DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

JAZZ E LITERATURA

6. JAZZ E LITERATURA
  Adoro jazz, como também a Bossa Nova. Contudo, antes e mais ainda, a música erudita. Enfim, sou um admirador e um consumidor de música, em geral, desde garoto. Tenho centenas de CDs de música clássica, de jazz e de bossa nova. Ainda não aderi às novas tecnologias, meio piratas, mas não por razões éticas,apenas porque deliberadamente não quero saber o como.
   Quando leio livros escuto música instrumental, e deixo a cantada para leitura de imprensa e outras ocasiões. Mas hoje quero falar só de jazz. É longa a lista dos meus preferidos, e variada, mas não up to date, talvez Wynton Marsalis seja o mais moderno. Os outros são por demais conhecidos: Miles Davis, Dizzy Gillespie, Count Basie, B. B. King, Gill Evans, Duke Ellington,  Louis Armstrong, Chet Baker, Charlie Parker (Bird),Stan Getz,Oscar Peterson, não na ordem de preferência, como instrumentistas, mas não só.  No jazz sinfónico, o extraordinário e melódico George Gershwin, maravilhoso. Cantores masculinos: Ray Charles, Cole Porter, mas quase todos os instrumentistas também cantam, como o Gillespie e o Armstrong. As três melhores cantoras: Mahalia Jackson (que eu, agnóstico, ao ouvi-la, vejo nitidamente o Deus poderoso ao qual ela  dirige as suas súplicas e agradecimentos), Dinah Washington e Bessie Smith. A seguir, claro, as mais celebradas: Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Sarah Vaughan, a que devo acrescentar Aretha Franklin,  Helen Merril, Nina Simone, Carla Bley e Shirley  Horn.
  Há algumas semanas, de volta do Brasil, para enfrentar aquelas longas horas noturnas naquela lata de sardinhas gigantesca, tão espetacular quanto preocupante, peguei um livro de bolso de edição brasileira (L&PM) de Julio Cortázar, uma antologia de contos intitulada A autoestrada do Sul, que como sabem é um dos seus contos mais emblemáticos, e dos mais loucos, ali incluído. Um relato de um enorme engarrafamento numa autoestrada para Paris, no qual os personagens não são tratados pelos seus nomes mas sim pelas marcas dos seus carros. Reli-o com prazer.
  A agradável surpresa: um conto dele que eu desconhecia, “O Perseguidor”, onde, apesar de não o citar pelo nome, mas sim por Johnny Carter, com mestria Cortázar escreve sobre a vida e o génio de Charlie Parker, mais conhecido por Bird. Uma maravilhosa e extensa análise (é mais uma novela do que um conto) do processo de criação do referido ‘monstro’ do jazz, da sua obsessão pelo tempo e dos seus, não poucos, tormentos privados. Passo a citar alguns textos (respeitando exatamente o estilo e grafia), para  vosso deleite:
  Diz Bruno, o narrador, jornalista residente em Paris, onde também se encontra Parker:
“Ninguém mais sabe quantos instrumentos ele já perdeu, empenhou ou destruiu. E em todos tocava como acredito que um deus é capaz de tocar sax alto, supondo-se que os deuses tenham renunciado às liras e flautas.”
 Porque depois da passagem de Johnny pelo sax alto não é mais possível continuar ouvindo os músicos anteriores e acreditar que são um não plus ultra; … Johnny passou pelo jazz como uma mão que vira a página e fim de papo.”
 “Mas só ele pode fazer o inventário do que colheu enquanto tocava, e provavelmente já terá passado a outra coisa, perdendo-se numa nova conjectura ou numa nova suspeita. Suas conquistas são como um sonho, ele as esquece ao despertar, quando os aplausos o trazem de volta, a ele, que está tão longe vivendo o seu quarto de hora de um minuto e meio.”
  “Mas nesse momento, dono de uma música que não facilita os orgasmos nem a nostalgia, de uma música que eu gostaria de poder chamar de metafísica, Johnny parece contar com ela para explorar-se, para morder a realidade que todos os dias se esquiva a ele.”
  E as palavras de Johnny/Charlie:
   “A música me tirava do tempo. Sei muito bem que isso é só maneira de dizer. Se você quer saber o que eu verdadeiramente sinto… acho que a música me fazia entrar no tempo. Só que aí é preciso acreditar que este tempo não tem nada a ver com… bom, connosco, por assim dizer.”
“… se eu conseguisse viver apenas como nestes momentos, ou como quando estou tocando e o tempo também se altera. Você dá conta de quantas coisas podem acontecer em um minuto e meio? E aí um sujeito, não só eu, mas também aquela dali e você e todas as pessoas, poderiam viver centenas de anos.”
“É um sax incrível, ontem fiquei com a sensação de estar fazendo amor enquanto tocava. Se você visse a cara da Tica quando acabei. Era ciúme, Tica?”
 Enquanto o ronco das turbinas ecoava forte lá fora, eu aprofundava-me na leitura e ouvia nitidamente, de memória, um espetacular solo do Bird, maravilhoso, envolvente, que me ajudou a ultrapassar o aborrecimento da viagem. Não pude, claro, deixar de me lembrar do excelente filme Bird, no qual Clint Eastwood nos apresenta magistralmente, como lhe é habitual, a trajetória de glória e derrota deste tão infeliz, quanto ímpar, saxofonista.
 Vem tudo isto a propósito de eu querer assinalar, aqui, o poder da escrita e o deleite da leitura, quando o autor é bom, muito bom como Cortázar.  Na realidade ele oferece-nos uma história de vida de Parker, romanceada e informal mas muito séria, com profundidade e humanidade, desse músico que se destruía compulsivamente pelas drogas e álcool, enquanto os amantes da sua música o ouviam bebericando alegremente. Texto que nos permite um melhor conhecimento desse saxofonista, mas também genericamente do jazz, como música renovadora e desafiadora, visceral e telúrica, que emanou da revolta e da esperança, da segregação social e da dor da negritude sofrida através dos tempos.
Sorte para nós, leitores, podermos, com a maior facilidade, ter acesso a estes textos. 

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