pelo meu
cantil, deitava-me no chão, em algum amontoado de folhas ou de ervas rasteiras,
usava como travesseiro a barriga de Lisboa, que, coitada, mal respirava para
não me perturbar, e ficava a contemplar o jogo de nuvens ou o voo majestoso, bem
lá no alto, de milhafres e águias. Ou o menos bonito e mais ruidoso dos corvos.
Será que sobreviveram até hoje?
Na quinta conhecia as
mais saborosas árvores de fruta e as uvas mais apetitosas, de que dia após dia
acompanhava o amadurecimento. Sem defensivos, sumarentas, comia-as com casca ou
descascava-as com o meu canivete suíço de que muito me orgulhava.
Quando o meu tio
contratara aquela quinta para cultivá-la (percebi depois que uma parte do que
cultivava era para o dono, em espécie ou produto, nuns casos um terço, noutros
metade), a maior parte dos terrenos ainda não tinham sido cultivados. Coube ao
tio António essa tarefa, que desempenhou com esforço e perseverança, por
etapas, com uma ou duas parelhas de bois atrelados a um arado, devagar, pois
tinha que despedaçarr na marreta algumas rochas, outras o
arado levantava-as da terra, mais do fundo. Estas pedras eram posteriormente
utilizadas na armação dos muros de pedra solta que desenhavam toda a quinta
caprichosamente.
Eu gostava de assistir
ao lavrar, mais do que em áreas já anteriormente aradas, naquelas em que o
lavrar era um verdadeiro desbravamento, um trabalho titânico, quase heroico,
que espalhava pelo ar um cheiro/gosto forte e acre muito característico. É o
cheiro da terra lavrada, conheço bem.
Mas do que eu mais
gostava era da eira na época da debulha. Para os que não sabem, uma eira é uma
área de pouco mais de meio hectare (6 ou 7 mil metros quadrados), de
preferência no alto de uma pequena elevação, onde vente razoavelmente. Para a
armar, primeiro há que lavrar o terreno, de seguida passar com o rolo
compressor para aplainar e compactar, depois regar com abundância. A seguir
entra um rebanho de ovelhas que ficam horas andando à roda na terra molhada
(esqueci de dizer que a eira é redonda, uma grande roda) para a compactar mais
com os pequenos cascos das suas patinhas, de forma a que a terra não fique nem
demasiado dura nem demasiado porosa. Tem a sua arte!
Uns quantos garotos,
os pastores das ovelhas, com umas varinhas e correndo por fora, obrigavam os
animais a andar rápido ordenadamente em círculos. Eu ficava de cócoras (como
via os garotos índios fazerem nos filmes de cowboys)
num caminho mais alto que passava mais acima da eira e ficava a ver o rebanho
que protestava com prolongados ‘més’. Visto assim de cima parecia uma cena de
filme mudo, mais precisamente Trabalhadores
a sair da Fábrica Lumière (de Louis Lumière), uma centena de operários a
sair dos portões, a se empurrarem uns aos outros, imagens tremendo, como me
parecia estarem as ovelhas, também se chocando umas com outras, certamente desorientadas
por aquele passeio sem sentido.
Enquanto se aprontava
a eira, o trigo amadurecia e aloirava, altivo ficava na expetativa da ceifa. Chegada
a hora, homens em mangas de camisa e barrete, mas principalmente mulheres
vestidas de cores garridas, as mais novas, de preto por algum luto prolongado
as mais velhas, todas de lenços cobrindo os cabelos, alinhavam-se na seara, e
com as suas foices afiadas começavam a derrubar com golpes certeiros o trigo
que ficava estendido no chão, a sua majestade de ouro ondulante chegava ao
final.
Logo a seguir, chiando
pelos caminhos, possivelmente ladeados de silvas com amoras ainda verdes, pois
as maduras os meninos e os pássaros já as teriam comido, chegavam ao local os
carros de bois, e homens que com forquilhas apanhavam do solo o trigo e o jogavam
no estrado dos carros de bois até formarem uma montanha vacilante. Os carros
voltavam a chiar até à eira onde os mesmos homens desarmavam a montanha que
ficava esparramada por toda a eira, quase com um metro de altura.
Com a entrada do ‘trilho’
começava a debulha. A debulha é o ato de tirar o grão do trigo (ou outro
cereal) das suas cápsulas naturais, o que é alcançado com o auxílio de um trilho,
uma espécie de ‘jangada’ de tábuas sobre uns seis rolos grossos de madeira,
estes com pregos grandes espetados e com cabeças enormes e salientes. Em cima
deste trilho são colocadas pedras bastantes para ficar bem pesado, preparado
para debulhar bem, ou seja, para as cabeças dos pregos soltarem o grão da sua
espiga. Uma parelha de bois puxa este trilho que um abegão (o condutor de bois)
vai conduzindo à roda da eira, horas e horas.
Eu pedia ao abegão
para me deixar ir em cima desse estrado, sentado num dos pedregulhos, à socapa,
pois o meu tio proibir-me-ia se soubesse, por representar algum perigo. Sentado
numa pedra ou deitado, o Sol a abraçar-me, eu entrava em transe a ouvir o canto-chão
que o abegão entoava, para animar os bois ou, sei lá, a ele mesmo. Mais tarde,
já não um menino mas gente, quando ouvia os cantos gregorianos recordava quase
sempre este monótono e simples canto-chão que me deliciara.
Além do mais, quando
as cabeças dos pregos rasgavam os caules do trigo, este soltava uma seiva
esverdeada (aliás saborosa) de cheiro muito agradável que eu aspirava com
júbilo, enquanto os bois e o seu condutor continuavam nas suas infinitas voltas
à eira. De quando em quando, o abegão parava os seus animais junto a uma cabana
de ramos de árvores (para um eventual descanso) para beber, mas não água como
seria aconselhável, dado o calor do sol escaldante, mas vinho. Sim, vinho tinto
de um ‘almude’ (recipiente em latão em forma de bilha, que através de um
triângulo aberto no alto do grosso gargalo marca a quantidade de vinho contida,
já que o almude é uma antiga medida para líquidos com cerca de vinte litros).
Ele erguia o recipiente pesado com presteza acima do seu rosto e deixava o
precioso líquido escorregar pela goela abaixo. Um estalo gutural de satisfação,
o passar da manga da camisa nos beiços e a volta à sua faina, com um olhar
cúmplice para mim. Vim a saber que esse vinho era parte da sua jorna.
Finalmente saía o
trilho e entravam homens e mulheres com forquilhas a tirar a palha para as
margens da eira, de forma a ficar apenas o grão e alguma palha. Com pás, os
grãos eram jogados bem alto e aí o vento levava para longe a puínha que ainda
restava do trigo, e este ficava pronto a ser ensacado. Uma batalha longa e
árdua que aqueles guerreiros, armados apenas de forquilhas e pás, venciam,
certo que apenas por uma estação, o milenar arrancar à terra com muito trabalho o seu alimento.
Passados alguns anos
numa das minhas viagens de campista por acaso acampei na época da debulha num
pinheiral. De manhã, ao dar uma volta ouvi um ruído pavoroso. Aproximei-me e lá
estava a autora: uma grande debulhadora toda em aço, fumegando, ensurdecendo
todos à sua volta. Fiquei revoltado, desarmei a minha tenda e fui para longe,
para bem longe daquele sacrilégio
Usufruí destas
regalias dos oito aos catorze anos, idade em que podia ir até lá desacompanhado
(outros tempos!). Terminou quando a minha tia se afastou do marido para ir
viver com o filho, quando este se casou e foi viver em Portalegre. Na verdade
ela odiava a quinta, a vida no campo, as fainas agrícolas e sentia a falta de
com quem tagarelar.
Todo o trabalho do tio
António foi de certa forma mal compensado, pois o dono da terra pouco antes
avisou-o de que precisava dela para um filho que ia casar e queria viver e
trabalhar naquela quinta. Pudera, agora que ela estava toda ‘aparelhada’! O
proprietário deu quatro anos para o tio António sair e nesse entretanto ele
comprou um terreno de cultura (em Freiria) onde construiu uma casa e plantou um
belo vinhedo.
Acompanhei a formação
do vinhedo e a construção da casa nos últimos dois anos que para lá fui. Ele
levava-me (de carroça ou de bicicleta) para me mostrar com orgulho ‘a obra’
(como eu sentia que ele gostava de mim por, talvez, adivinhar o meu grande amor
à terra e admiração pelo seu trabalho). Com curiosidade eu assistia ao tio
António outra vez a despedrar e sulcar a terra, a armar moirões e esticar
arames para a vinha se encostar, e finalmente a plantá-la ainda um nadinha.
Depois ele continuou por mais dois anos a sua maravilhosa faina sem eu estar
perto para poder apreciar. Felizmente viveu muitos anos e certamente no
princípio de Outubro, chamar os seus
amigos para a ‘abertura’ da sua água-pé.
Em Lisboa, nos
primeiros tempos, eu pedia notícias de como ‘iam as coisas’ ao meu primo Luís.
Até que um dia ele me falou que o pai tinha mudado para Freiria e abandonado
Cabeda. Nesse dia chorei. Discretamente, fui-me estender em cima da minha cama
e fiquei a recordar pedaço a pedaço aquela para mim maravilhosa quinta, como se
a estivesse a sobrevoar de um avião, a voar baixinho, ou a ver um filme documentário.
Lá estavam: a cadela Lisboa, o burro Ginga, os milhafres, o tanque e as rãs, a
horta, até a vindima e o pisar da uva (ouvia nitidamente a galhofa daquelas
raparigas a pisar as uvas com as saias arregaçadas), os campos de trigo louro a
ondular salpicados de papoulas, a corrida das lebres e o voo precipitado das
perdizes a fugir, o abegão a cantar, tudo, tudo.
Depois imaginei o meu
tio no último dia a visitar as terras que regara com o seu suor e a despedir-se
com saudade antecipada de cada árvore, de cada vinha, da horta, das leiras com
o restolho do trigo, de tanta coisa que ele plantara, cultivara, cuidara. Com
raiva? Com amargura? Sei lá. Só sei que eu, nesse dia, estava ao seu lado, sim,
com saudades de outros dias…
Uma neta dele e o marido, citadinos, melhor dito, lisboetas,
curso superior, respeitados profissionais liberais, quando se aposentaram foram
para lá viver.
Quem sabe se para
alegria do avô que nessa altura, certamente, já estaria a lavrar com vigor as
nuvens no infinito céu.
DeMOURA
***