DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

BOA NOITE 2014 - BOM DIA 2015

     18  - BOA NOITE  2014   - BOM DIA  2015

  Ao terminar o último dia de 2014 apresento um lindo texto — não de minha autoria — com algumas centenas de anos, que pode ser interessante ao revermos o ano que finda e nos prepararmos melhor para enfrentar o que começa.

                          «DESIDERATA
  Caminha serenamente por entre a azáfama e o barulho dos homens e lembra-te da paz que é possível encontrar no silêncio. Tanto quanto possível, sem cumplicidade ou rendição, mantém boas relações com os teus semelhantes. Afirma as tuas verdades com clareza e com serenidade e escuta o que os outros têm para dizer, mesmo os simples, os inocentes e os ignorantes — também eles têm a sua história. Evita as pessoas agressivas, porque ferem e diminuem o espírito. Se te comparares aos outros homens podes tornar-te soberbo, arrogante e amargo, porque haverá sempre pessoas melhores e piores que tu. Goza os teus triunfos e o prazer de planear para o futuro. Mantém vivo o gosto pelo teu ofício ou profissão, por mais humilde que seja; é uma riqueza verdadeira e certa nas contingências da fortuna. Sê cauteloso nos negócios, porque o mundo está cheio de maldades e traições. Mas nunca deixes que essa cautela te cegue para a virtude que existe. Há sempre à tua volta muitos homens que lutam por altos ideais, e por toda a parte a vida está cheia de heroísmo. Aceita-te tal como tu és, e principalmente nunca penses no amor com cinismo porque face a toda a avidez e desilusão o amor é perene como a relva. Aceita generosamente o conselho dos anos que passam, e abandona sem mágoa as coisas que pertencem à juventude. Cultiva a força do espírito para te protegeres em caso de súbita desgraça. Mas não tortures o teu espírito com angústias imaginadas. Muitos medos e muitas angústias nascem da fadiga e da solidão. Mantendo uma disciplina fundamental sê tolerante contigo próprio. És filho do Universo tal como as árvores e as estrelas, tens direito ao teu lugar no mundo e, quer tu queiras ou não, o destino do Universo segue o seu devido curso. Por conseguinte, fica em paz com Deus, seja qual for o Deus em que acredites. E sejam quais forem as tuas labutas e aspirações, na confusão ruidosa da vida, fica em paz com a tua alma. Apesar de toda a mentira, do suor sem recompensa e de tantos sonhos fracassados o mundo em que vivemos é cheio de beleza. Sê prudente, E tenta sempre ser feliz.»
  (Encontrado na Old Saint Paul’s Church, Baltimore, datado de 1698)


   A veracidade da autoria e data desta Desiderata foi posta em dúvida por alguns, apesar de estar gravada na pedra na referida Igreja. Mas, o que importa quem escreveu, quando escreveu e porque escreveu? De qualquer forma é um pouco inocente para os dias de hoje, mas sábia e inspiradora. Mas porque não enfrentar o ano que começa com alguma candura e otimismo?
                                                        ***

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

MARIA AZEITONA

17.  MARIA AZEITONA
 Ainda a propósito de viagens e o que isso representa de surpresas e encantamentos. A minha primeira viagem ‘internacional’ aconteceu quando eu tinha apenas quinze anos (1939), a Espanha… e a pé.
   Fui passar uns dias nas férias grandes a casa do meu primo Luís, em Portalegre, e nessa cidade viviam dois colegas de Liceu, irmãos, que desafiei a irmos até Espanha, tão perto, e que eu estava louco por conhecer, mas eles não aceitaram o desafio. Contudo, numa festa de noivado para a qual me convidaram, numa parada por instantes da ruidosa música, apresentaram-me uma prima deles, mais velha, dizendo que ela iria a Espanha no dia seguinte. Gentilmente, ela convidou-me a acompanhá-la mas teríamos que partir muito cedo e voltaríamos à tarde. A rir, os primos tinham-ma apresentado como Maria Azeitona. Não percebi bem se eles riam por citarem uma alcunha e não o apelido verdadeiro, mas ela não reagiu e beijou-me nas duas faces como a um conhecido. Teria uns vinte e tal anos, cara redonda, amiga, um sorriso aberto, de formas generosas e uns olhos muito escuros e vivos que me mediam com curiosidade. “Estás mesmo preparado? Gostas de andar?”, perguntou-me. Estranhei a pergunta mas respondi afirmativamente, com convicção, apesar de muito bem saber que a Guerra Civil espanhola recém terminara, mais ou menos, pois era voz corrente que franquistas e republicanos ainda acertavam contas, aqui e acolá.
Às sete e meia da manhã fui ao encontro dela, no adro da Igreja na praça central, conforme havíamos combinado. Eu levava também mochila e nela parte de uma galinha assada e um pão alentejano e, na alma, muito entusiasmo. Ela beijou-me nas duas faces, como na véspera, estava séria e vestida com simplicidade e de mochila às costas. Começámos a caminhar, atravessámos a cidade já num despertar escondido e, em breve, continuámos pelos arredores de Portalegre, paisagem que já conhecia pelos meus passeios curiosos, salpicada de casas e quintinhas. Nestas o movimento já era muito, tratavam dos animais, e começavam a faina agrícola. Ao chegar a uma quinta pequena onde uma velhota estava a dar milho às galinhas, Maria beijou a mulher chamando-a de tia e depois continuou para os fundos onde havia um telheiro, junto do qual estava um rapaz que eu tinha visto na véspera com os meus colegas. Eles olharam-se e pareceu-me que nem trocaram bons dias. O rapaz olhou para mim e sem mais perguntou-me se eu já tinha andado de carroça. Respondi que sim, na quinta do meu tio em Cabeda. Ele repetiu “Cabeda”, “Cabeda”, a rir, e acrescentou: “Então vamos lá!”e levou-nos até uma carroça carregada de espigas de milho. Ele ajudou Maria e a mim a subir para o banco do cocheiro, não sem antes pegar nas nossas mochilas e colocá-las em cima das espigas, deu a volta e instalou-se no seu posto. Com uma chicotada seca no ar, as mulas começaram a andar.
Pensava que iríamos nos meter pela estrada normal utilizada por carros e camionetas na ida para Espanha, mas não, ele optou por uma vereda larga que subia pela Serra de São Mamede, deixando o Parque do mesmo nome à esquerda. O rapaz, ouvira chamarem-no de José, incitava a parelha a andar rápido. Eu e Maria estávamos encostados, lado a lado, e eu sentia o calor do corpo dela no meu braço esquerdo, e gostava de o sentir. Contudo quase não falávamos, nem tão pouco ela com o rapaz. Antes pensara que eram namorados mas agora estava certo de que não, agiam como indiferentes um ao outro. Tinha muita curiosidade de saber se o nome verdadeiro dela era mesmo Azeitona, mas não me atrevia a perguntar. Algum tempo depois José abrandou a marcha, talvez para poupar os animais e porque o caminho já começara a subir bastante. A paisagem modificara-se muito, extensos pastos onde as ovelhas se amontoavam vigiadas por cães e ao longe a cumeeira da serra marcava o horizonte. Muros em pedra solta dividiam as propriedades e, de quando em quando, alguns pinheirais. Velhas oliveiras retorcidas pareciam implorar por ajuda. De vez em quando algumas perdizes eram espantadas pelo barulho das rodas da carroça no chão meio empedrado. No alto, águias e milhafres olhavam-nos atentos. Nós percorríamos um caminho em terra batida e granito, possivelmente ainda do tempo dos romanos, suficientemente largo para um carro de bois, evidenciando os sulcos deixados por estes. Era este o meu país rural, pobre, de terra tão mal aproveitada, depauperada, igual a si mesmo há séculos, depois de o ter conquistado aos árabes, depois de tantos invasores o terem dominado.
  Chegámos a uma aldeia a que ela chamou de Alagoinhas, e mesmo na entrada junto a um cercado e a uma casa velha a carroça parou e nós descemos. Do campo surgiu um homem com roupas de trabalho na terra que pediu a José para encostar a carroça mais adiante, junto a um telheiro. Retirámos as mochilas da carroça e Maria com presteza ajudou-me a pôr a minha às costas e depois ajustou a sua, bem pesadona, nas suas. Entretanto já o rapaz levara a carroça sem sequer um adeus ou outra frase.
  Maria sorriu para mim e pronunciou um “agora vamos” com um misto de preocupação e determinação, e talvez de dúvida sobre a minha resistência. Enfiámos na aldeia onde ela entrou numa taberna, bebeu um copo de tinto e comeu dois bolinhos de bacalhau. Eu só bebi uma soda e paguei as duas despesas enquanto ela foi à casa de banho. Atravessámos a curta aldeia e voltámos ao mesmo caminho ‘romano’. Ela andava muito rápido, em largas passadas,  desconfiei que estava a testar-me, mas  eu conseguia acompanhá-la. Pouco depois ela abrandou o passo e ficou mais fácil conversarmos.
  Durante o percurso falámos muito pouco, mas mesmo assim Maria revelou-me que fazia esta viagem três vezes por semana, verão ou inverno, com sol ou chuva. Com naturalidade, confessou que era como ganhava a sua vida, o que de imediato não entendi. A paisagem continuava igual mas o calor aumentara. Felizmente além da mochila havia me precavido com um cantil, o que me tranquilizava. De terras de Espanha nada, ela dissera-me que era perto, já caminhávamos há algum tempo, e assim interpelei-a: “Maria, quando chegaremos a Espanha?” Ela riu alto e afirmou que já lá estávamos. Fiquei desiludido, esperava uma cena de cinema, cercas de arame farpado, soldados com capacete e cara de maus, empunhando espingardas com baionetas. “E a fronteira, os guardas onde estão?”, “É muito cedo, eles só andam a farejar por aqui mais tarde, e raramente. Eles preocupam-se mais com a estrada, em especial com as camionetas e camiões.” Perante a minha cara de parvo ela acrescentou que levava na mochila café, açúcar, sabão e não sei mais o quê, que vendia lá, e de lá trazia outras tantas coisas mais caras ou raras em Portugal, como os caramelos. “Desta forma — continuou ela — garanto uns tostões para viver.”
  Passado algum tempo atrevi-me a indagar: “E se os guardas aparecerem?”, “Ora, são como alimentos para uso pessoal, só trago um pacote de cada coisa. Já ando nisto desde os dezasseis anos e eu conheço todos os guardas portugueses, assim como eles a mim e à minha família.”
  Eu era um garoto de família citadina e burguesa, ingénuo, tonto, ainda não sabia as voltas que os adultos (e mais tarde percebi que também os garotos) davam (e dão nos dias de hoje) para conseguir um precário sustento, a sobrevivência a pulso. Ao voltar para a comodidade da casa dos meus pais senti-me um pouco constrangido por ter tanto com tão pouco esforço. Por isso, para financiar as minhas compras de livros e discos (tinha a minha grafonola) passei a dar explicações e a datilografar textos para conhecidos. Mas adulto, adulto mesmo, conhecer a realidade das dificuldades da vida, só o fui ser na Venezuela, emigrante, e como doeu!

   Chegados a uma pequena cidade, El Pino, por volta do meio-dia, Maria Azeitona encaminhou-se decidida para o centro da cidade que eu tentava olhar com curiosidade. A cidade encantava-me, mas na realidade nada tinha de muito diferente de outras pequenas cidades portuguesas, a não ser muito mais, mas muito mais, movimento e agitação, de pessoas e cavalos, mulas e bicicletas. Mas era uma cidade simpática e eu esforçava-me para achar tudo maravilhoso.
Pouco adiante chegámos a um jardim e Maria pediu para eu ficar por ali, ou dar umas voltas, mas para estar dali a três quartos de hora num largo que me apontou, redondo e rodeado de pérgulas muito floridas (sei só hoje que eram glicínias e buganvílias), com alguns bancos com muitos homens e mulheres à conversa. Ela afastou-se apressada e eu dei algumas voltas pelas cercanias a bisbilhotar as montras, e numa mesa de rua de um bar tomei outra soda. Voltei ao parque, ao largo florido, todos os bancos estavam vazios, as pessoas teriam saído para almoçar em suas casas. Mal sentei, Maria chegou sem mochila, bem penteada e refrescada, lavara a cara e maquilhara-se ligeiramente. Estava alegre e logo que se sentou puxou de uma bolsa de pano duas cervejas e com um sorriso passou-me uma. Pensei em recusar pois não bebia cerveja, mas hesitei em confessá-lo com medo de estragar a minha imagem de caminhador valente. Ela tirou ainda do saco dois papo-secos, dois queijos de cabra secos, pequenos, um naco de chouriço e uma navalha de ponta e mola e ofereceu-mos. Eu saquei o meu pão alentejano cortado às fatias e a galinha e repartimos tudo. Bebi a cerveja pelo gargalho e a malvada subiu muito rapidamente para os meus ouvidos e para o couro cabeludo. Tudo zunia um pouco mas aguentei firme e, à medida que comia, melhorava. Tentava recordar-me de um western a que assistira há pouco, com John Wayne, uma cena similar, mas no filme o cowboy e a mocinha aqueciam uma lata de feijão numa fogueira improvisada, enquanto nós roíamos um pão seco mas, sim, com um queijo gostoso. Mas eu estava contente.
  Acabada a ‘lauta’ refeição, Maria avisou-me que teríamos que esperar para voltar ao armazém (não sabia do que ela estava a falar) e que era bom descansarmos um pouco para enfrentarmos o regresso. Chegou-se mais para a ponta do banco e convidou-me a pousar a minha cabeça nas pernas dela para dormitarmos um pouco. Deitei-me no banco e encostei a minha cabeça naquela almofada, a verdade é que constrangido de início e entusiasmado depois. Maria logo adormeceu, parecia-me, de olhos fechados e respirando ritmadamente, enquanto eu, que pela primeira vez gozava da sensualidade de uma adulta, aquecia o meu rosto afogueado na tepidez daquelas pernas, escutava (?) o sangue dela a correr nas veias, ouvia a sua barriga a trabalhar e respirava o seu odor forte… e perturbador. Não conseguia dormir de tão excitado, até que Maria descuidadamente pousou uma das suas mãos na minha anca, eu estava deitado de lado. Para minha surpresa, preocupação e vergonha, isso excitou-me de tal forma que ejaculei, pela primeira vez sem a ajuda da minha mão. Não sei, não sei mesmo, se ela percebeu. Quero crer que não. Depois, quando nos levantámos do banco, fui até uma casa de banho pública no parque para me limpar tanto quanto possível.
  Como sempre, em grandes passadas atravessámos alguns quarteirões e chegámos a uma loja com um grande ‘Almacén Vargas’ pintado por cima da porta, que estava fechada. Ela bateu numa porta dos fundos, que logo se abriu. Entrámos. Em cima de um balcão estava a mochila dela já abarrotada. Uns quantos pacotes sobravam. Maria Azeitona perguntou-me confiante: “Não te importas que use a tua mochila?” Acenei apenas com a cabeça enquanto ela já colocava na minha mochila vazia, que retirara das minhas costas, os tais pacotes. Suspendeu-a para avaliar o peso, exclamou um “Aguentas bem, tu és forte.” (o que me encheu de alegria), e ajudou-me a colocá-la nas costas. Como o calor estava forte e eu vestia um casacão por causa do frio da madrugada, que despira, pedi-lhe para enrolá-lo e colocá-lo no topo da mochila. Ela assim o fez, parecia que estava a encilhar um cavalo, ideia que lhe terá passado também pela cabeça, tanto que me deu uma palmada na nádega e gritou um enérgico “vamos!”.
  Atravessámos de novo a cidade, àquela hora deserta pela ‘siesta’, alguns gatos e cães dormiam pelos cantos e à nossa passagem abriam displicentemente os olhos para avaliarem o perigo que poderíamos representar. “Porque temos que ir a esta hora com tanto calor?”, perguntei à minha companheira, possivelmente mais porque era o caminho para o fim daquela ‘amizade’, estávamos a encurtar o tempo de estar juntos. “Agora os ‘tipos’ estão a fazer a sesta à sombra das árvores, não nos incomodarão.”, retorquiu de modo maroto. Obviamente que não queria encontrar os guardas, apesar do que dissera. Ou talvez se referisse apenas aos espanhóis.
   Enquanto palmilhávamos de regresso por aquela paisagem agreste, agora envolta num mormaço palpável, a evaporação do solo e das plantas criava uma ténue e baixa neblina, eu sentia-me um herói, agora que também carregava contrabando e era portanto um contrabandista, como nos filmes, o que me enchia de orgulho apesar de ainda não ter qualquer consciência política, mas sentia-me adulto ao lado de Maria… não queria pronunciar Azeitona, pensei em Maria Olive, para finalmente em apenas Olívia.
  Chegados a Alagoinhas, tivemos de esperar um pouco pela carroça que estava a carregar. A mulher a quem Maria chamara de tia convidou-nos a esperar em sua casa, melhor dito na cozinha, muito grande em relação à casa, com uma ampla lareira onde um imenso fogão estava acesso, estaria sempre, em cima do qual muitos tachos e panelas fumegavam. Sem mais a senhora encheu duas malgas com sopa e entregou-me uma e outra a Maria. Estava uma delícia, mas não tive coragem de repetir, ao contrário de Maria que exclamou: “Oh Tiazinha está muito boa, vou repetir!” Ao servi-la de novo a tia encheu um copo de tinto e colocou-o à frente da sobrinha, que lhe agradeceu beijando-lhe a mão.
   A carroça chegou cheia de melões, mas o José estava mal-encarado, ou bebera muito ou alguma coisa não lhe tinha corrido bem. Durante todo o tempo da volta não soltou uma palavra e parecia incomodado com a minha conversa com Maria, em especial com as risadas frescas desta.
  Ao chegarmos a Portalegre a carroça parou para nós descermos, eu apertei a mão ao José e agradeci a boleia, ele resmungou apenas e logo que descemos saiu em disparada. Maria pegou a minha mão com naturalidade e encaminhou-se para uma mercearia num dos bairros. Entrou, pousou a sua mochila no balcão e aliviou-me da minha. Encarando um homem de cabelos já grisalhos disse apenas: “Este foi o meu companheiro hoje, Pai!” O homem olhou-me surpreso, com um trejeito de incredulidade (o que me enfureceu) e pronunciou um seco ‘Olá’. De furioso, não pronunciei sequer uma palavra. Maria (ou Olívia, já não estava certo) esvaziou as duas mochilas no balcão, enfiou a dela no ombro e deu-me a minha. Sem mesmo se despedir dos presentes, saiu puxando-me pela mão.
  “Vamos refrescar a goela!” falou a rir e alegre, sem me soltar a mão. Sentámo-nos numa pequena esplanada e ela mandou vir duas cervejas. Eu travei e substituí uma por uma limonada. Conversámos muito, pouco, muito pouco dela, que se escapulia de o fazer, em especial sobre mim e os meus familiares, hábitos e estudos, e de Lisboa, que ela não conhecia mas que amaria visitar. Um pouco precipitadamente, ofereci-lhe a minha casa, digo a dos meus pais, confiante na compreensão deles que os filhos tanto desafiavam. Dei-lhe o telefone lá de casa, ela ficou a olhar o papelzinho e depois olhou-me e disse: “És um querido! Gostei muito de te conhecer. Não acreditei que aguentasses a caminhada.” Levantou-se, eu também, ela colocou uma das mãos no meu ombro e beijou-me as pálpebras: “Tens uns olhos muito bonitos. Vais ter muitas namoradas.” Virou as costas e caminhou sem olhar para trás, enquanto eu, estacado, apreciava o seu andar e já sentia saudades. “Será que nunca mais a vejo?”, perguntei-me. Não, nunca mais a vi, nem tive notícias dela, pois nem me telefonou nem os primos voltaram para o meu Liceu. Eu também nunca mais voltei a Portalegre. Mas nunca me esqueci de Maria Azeitona, a minha secreta Olívia, uma terna recordação que acalentei por algum tempo, quem sabe se até hoje.
  Não, não foi bem uma viagem, mas foi importante para mim, para o meu imaginário. Outras foram muito mais significativas em termos pragmáticos, outras em que substituí a carroça pelos jatos, o pão com queijo por restaurantes famosos, a cerveja por vinhos recomendados. Foi uma viagem simples onde não conheci monumentos, museus, grandiosos edifícios. Mas por outro lado, sei que foi a minha primeira viagem ao mundo maravilhoso da mulher e do amor, da amizade e da camaradagem sem distinção de sexos.
   Sim, mais importante em termos práticos foram outras viagens, como a ida para a Venezuela, a minha primeira visita de volta a Lisboa depois de vinte anos ausente, e o meu regresso ao meu país, inesperado e definitivo, outros vinte anos decorridos. Quem sabe se falarei delas aqui?
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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH

16- OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH
  Como haviam divulgado, o Museu Van Gogh expõe mais obras dele, inclusive do período inicial, aliás muito sombrias, nem parecem pintadas por ele, mas não assim tantas mais do que anteriormente. A realidade é que não há assim tantos quadros de van Gogh, e o Prado, d’Orsay e tantos outros museus estão recheados de telas de Vincent van Gogh. Para compensar muitos quadros de outros conhecidos impressionistas. O certo é que Vincent (assinava assim muitas vezes) pintou não muitos quadros, talvez apenas três ou quatro centenas (não tenho essa informação) e em toda a sua vida só vendeu um quadro, O Vinhedo Vermelho, por uma bagatela. Vincent nunca foi autossuficiente, nunca casou, nunca foi feliz, um permanente fracasso. Foi professor, pregador, mineiro, mas viveu sempre com o apoio financeiro do seu irmão Theo, com o qual trocou uma correspondência muito interessante sob todos os pontos de vista, a pintura em especial. Por incrível que pareça, van Gogh viveu apenas 37 anos (1853-1890) e só começou a pintar aos 29 anos (em 1982), ou seja, só pintou durante oito anos, principalmente nos últimos três.
   Contudo, em 1884/85, ainda em casa dos pais, em pouco mais de um ano de prática obsessiva, alcança uma nova forma do tratamento da cor. O seu triunfo deve-se à tonalidade das cores e por criar uma separação entre a cor no quadro e a cor do objeto, criando a autonomia da cor. Ou seja, consiste em abafar a cor do objeto a favor da cor do fundo em variadas e fortes tonalidades. Neste período pinta quatro telas notáveis: o célebre e pungente Os comedores de batatas, o inovador Tecelão no tear, Busto duma camponesa com touca branca, um belo exemplo do seu cânone de beleza, e Natureza morta com Bíblia, uma clara rutura com o seu passado pessoal.
  Mais tarde, em Paris (1886/87) convive com muitos outros pintores e aprende muito. Os seus quadros revelam mais maturidade, entre os quais se destacam a melancólica Mulher sentada no ‘Café du Tambourin’,  Montmartre perto do moinho de cima e várias naturezas mortas onde ele abraça decididamente a arte japonesa. Gosto muito especialmente do Retrato de Père Tanguy, em que o modelo era o comerciante chinês de tintas baratas que ele usava.
  Em Arles (1988/89), dá-se a explosão da cor. Não são só os emblemáticos girassóis, mas também as paisagens a plena cor que nos envolvem como se estivéssemos a olhá-las numa manhã de primavera, e ainda extraordinários retratos de pessoas do povo, como em A arlesiana, O carteiro Joseph Roulin, O zuavo Milliet e La Mousmé. Instalado na Casa Amarela (cor com que ele a pintou), apresenta-a em vários quadros, assim como o seu quarto, como no emblemático O quarto em Arles, e as tão conhecidas cadeiras de palha com cachimbo (a dele e a de Gauguin). Nesse período ainda pinta o confrangedor Autorretrato com orelha ligada e o tecnicamente arrojado Exterior de café, à noite, na Place du Forum, em Arles.
  Depois é o asilo em Saint-Rémy (1889) de onde surgem os notáveis Seara com ciprestes,  Caminho de ciprestes sob o céu estrelado, O olival e A noite estrelada, que só por si notabilizariam van Gogh, em especial o último. E, como se não bastasse, ainda o viril e tenso pintor no seu último Autorretrato e um espantoso, pela cor, A sesta.
 A seguir, em Anvers (1989/90) pinta A igreja de Auvers, puro sofrimento e angústia em cor, e um remate fantástico à sua carreira de pintor, como que uma cena mestre de um filme de Hitchcock, Campo de trigo com corvos, o definitivo adeus à sua arte e à sua vida.
Vincent van Gogh teve como amigos grandes pintores e com eles aprendeu: Monet, Renoir, Pissarro, Degas, Seurat e Gauguin. Por ciúme deste, corta a sua própria orelha e oferece-a a uma putinha. Alucinado pelo absinto, em que Toulouse-Lautrec o viciara, suicida-se desesperado pela precariedade da sua vida e da sua carreira de pintor. E, contudo, van Gogh é hoje o pintor mundialmente mais conhecido. No imaginário popular, van Gogh é o melhor pintor de todos os tempos e os seus girassóis a sua marca, assim como as cores fortes e envolventes, o vermelho, o amarelo, o roxo… cores estas que infelizmente estão esbatendo pela má qualidade do pigmento.
A Mona Lisa, como quadro, e apenas como quadro, supera van Gogh em fama, mas experimente perguntar aos que estão na longa fila no Louvre quem é o pintor, e ficará surpreendido.
   Toda a sua obra é de uma lucidez e audácia ímpares na história da pintura. A sua pintura é à vez cerebral e emocional, os seus quadros expressam a solidão, a angústia, o medo da vida, o desprezo pelo convencionalismo, mas sempre uma contínua busca do belo através da cor, tão bem conseguida.
 Para muitos um louco, um marginalizado, mas ele na realidade foi um pioneiro e um génio incompreendido no seu tempo. Todos os seus quadros estão empastados do seu sangue e das suas dores, será essa a empatia que desperta em todos nós. Paz à sua alma!
  Milhões de pessoas foram nas últimas décadas, vão nos dias de hoje, irão no futuro, a Amesterdão para ver o Museu Van Gogh. Milhões de dólares enriqueceram, enriquecem e enriquecerão os cofres da cidade. Há cem anos que galeristas e colecionadores ganham milhões com a compra e venda dos quadros deste luminoso e infeliz artista, que morreu na miséria.
                                                      
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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

AS TULIPAS DE AMESTERDÃO

15 – AS TULIPAS DE AMESTERDÃO
Para aproveitar um provável verão de São Martinho, viajei a Amesterdão e, para nossa surpresa e prazer, a tradição aconteceu: quatro dias de sol. Será, talvez, a décima vez que visito esta incrível cidade (acho que o adjetivo está certo), o que não é estranho, pois viajo há seis décadas. Primeiro pela paixão de conhecer outras cidades e paisagens; segundo, porque criei várias agências de viagens (Caracas, Montreal, Londres, Portugal, aqui cinco), em diversas épocas, com as vantagens que por isso conseguia; terceiro, porque adoro visitar museus e amo (de paixão declarada) flores e plantas, e neste campo a Holanda é quase imbatível, certo que só quanto às cultivadas.
Flores na Holanda, para o vulgo, é igual a tulipas, mas não só, também todas as bolbosas que florescem. Importada da Turquia no século xvi, a tulipa (cujo significado original é turbante) tornou-se uma importante cultura na Holanda e as variedades e cores multiplicaram-se espantosamente. Bolbos e plantas, não só de tulipas como de lilases, dálias, íris, jacintos, narcisos e outras bulbosas representam hoje uma parte importante das exportações do país.
A uns vinte quilómetros de Amesterdão há um parque, Keukenhof, criado pela cooperativa dos floricultores holandeses, e são muitos, que garante que este jardim possui todos os espécimes de bolbos que dão flor. São 32 hectares de cor, um espetáculo inebriador ao qual felizmente já compareci vários anos, em abril ou maio, data também marcada este ano mas que por diversas razões transferi para agora. Acresce que para chegar ao tal parque, que se situa entre Haarlen e Leiden, atravessamos infindáveis campos de tulipas, das mais diversas cores, em grandes quadrados da mesma cor, um gigantesco tabuleiro a cores que, visto de avião, lembram as saudosas colchas de retalhos das nossas avós.
  E é também espantoso que existe uma ‘Bolsa’ de venda internacional de flores, onde nos painéis saltitam as cotações das rosas e tulipas, camélias e girassóis, em várias cidades do mundo… em vez do valor das ações do mundo financeiro. Dá-nos a esperança de que o belo natural da natureza ganha o apreço dos povos. É entusiasmante e faz lembrar o conselho do budista Li Bai: “Vende um dos teus pães e compra um lírio.”
  Não fomos à busca de tulipas, pois não era a época, mas de outras belezas: pinturas. O Museu Van Gogh esteve fechado cinco anos e agora reabriu com mais quadros do pintor e de outros pintores que o influenciaram, em especial impressionistas, além de mais documentação. É interessante a coleção de livros do pintor e ver como ele aproveitou (diria mesmo copiou) tanto a pintura japonesa nos seus quadros. O extraordinário Rijksmuseum esteve encerrado para obras dez anos e reabriu no ano passado com noventa salas. Sem dúvida, um sério rival para os Prado, Quai d’Orsay, Hermitage e MET. E como se não bastasse, há um excelente Museu de Arte Contemporânea, Stedelijk Museum, instalado num belo e moderno edifício. Todos a poucos metros uns dos outros.
 Estes museus, como os jardins e os campos de tulipas, os moinhos, e, sem dúvida, os canais e os edifícios em tijolo que os ladeiam e as barcaças de habitação lá atracadas atraem centenas de milhares de turistas. Alguns, com a curiosidade adrede do bairro da luz vermelha e dos cafés onde podem fumar o seu charro tranquilamente. É, além disso, uma cidade efervescente e charmosa, com muito que ver, mesmo para quem não visita museus.
  Faço fortes reservas às atividades marítimas das frotas holandesas na época das descobertas, assim como à sua cruel colonização. Mas admiro o povo holandês pelo seu pragmatismo e capacidade de trabalho, que conquistou grande parte do seu território ao mar (creio que sem outro exemplo) e construiu uma sociedade política e socialmente equilibrada.
   Por outro lado, também penso que os holandeses devem bastante ao nosso querido Marquês de Pombal por ter expulsado os judeus do nosso país, que, juntando-se aos judeus expulsos de Bruges e Antuérpia, experts em lapidação de diamantes, lá se instalaram com o seu know-how e relações, deslocando de Lisboa para Amesterdão a força do eixo do comércio mundial. Quem sabe se um dia o obelisco da praça Dam não será substituído pela estátua do nosso cruel estadista, que só atrapalha o trânsito da Avenida da Liberdade?
A[29211]  partir do século xvi os holandeses ocuparam uma posição de destaque no comércio internacional, em especial através da ‘Companhia das Índias Orientais’ e da ‘Companhia Holandesa das Índias Ocidentais’.
  Contudo, acho muito curioso o seu desempenho nas artes em geral. Aprecio muito a pintura flamenga, em especial pela sua amplitude em focar o homem, os animais, a natureza, com uma independência menos comum nas belas pinturas espanhola, francesa e italiana. Estas dependiam do mecenato, quase só pintavam de encomenda, os temas eram impostos pelos que encomendavam. Mecenato aristocrático e religioso, portanto  os temas eram cenas bíblicas, retratos de nobres e seus protegidos, propriedades, batalhas. Na Holanda a classe rica eram os comerciantes que não tinham mentalidade para o mecenato, mesmo que eventualmente comprassem quadros. Os artistas flamengos pintavam quadros que os negociantes (galeristas?) lhos vendiam, ou os compravam e negociavam em seu proveito.
  Naquela época, naquele país, esta é a verdade pouco divulgada, começou o mercado das artes, com as regras de qualquer mercado, exploradores e explorados, lucros e prejuízos, roubos e falsificações, leilões, tendo o dinheiro como o único padrão.

 Como é natural, nesta viagem não pude deixar de me lembrar da minha primeira visita a Amesterdão, nos anos sessenta do século passado, saindo do Brasil para Frankfurt (Feira do Livro) e que estendi até à Holanda, de comboio, para apreciar as montanhas e os campos (apesar de ter passagem aérea desse percurso). Não, não continuaria para a Lisboa, pois nesses tempos vinha à Europa mas não visitava Portugal, pois prometera a mim mesmo não o fazer enquanto Salazar estivesse no poder. Verdade que, numa outra viagem, numa noite de verão, em Tarragona (Espanha), deu-me a louca e decidi alugar um carro e incitava-me em voz alta: ‘amanhã estou lá!’. Mas não o fiz, nem sei bem porque não. Mesmo que fosse preso pela PIDE, creio que seria uma prisão curta. Mas poderia não ser, e eu tinha que tocar o meu negócio unipessoal no Rio, o meu sustento e o meu sonho. O estar tão perto de Lisboa e não poder ir abraçar os meus pais e irmãos era o meu Muro (de Berlim) pessoal.
Então, a minha editora brasileira era ainda pequena e eu viajava com poucos recursos. Na época, quando os meus amigos me perguntavam por quanto tempo era a viagem, eu respondia invariavelmente: “Três mil dólares” (claro ou outra quantia). O certo é que a viagem durava consoante o dinheiro, melhor dito, os dólares no bolso. Não havia cartões VISA, nem tão pouco estrelas naqueles hotéis em que pernoitava. Conseguia disputar reservas nos Centros de Turismo dos aeroportos, garantidas por depósito na hora, depois reembolsado. O imprevisível, as dificuldades, as interrogações, os pequenos triunfos temperavam essas viagens já tão emocionantes pela concretização de sonhos alimentados por tanto tempo. Aliás de tantas e tantas cidades que conheci, acho que foram Paris e Florença as mais mágicas, e logo Amesterdão e Barcelona. Porquê? Quantas conheci? Não sei, não me interessa, quero apenas saber quantas ainda conseguirei conhecer ou revisitar. Anos depois, comecei a viajar com tudo reservado, garantido, planeado, os hotéis com várias estrelas, restaurantes recomendados, táxis, carros alugados, já os aviões eram a jato, os aeroportos melhores, e é bom, muito bom, mas não deixo de ter saudades daquelas primeiras viagens em condições por vezes precárias, outras nem tanto, mas a juventude e o realizar de sonhos  superam todas as dificuldades.
  Voltando à primeira viagem a Amesterdão. Chegado à Estação Central reservei o hotel no Posto de Turismo. Isto é, não um hotel mas uma residencial, frente a um canal, não tão afastado, mas agora nem suspeito onde. Uma vivenda grande, talvez uma dúzia de quartos, o meu com uma casa de banho que servia ao meu e a um outro. O uso facultado através de um simples jogo de trincos. Quem usava fechava o trinco da porta do outro quarto e pronto. Se a sua porta estava com trinco, o jeito era esperar. O que não obstou que, distraído como sempre fui, não tivesse passado o trinco e, enquanto me duchava, entrou de rompante a hóspede do outro quarto que, apesar de eu não ser assim tão horrível, gritou assustada (?) e saiu. Depois fui pedir-lhe desculpas pelo ocorrido, afinal eram três espanholas e com elas vi parte do muito que há de interessante para ver naquela cidade. Uma das espanholas já  conhecia bem aquela cidade e o meu castelhano era na época bom. Além de que eram ‘guapas’ e desinibidas.
Porém, uma noite resolvi ir à Ópera, tanto por ser quase impossível assistir no Rio, na época, como porque queria conhecer o edifício por dentro e em função, o Concertgebouw Orkest. É nada menos que uma das casas de espetáculos com a mais perfeita acústica do mundo, um impressionante e imponente edifício em estilo renascentista holandês. Ao voltar tarde, isto é, seriam umas onze horas, talvez menos, pois começara às oito, todas aquelas ruas desertas (julgo que hoje não estariam, o nível de turistas está muito diferente), a porta exterior da residencial estava fechada. O dono, um russo ‘branco’ (fugido do comunismo), verificara no quadro das chaves que não havia nenhuma (sim, eu levara a chave comigo, esquecera de a deixar na receção), portanto pensou que todos os hóspedes estavam dentro e trancou o porta e foi dormir. Toquei à campainha, que me pareceu não funcionar (não estava, por causa da pintura do hall) e insisti. Depois utilizei a mãozinha de ferro que lá é comum, e nada. Desesperei. Onde ficar? Onde me abrigar do frio daquele outubro de temperatura já tão glacial para um carioca assumido? Enlouqueci e parti para pontapear a porta e soltar palavrões em português bem castiço, mas que a minha querida mãe não teria aprovado. Não tardou a que de uma daquelas janelas rentes ao chão, comuns nas casas holandesas, (são meias caves, pois o piso está abaixo da rua mas as janelas são amplas e altas), surgisse uma cabeça de mulher que perguntou: “O que se passa Senhor? A porta está fechada?” Com alívio, pois afinal aparecia alguém, afirmei: “Está fechada e a campainha não funciona e eu estou hospedado aqui.” Só então percebi que estávamos ambos a falar em português. Desci a escadinha, acerquei-me da janela e entabulei conversa com a patrícia, que era do Porto. Prolongámos a conversa (é sempre emocionante encontrarmos um patrício no estrangeiro), enquanto o marido lá de dentro buzinava “quem é?”. Por fim ela prontificou-se a telefonar para o dono do hotel, afirmou que ele tinha extensão do telefone no quarto, e foi o que ela fez. A porta abriu-se e afinal eu consegui alcançar a tão desejada cama. Ao deitar-me, lembrei-me de um trecho de As Minas do Rei Salomão, numa tradução de Eça de Queiroz, que eu direi mais ser uma recriação, apesar da boa autoria, em que num dos labirintos o explorador descobre que há muitas moscas e diz (quem? O Eça ou o explorador?) que “as moscas são como os portugueses, encontram-se em todas as partes do mundo.”

  Tenho andado meio perdido neste texto, como perdi o meu bom humor e me assustei e irritei nas ruas de Amesterdão, por causa das bicicletas. Muitas, milhões, uma praga, que vêm com velocidade de todos os lados, fora dos seus limites, e insultam e quase atropelam os pobres pedestres, os turistas totós que nas suas vidinhas estão habituados a passeios apenas para peões. Mas vamos lá, gostei muito desta viagem, primeiro, como já disse, porque a temperatura estava ótima e o céu azul. Depois, porque só por si os três museus a que me referi valem qualquer viagem.

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domingo, 14 de dezembro de 2014

IMAGINÁRIOS GANHADORES

14. IMAGINÁRIOS GANHADORES
 Há algumas semanas atrás, a Troika chegou de novo a Portugal, a primeira vez depois do fim da intervenção de ‘ajuda’ financeira, ou seja, a propagada e patética ´independência’ anunciada por Portas. Pompa e circunstância como o habitual, as figuras sérias em trajes formais e escuros atravessando os corredores ministeriais repetidas mil vezes nos noticiários, além do enxame de repórteres atrás de declarações.
 Como sempre, era manifesta a arrogância e a clara determinação desses enviados dos credores internacionais para vigiar a gaveta da caixa registadora do país ainda devedor. Entre outros temas, o aumento de vinte euros no salário mínimo. Um absurdo, porque terão os trabalhadores portugueses que receber aumento para um cafezinho diário (sem bolo), indagavam?
  Na primeira reunião, enquanto um empregado da cantina servia água, sumos, cafezinhos e bolos, os troikianos notaram algo que não lhes agradou, apesar de não conseguirem detetar de imediato o que era. Depois, entre eles, concordaram que os ‘sim-senhor’, os numerosos funcionários superiores de vários Ministérios, que sempre forneciam os mais recentes dados económicos e sociais, estavam diferentes, apáticos, distraídos, vagos. A suspeita surgiu pela boca do fmiano: “talvez a China ou os Emirados estivessem em negociações para pagarem a dívida de Portugal e ocuparem a posição de credores.” E lá se iam os jurinhos e, quiçá, os seus empregos. De imediato foram selecionados dois dos seus colaboradores para irem às ruas e assuntar o povo para descobrir o que acontecia.
  Exatamente 24 horas depois, os colaboradores reuniram-se com a comissão da Troika e contaram o que tinham descoberto. Muito simples: os portugueses, todos, todos mesmo, nesses dias deixaram de se interessar pela discussão do orçamento, pela percentagem de desempregados, pela confusa colocação de professores nas escolas e a não abertura das aulas, pelo volume da dívida pública, pela paralisação absurda dos tribunais… e tudo o mais que antes os afligiam. De momento, a grande preocupação era o chorudo prémio do Euromilhões, uns redondos 190 milhões de euros. Nada menos! Saíra para um compatriota de… Castelo Branco. Essa era a informação. Mas a quem concretamente?
A Troika tranquilizou-se, mas as mais variadas conjunturas multiplicaram-se, voaram de boca em boca, mas logo eram ultrapassadas por outras. Porque o ganhador não tinha aparecido para receber o prémio? Estranho! Teria morrido de um ataque de coração, ao saber que ganhara tanto dinheiro? Teria deixado o boletim do jogo no bolso da camisa que fora para a máquina de lavar e lá ter sido desfeito sem ele próprio se lembrar onde guardara o boletim? Teria o sortudo perdido o boletim do jogo em algum lugar e não sabia, nem saberá, que era um feliz sorteado? Teria o filho bebé roído o boletim até ter ficado irreconhecível para desespero do pai?
  Um matutino enviou um jornalista à agência em que fora preenchido o boletim ganhador, mas o Sr. António, o gerente, afirmou que deveria haver algum equívoco, pois conhecia todos os que lá jogavam e continuava a ver todos eles na sua pacata vidinha. Foi o suficiente para nas conversas de café entrar na baila a tese da Cabala. Sim, afirmavam alguns, perentoriamente, a Direção do Euromilhões, como o prémio já estava muito alto, e não havendo premiado, resolvera ‘inventar’ um premiado e, portanto, nenhum apostador iria receber. Pelo que a dita Direção resolvera forjar um boletim com os números sorteados, já após o sorteio e, por certo, teriam dividido o bolo entre eles. Esta notícia foi logo aceite como a razão mais natural e desencadeou profunda indignação. Alguns sugeriram que deveria ser constituída uma Comissão de Inquérito para deslindar o assunto. Também não tardou a que muitos indignados partissem para apedrejar algumas agências da CGD.
  Com tanto alarido e notícias desencontradas, todos, e cada um dos portugueses, imaginou-se ‘o premiado’. Porque não? Porque não eles que jogavam religiosamente todas as semanas? Muitos levaram tão a sério essa hipótese de serem o ‘ganhador’, convenceram-se de tal modo, que tiveram que ser assistidos nos hospitais. Infelizmente, um senhor de 85 anos acabou por falecer de AVC.
  Alguns noticiários enfocaram que, segundo a Lei, o premiado, se aparecesse para receber, teria que pagar ao Fisco 20% do prémio, exatamente 38 milhões. O que provocou outra onda de indignação entre os imaginários ganhadores que vociferavam: “um absurdo, um assalto, roubarem o ‘meu’ dinheiro!” Muitos escreveram cartas e enviaram mensagens para deputados e governantes a exigir a revogação de uma lei tão injusta e cruel.
  Entretanto, centenas de milhares de ‘sortudos’, imaginários mas convictos, elaboravam planos de como gastar esses ‘seus’ 152 milhões, que ainda ‘restavam’. Para uns, era a ajuda aos filhos, aos netos e à família em geral; para outros, dar a volta ao mundo num luxuoso navio de cruzeiros; a maior parte comprava uma casa fantástica para viver, dois ou três ponderaram comprar a de Ricardo Salgado que, pensavam, ele deveria estar a querer vender.
 Porém, o Sr. Manuel Alves ficou indeciso se comprava outra casa. Sim, a sua moradia é modesta, mas afinal toda a vizinhança é sua amiga, ali ele nasceu e se criou, todos os vizinhos tinham ido ao enterro da sua mãe e ficaram solidários com ele quando a mulher o abandonou, com duas crianças pequenas para criar. Mudar para onde ninguém o conhecia e não lhe daria os bons dias? Afinal, concluiu que o melhor era dar uma boa reformadela na casa, comprar um Renault, desses que estão anunciando, e ir de férias para o Algarve, umas semanas. Afinal, teria que ver bem para que dava aquele dinheirão, que felizmente ‘ganhara’, ele que ganhava 423 euros mensais, e a sua atual companheira, 226 euros de inserção social, teriam que pensar bem o que fazer do dinheiro. E falou isso mesmo com ela.
  Finalmente a mídia notificou que o premiado havia comparecido para receber o prémio, sem revelar o nome, idade ou profissão, e outros detalhes mais precisos, o que continuou a alimentar a desconfiança nos mais céticos. Mas em geral, o balão daqueles sonhos dourados rebentou como picado por um alfinete e cada um voltou ao seu dia a dia e preocupações: o que fazer com o garoto ainda sem professor; como e quando consertar o telhado da casa, pois chovia num dos cómodos; continuar mesmo desesperançado o envio de currículos para tentar emprego; continuar a visitar a velha mãe que mora numa aldeia longe, doente e solitária; tratar, assim que possível, de levar o velho carro para a oficina; tentar mais uma vez com o patrão algum aumento do salário há tanto tempo congelado, etc. etc. etc.

  Afinal é natural as pessoas que enfrentam uma vida difícil, um dia, por alguma razão mesmo sem nexo, sonharem bonito e jogarem para debaixo do tapete os problemas mais imediatos. Lembro-me bem que, quando vivia no Brasil, uma noite fui deitar-me às duas da manhã, desesperado porque o noticiário a que acabava de assistir dava como certo o uso da bomba atómico pela Rússia sobre a América, ou ao revés. Estávamos no auge da Guerra Fria e as reportagens eram assustadoras. Fui deitar-me, dormi inquieto e no dia seguinte ao levantar-me corri para a minha televisão, mas infelizmente ela não estava a funcionar por problemas de antena, o que acontecia sempre, e não consegui ver os noticiários. Desci para tomar um café e comprar algum jornal. No quiosque, o grande destaque era de dois jornais desportivos, num: “Jardel danificou irremediavelmente o joelho de Rubinho.”; no outro: “Rubinho por causa do menisco não jogará domingo.” Fiquei a reler as manchetes e a abismar-me como, para aqueles jornais, e certamente para os seus leitores, o importante era o próximo Fla-Flu. Saberiam que os russos ameaçavam lançar uma bomba atómica que pulverizaria todos os Rubinhos e Jardéis e o próprio Maracaná? Ou preferiam não saber?
 Enquanto me recordo desse dia estou a barbear-me. Olho-me no espelho e pergunto àquela cara ensonada e cheia de espuma: “E tu?”
  Eu? Eu sei, sei bem que neste exato minuto, dezenas de milhares de mulheres estão a ser violadas; que neste exato minuto, centenas de milhares de crianças estão a passar a mais absoluta fome; que neste exato minuto, milhares de velhos estão a morrer em camas ou macas de hospitais, abandonados pelos seus próprios filhos; que neste exato minuto, muitos milhares de assassinatos estão acontecendo; que neste exato minuto, milhares e milhares de famílias estão sendo expulsos das suas casas pelos bancos; que neste exato minuto, estão sendo roubados muitos e muitos milhões dos cofres públicos, por funcionários e políticos desonestos; que neste exato minuto, uma imensidade de jovens está a se drogar e a se destruir; que neste exato minuto, um milhão e meio de sírios, a maior parte mulheres e crianças, estão a viver na Turquia em frágeis tendas, onde faltam água, alimentos e remédios… e que o principal responsável continua impune e milionário; que neste exato minuto, milhões de metralhadoras estão sendo produzidas e vendidas para quem não as devia usar. Eu sei, eu sei tanto mais.
Olho-me no espelho, de barba feita, passo uma loção e vou ao meu dia. Atravesso o quarto e na TV ligada vejo os Senhores da Troika a dar a entrevista final sobre esta recente missão entre nós. Parece-me que não estão contentes nem otimistas com o país. Mas voltarão. Voltarão como abutres à volta da carniça. Virão raspar os últimos tostões da gaveta da caixa registadora do país 
                                                              ***

AS ZEBRAS DE LISBOA

              13.  AS ZEBRAS DE LISBOA
  O Rio é chamada de ‘cidade maravilhosa’, era-o realmente, talvez ainda hoje o seja, mas não tanto como quando Ary Barroso, na década dos sessenta do século passado, criou o seu hino, uma linda alegoria à alegria carioca.
  Acho que os turistas que vão pela primeira vez ao Rio deveriam preparar-se cuidadosamente para essa aventura, como os que vão para certas regiões e têm que se sujeitar a vacinas. Quando digo ‘preparado’ entenda-se apenas para se arriscar menos e poupar aborrecimentos. Uma orientação, mínima que seja, sobre táxis, metro, águas, contas de restaurantes, horários adequados ou, ao contrário, não, não mesmo, para aqui ou para ali, pontos dos carteiristas, uso de joias, trombadinhas, etc. e tal. O que serve também para qualquer outra cidade a visitar.
 A ‘viagem’ é atualmente um artigo de consumo obrigatório, diria quase que mais socialmente (família, amigos, vizinhos) do que de interesse individual. Os que fazem viagens curtas, conforme as ofertas das agências de viagens, em geral apenas levam consigo algum pequeno guia ou brochura com informação reduzida de restaurantes, hotéis e lojas para compras especiais, e breves notas sobre os lugares interessantes a visitar. Bastará, pois afinal o principal objetivo é o de fotografar, fotografar tudo, fotografar todos. De máquina fotográfica em punho, ou iPhone ou iPad, fotografam desde a escada do avião ao quarto do hotel, sim, também monumentos em passagem rápida, do alto de um autocarro city seeing, e o grupinho frente a qualquer outro local  tido como obrigatório.  Mais do que ver, sentir, cheirar e admirar… fotografar, para depois exibir essas fotos aos vizinhos e, talvez, quando mais velhos, para que lhes devolvam esfumaçadas recordações da Torre Eiffel ou do Coliseo de Roma.
   Mas há os que planeiam cuidadosamente as suas viagens para conhecer minimamente um país ou uma região, as suas belezas naturais e as construídas pelo homem, e o seu povo e a sua cultura. Para estes as viagens serão cuidadosamente antecipadas com leitura de bons guias de viagens e livros de arte, quando possível, de romances ou filmes em que a ação se ambienta nessa cidade. Mesmo assim, e mesmo que a visita seja mais longa, não será fácil captar totalmente o espírito da cidade. Bairros modernos e elegantes, onde de dia circulam milhares de pessoas e carros, às compras ou a caminho dos seus escritórios e lojas, ou de um cinema ou restaurante, às dez da noite podem estar assustadoramente desertos. Em compensação, velhos bairros degradados, com pouco movimento e quase só de pessoas de idade, às onze da manhã, doze horas depois surpreenderá pelas centenas de negócios iluminados pelos néones publicitários e incrível movimentação dessas lojas onde se vendem livros, discos, sandes, recordações, artigos esotéricos e de medicina alternativa, talvez drogas mais ou menos camufladas. Haverá, também, restaurantes (não faltarão os japoneses, chineses e tailandeses), bares, sex shops, barbearias… Possivelmente, em algumas ruas, infelizes de vários sexos e idades oferecem os seus serviços em roupas provocadoras, assim como nalguma esquina um velho tocará melancolicamente o seu acordéon ou um jovem andrógino sopra flauta lisa.
  Obviamente que as perspetivas do viajante serão diferentes se vai para Berlim ou Bruxelas, Amesterdão ou Oslo, Veneza ou Marselha, Paris ou Porto, Viena ou Genebra, Praga ou Barcelona, Roma ou Milão, São Petersburgo ou Madrid, falando só na Europa.
  No Brasil o leque não será menos aberto. Mas fixemo-nos apenas no Rio. Para mim, o Rio, enquanto cidade maravilhosa, mais do que uma cidade é, essencialmente, um estado de espírito, e por isso mais difícil de captar. É a praia (mas determinada praia, em determinada hora, em determinado sítio), é a cerveja estupendamente gelada e gostosa (em determinado boteco de uma esquina de Leblon, onde sei que reúnem os botafoguenses), é o ensaio de uma escola de samba (mas que seja o da Beija-Flor), é um jogo no Maracaná (de preferência um Fla-Flu), é uma caipirinha com um amigo em Santa Teresa (ao final da tarde), é o velejar na baía de Guanabara (sozinho e quando o vento sopra noroeste), é ouvir uma boa sambista (num bar da Lapa), é passear descontraidamente a ver as montras (claro, em Ipanema), é passear de mãos dadas com a namorada (nas áleas do Jardim Botânico). É tudo isso, mas aceitar também o furto do telemóvel da mesa do café ou um pequeno assalto na rua por ‘pivetes’, assim como a sujeira e a pobreza, num país tão rico.

Quando eu vivia no Brasil, um amigo viajou para Portugal e quando voltou eu perguntei-lhe: “Então, gostaste de Lisboa?” Ele olhou-me com ar feliz e soltou um “muito” entusiasmado. Voltei ao interrogatório: “E de que é que gostaste mais?” Ele não hesitou: “Das zebras, das passadeiras. É bestial. Colocamos o pé na primeira lista e os carros param imediatamente. É fantástico!”
  De certo modo, o meu amigo tinha razão, no Rio só os incautos atravessam as faixas de segurança sem olhar com atenção para os dois lados. Os prevenidos, por precaução, às vezes ficam quietos até algum carro mais apressado passar sem ligar a mínima ao transeunte especado. Ainda me lembro de uma ocasião em que eu e um outro amigo íamos atravessar uma rua pela passadeira, em Botafogo, ele segurar-me o braço e exclamar: “Não vás, ele já nos viu!” e olhava atento para um carro que ainda longe vinha disparado.
  Sei de vários portugueses que visitaram o Brasil e que ficaram admirados por verem, em especial à noite, os carros a não pararem nos sinais vermelhos. A explicação é simples, o motorista confronta a possibilidade de levar uma multa por desrespeitar os semáforos, contra outra de levar um tiro e lhe roubarem o carro.
  Quando eu voltei a Lisboa, nos finais do século passado, estranhei muito a calma e a descontração com que tantos pedestres avançam nas faixas, sem olhar para os lados e sem hesitações. Nem com o passar do tempo consegui habituar-me a ver isso, pois continuo a achar uma temeridade não tomarem a precaução mínima de olhar para os carros, pois com ou sem listas o motorista pode (mesmo que não deva) estar distraído, talvez falando no telemóvel, ou, mesmo tentando, não conseguir travar, por inoperância sua ou do próprio travão.
   Hoje acho que esse atravessar lento e aparentemente descuidado é, realmente, uma ostensiva demonstração do seu absoluto direito ‘de peão’. Até talvez estejam certos, já que os últimos governantes se empenharam tanto em abolir muitos dos seus direitos consolidados, até mesmo os constitucionais. Porque há de um reformado, a quem ‘roubaram’ parte da sua pensão, conquistada com tanto suor e esforço, correr dos carros quando aquelas listas de zebra lhe garantem o direito de preferência sobre os veículos. Têm sorte por essa ‘travessia’ não representar cifrões, pelo que a Troika não se ocupou do assunto.
   Por acaso[29211] , lembrei-me agora de um jovem romeno que, fora do expediente, como biscate, fazia a limpeza da loja onde funcionava a nossa agência de viagens em Londres. Uma vez, ele confessou-me que ficava na beira do passeio, frente a alguma passadeira, meio escondido, e quando conseguia a oportunidade jogava-se à frente de algum carro, de preferência topo de gama, quando o sinal mudava de verde para vermelho e o carro avançava um pouco na passadeira. Por vezes, algum chegava a tocá-lo ou quase, logo ele agilmente deitava-se no chão e ficava a berrar agarrado às pernas. Rapidamente conseguia um acordo de umas boas libras, pois os motoristas, mesmo sem se sentirem culpados, temiam a possibilidade de um processo. Quando lhe perguntei se não tinha medo de ser realmente atropelado e ficar com as pernas quebradas, ele riu e respondeu: “É isso mesmo que eu quero. Receberia uma alta indemnização e voltava para a minha cidadezinha na Roménia, talvez até com uma pensão vitalícia.”
  As recordações são como as cerejas, puxamos uma e logo vem uma enfiada delas. Essa loja em Londres de que falei atrás, a cinquenta metros da Oxford St., tinha uma ampla fachada toda envidraçada. Uma vez por semana, invariavelmente, verão ou inverno, com sol ou chuva, um senhor bem velho, a barba e o cabelo de um branco sujo, o rosto muito vincado de profundas rugas, vestindo uma roupa modesta e já bem surrada, parava no lado de fora da loja, com um balde e uma espécie de esfregona de borracha que pousava no chão, e ficava alguns momentos a olhar para a loja. Como ninguém saía a dizer-lhe alguma coisa, não hesitava, lavava com capricho e lentamente toda a vidraça, só a parte externa. Ao acabar puxava de um cigarrinho, acendia-o meticulosamente e ficava a aguardar. Alguém da loja então saía e dava-lhe já não me lembro quanto. Ele agradecia com um piparote na pala do boné, mas sem pronunciar uma palavra, e lá se ia com o seu balde e esfregona. Nunca entrou na loja, nunca pediu licença para lavar a vidraça, nunca fixou o preço do seu trabalho. Depois da primeira vez, funcionou pontualmente como um comboio inglês. Lavava algumas outras montras daquela rua, com o mesmo ritual. Possivelmente estava ilegal e assim, pensaria, driblava as leis britânicas.
  Quando eu via o velhinho naquela sua faina, invariavelmente me acudia à mente Thomaz, o inesquecível personagem de A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Certo que neste caso, a falta de juventude, encanto, mistério e charme afastava qualquer hipótese de ‘avanços’ alvoraçados das jovens das redondezas. Contudo, desde então, por vezes fico tentando adivinhar a nacionalidade daquele senhor e a razão de todo aquele ritual e sigilo. Teria ele lido o livro de Kundera? Era Tcheco?

  Ainda sobre as passadeiras de Lisboa. Acho que os génios que decidem de sua implantação nunca conduziram um carro, nem observaram o trânsito com atenção. Invariavelmente, elas estão pintadas a uns escassos dois metros das esquinas, o que significa, se é uma rua onde os carros dobram à direita, em ângulo reto, obrigatoriamente os carros ou estancam com uma travagem rápida, surpreendidos, ou não conseguem fazê-lo e avançam na faixa, em risco de atropelar algum pedestre menos ágil. Quando o motorista consegue parar e é seguido por mais carros, estes atravancam a rua de onde vêm ao ficarem parados para dobrar, ou para irem em frente, pois no espaço da esquina à passadeira só cabe, e mal, um carro... e está lá um.
     Não é pois por acaso que o maior número de atropelamentos nas cidades acontece exatamente nas ‘faixas de segurança’, como o demonstram as estatísticas. E apesar destes números, e apesar da enormidade de batidas nesses pontos, o serviço de trânsito não acorda. Porque não pintar essas faixas a pelo menos cinco metros das esquinas? Além do mais, obrigaria os pedestres a andarem um pouco, o que só lhes faria bem, e por vezes seriam poupados a um atropelamento. Enfim, os mistérios da administração pública municipal.

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quarta-feira, 29 de outubro de 2014

FANTASIAS

          12.  FANTASIAS
   Numa postagem anterior, falei da minha paixão à música, tanto bossa nova como jazz e, especialmente, música chamada clássica ou erudita. Contudo, a música foi, e talvez ainda seja, a maior frustração da minha vida. Explico porquê.
   A minha irmã Isabel (a mais velha e a única mulher dos cinco irmãos), estudava francês em casa, piano e não sei o que mais, ou seja, professoras a domicílio, como era a norma das famílias burguesas dos anos trinta. Pois bem, quando ela chegou ao sexto ano teve que estudar harmonia, certamente fora das atribuições da gorducha e simpática senhora que ia lá em casa lecionar piano, acho que duas vezes por semana. A solução foi a minha irmã matricular-se na Academia dos Amadores de Música, então na Rua António Maria Cardoso (hoje na Rua da Misericórdia).
  Mas, como uma menina de boa família na época não podia andar sozinha na rua, pois a vizinhança torceria o nariz a essa audácia e falta de decoro, lá fui eu escalado para a acompanhar no trajeto para a Academia. Eu, o terceiro dos irmãos, com apenas oito anos, como se um frangalhote pudesse ser um respeitável guarda-costas. Morávamos na Rua Quatro de Infantaria, a um quarteirão da Ferreira Borges e a dois da Silva Carvalho, onde apanhávamos o elétrico, que nos deixava exatamente na porta da Academia.
  Como eu ficava sem nada que fazer enquanto decorriam as lições da minha irmã, inscrevi-me no primeiro ano de piano e, em pouco tempo, a professora estava entusiasmada com o meu progresso e afirmava à minha irmã que eu tinha muita vocação. Um dia, o diretor da Academia passou casualmente na sala onde eu tocava, interessou-se em saber quem era eu, perguntou-me se eu tinha linhagem musical, não, não tinha. Saiu da sala para logo voltar com alguns dos seus alunos de anos mais adiantados para eles “verem como se colocavam os dedos no piano!”. Até hoje não sei como era, mas o certo é que ele, mais de uma vez, voltou a exibir a minha perícia ou habilidade.
  Por esta razão, fiquei bastante convencido que a minha vocação e vida futura seria a de pianista, claro de grande sucesso, e via-me de fraque, em maravilhosos palcos de todas as grandes cidades culturalmente de renome a ser entusiasticamente aclamado pelo público. Em casa praticava bastante, primeiro num pianinho caquético que havia sido da minha irmã, mas depois, atrevido, avancei para o belo Steinway, a melhor marca de pianos, pelo menos então, que o meu pai tão benevolentemente comprara para a Isabel.
   De quando em quando, era necessário afinar o piano, como é da praxe. Aparecia então um afinador, cego, vindo do Instituto Feliciano de Castilho, mesmo em Campo de Ourique. Ele vinha sozinho pelos passeios, atravessava as ruas, é certo que havia pouco movimento de carros. Andava devagar e com cuidado servia-se de uma bengalinha branca, equipada por uma sineta como a das bicicletas, com a qual ele alertava outros transeuntes e rompia a espessa escuridão dos seus passos. Angustiava-me vê-lo assim tão desprotegido, parecia-me um passarinho caído do ninho, tanto que, por vezes, quando ele saía lá de casa, segui-o para o acompanhar naquele passeio cego e incauto pelas ruas, em vez de mais inteligentemente lhe dar o braço e conversar com ele, mas tinha receio que ele se ofendesse.
   Lá em casa, ao afinar o piano, ele premia uma tecla de cada vez, esticava o pescoço e virava a cabeça para o alto, como que a perseguir no ar a nota emitida. Premia a tecla mais umas vezes, sempre a perseguir no espaço, para ele apenas densa escuridão, o som ideal. Ficava muito tempo nesta afinação, o que irritava alguns lá em casa, mas ao contrário a mim enfeitiçava-me. Eu queria atinar como ele ouvia, a mim mais parecia que os ‘via’, aqueles sons, e como os adestrava. Um dia, atrevi-me e perguntei-lhe o que me intrigava há muito, se ele via cores diferentes conforme as notas. Ele ficou algum tempo calado, o que me levou a pensar que ficara zangado comigo, mas depois muito delicadamente perguntou-me porque eu lhe fazia aquela pergunta, “não sendo eu cego”. E continuou, que sim, via cores conforme as notas, e a tonalidade, conforme soava mais forte ou mais fraca, ajudava-o a afinar o piano. Não terá sido assim exatamente que ele me falou, mas foi assim que entendi. Quando lhe falei que também via cores ao ouvir música de olhos fechados ele manifestou espanto e sorriu, como quem encontra um parceiro simpático. Pela primeira vi um sorriso naquele rosto tão triste.
  Na realidade, eu gostava de ouvir música deitado e de olhos fechados. Não tardava a sinfonia de sons que ouvia a rivalizar com a de cores que via, o que me divertia muito. Por isso, naquele momento, senti uma grande identificação com aquele cego, já tão velhinho, ou o era só aparentemente, penso agora, um senhor tão competente e tão misterioso que deixava o Steinway afinadíssimo.
    O que é curioso é que passados não muitos anos, no início da Segunda Grande Guerra, Disney lançou nos ecrãs de cinema Fantasia, um filme extraordinário que eu vi mais de uma dúzia de vezes. Apresentava oito peças musicais de grandes compositores, e criava histórias com pessoas e animais adequadas à música, em uma ou duas só com cores. Direção musical da Orquestra de Filadélfia pelo renomado maestro Leopold Stokowski.
   Apenas para informação, as músicas eram: “Tocata e Fuga em Ré Maior”, de Bach, “Uma Noite no Monte Calvo”, de Mussorgsky, “Suite Quebra-Nozes”, de Tchaikovsky, “Sinfonia Pastoral”, de Beethoven, “Sagração da Primavera”, de Stravinsky, “Dança das Horas”, de Ponchielli, “O Aprendiz de Feiticeiro”, de Dukas e “Ave Maria”, de Schubert.
  Apesar da sua beleza, teve críticas verdadeiramente idiotas, o filme não fez muito sucesso inicialmente, e só a partir de 1960 é que passou a ser tão apreciado quanto merecia. Felizmente em 2000 foi lançado em DVD, para minha alegria e de muitos milhares de melómanos.
  Mas, voltando ao afinador. Não sei a razão por que, enquanto o mirava na sua persistente busca dos sons, eu aliava o seu trabalho com o que se contava sobre o genial Beethoven, surdo, surdíssimo, que para compor tocava nas teclas do piano com a mão esquerda, enquanto encostava o ouvido no piso, e talvez a mão direita, para, imaginem só, pelas vibrações das tábuas alcançar a leitura da sua própria partitura. E eu, miúdo tonto, perguntava-me: “Será que aquele compositor, sem dúvida um dos maiores de todos os tempos, também via cores quando premia as teclas?” Quem sabe, talvez o dó em vermelho, quem sabe se o ré em rosa, porque não o mi em azul?
  Ao escrever estas linhas resolvi fazer uma experiência. Afundei-me na poltrona enquanto ouvia, de olhos fechados, durante algum tempo, a magistral interpretação de “The Art of the Fugue”, de Bach, por Glenn Gould. Adorei, mas não, não vi cores. Há muito que não fazia esta ‘entrega’. Afirmei que via cores ao ouvir música, quando jovem, em casa dos meus pais, e lembro bem que ficava estendido num divã junto das janelas da marquise que continuava a sala de jantar. Era lá que se encontrava a ‘telefonia’ barata, de marca Pilot, branca, que irradiava a Emissora Nacional, com programas de música clássica. A marquise era totalmente envidraçada e o Sol banhava o meu rosto, talvez por isso a razão das nuvens coloridas que me alegravam. Ou talvez, com a idade e falta de prática, tenha perdido essa maravilhosa faculdade. Seja como for, foram e serão momentos inolvidáveis para mim.

  Fiz o primeiro e o segundo ano de piano com bom aproveitamento e elogios da professora. No final do segundo ano, como é habitual, aconteceu um recital especialmente para os pais dos alunos dos vários anos. A minha professora, que tinha uma filha a aprender piano paralelamente comigo, teve a ideia luminosa de nos apresentar a tocar em conjunto, creio que uma valsa de Chopin. Começámos com desenvoltura, tínhamos ensaiado muito, até que a coleguinha se enganou. Eu, em vez de continuar a tocar, para dar a oportunidade de ela retomar o acompanhamento, parei, levantei-me do tamborete furioso e vociferei: “Eu bem sabia que não devia acreditar em mulheres de olhos verdes!” Foi uma gargalhada geral e, certamente, o ponto alto e mais divertido da apresentação. Devo dizer que a professora nos incitou a repetir e, dessa vez, tudo decorreu bem.
  Passaram-se oitenta anos, sim oitenta, e até hoje não consigo explicar a razão da minha sanha contra os olhos verdes, de que eu nem sequer tinha conhecimento. Felizmente que no decorrer da minha vida adorei e amei alguns olhos dessa bela cor.

  Comecei este texto a falar em frustração. Explico. Quando entrei no primeiro ano de Liceu, no Pedro Nunes, tinha então dez anos, inscrevi-me também no terceiro de piano na Academia. No final das aulas, à tarde, quando eu dizia que ia ter lições de piano, a chacota era geral, chamavam-me de maricas e outros nomes pouco simpáticos. A verdade é que naqueles anos os jovens não tinham a idolatria do rock, pois nem existia, os meus colegas desconheciam os grandes intérpretes de jazz, e para eles o piano era apenas para meninas. Os ‘machões’ não tocavam piano.
Fui dizer à minha professora que queria desistir do curso e expliquei-lhe as razões. Ela levou-me ao diretor que tentou convencer-me a continuar, mas eu estava inflexível, o meu prestígio masculino estava em jogo. O diretor sugeriu o violino, e lá fomos conversar com o professor deste lindo instrumento, que tanto apreciava e que continuo a adorar. A desilusão foi grande quando ele falou que, naquela idade, apesar de apenas dez anos, segundo ele, eu nunca conseguiria a flexibilidade necessária dos pulsos para ser um bom violinista. Desta forma, nem piano, nem violino, tão pouco tambores ou flauta lisa para encantar incautas, como na Mitologia. Desisti.
  A partir daí fui apenas ouvinte, um entusiasta e perseverante ouvinte, com muita alegria e uma boa coleção de CDs. Mas, lá no mais profundo do meu coração, quando ouço um Horowitz, um Glenn Gould ou um Pollini, Ashkenazy ou Argerich, sinto uma dorzinha no peito. Mas logo me conformo e grito para mim mesmo: “Não sejas parvo, aproveita enquanto podes ouvir com deleite estes maravilhosos intérpretes ou outros. Tu nunca serias um bom pianista, acredita!”
 Então, serenamente, coloco Maria João Pires a interpretar magistralmente os “Noturnos” de Chopin e o mundo volta a sorrir-me. Sou um felizardo.
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domingo, 26 de outubro de 2014

ROMANCE DE AMOR?


11.ROMANCE DE AMOR?
 Na última quinta-feira (23/10) fizemos um novo lançamento dos meus dois livros recém-publicados, no simpático espaço ‘Âmbito Cultural’, do El Corte Inglés, em Lisboa, uma sala ampla e com uma vista estupenda que o El Corte Inglés disponibiliza, gentilmente, para lançamentos de livros e outros eventos culturais. Além de ter adorado essa sala, apreciei muito a competência e amabilidade dos funcionários que se ocupam desta área, Ana Neves e João Faria. É maravilhoso colaborar com pessoas como eles.
   Tinha pedido ao meu amigo e excelente editor Carlos Veiga Ferreira, que, como é sabido, há alguns anos criou a conceituada Teorema, e que em 2008 a vendeu para a Leya, mas que, apesar disso, continuou à frente dessa editora. Porém desiludiu-se com a situação geral e resolveu sair e criar a Teodolito, para alegria dos bons leitores, pois continua a editar muitos dos seus anteriores autores e outros igualmente bons.
Veiga evocou as boas relações que mantinha com os meus irmãos Rogério e Rui, também editores, e lembrou que me conheceu na Feira de Frankfurt, onde eu e os meus irmãos éramos conhecidos por ‘Os Três Mosqueteiros’, quando lá nos encontrávamos, eles vindos de Lisboa e eu do Rio, pois então não podia visitar Portugal, por em tempos idos ter cometido o crime de… ser antissalazarista.
   Há um ano atrás, enviei ao Veiga um exemplar, em edição digital, de O Contador de Estórias, que ele nesse dia elogiou no seu conjunto e depois comentou conto a conto, com a inteligência e o humor que lhe são peculiares. O que, claro, me agradou imenso, já que ele não é um homem de pronunciar palavras não sentidas e é, sem dúvida, um rigoroso crítico literário. Haverá alguma benevolência graças à nossa amizade, mas foram para mim um estímulo, e por isso lhe agradeço.
  Desta forma, quando me coube falar, tentei explicar que sempre escrevi, mas apenas mentalmente, raras vezes fiz um rascunho, e os que porventura fiz, evaporou-os a voragem do tempo. A minha vida muito ocupada com as editoras que tive, em certos períodos com muitas dificuldades que me tiravam o ânimo, em outros, de situação folgada, que me proporcionavam ocupar o tempo em viagens e outros prazeres, como as amizades e eventos culturais, afastavam-me da escrita. Por outro lado, tinha que cuidar de quatro filhos e, ainda, de uma fazenda grande, em Teresópolis, a que me dediquei muito.
 Uma outra razão de peso, como editor achei sempre que não deveria publicar livros de minha autoria, pelo menos em editoras minhas.
  Depois destas ‘desculpas’, talvez esfarrapadas, acabei por revelar a Verdade, a verdade nua e crua. Apesar de pensar em escrever contos, de que gosto mais do que de romances, leitor voraz desde muito jovem, de milhares de obras, perguntava-me: “Para quê escrever se nunca poderei ombrear com contistas como Gogol, Tchecov,  Cortázar, Thomas Mann, Fitzgerald, O’Henry, Jack London, Mark Twain, Stefan Sweig,  Alice Munro, Virginia Woolf, Nabocov, para citar apenas alguns?” Como atrever-me a escrever um conto depois de ler Boneca de Luxo (Breakfast at Tifany’s), de Truman Capote?
  Então, perguntarão “porquê escrever e publicar, agora aos noventa anos?”  Bom, acho que nesta idade posso permitir-me muitas coisas e contar com a benevolência dos leitores. Sinceramente, hoje preciso de escrever para viver ilusões ou para relembrar cenas do passado, e modificá-las ao meu gosto, como eu gostaria que tivessem acontecido e não como aconteceram. Quase poderia citar aquele poema de Pessoa: “Poema em Linha Reta”, e cito apenas alguns versos: “Nunca conheci ninguém que tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” “Eu, que quando a hora do soco surgiu me tenho agachado / para fora da possibilidade do soco;” “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho. / Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”

  Por fim resolvi falar um pouco de O Escultor de Almas, romance escrito deliberadamente como tal e não, diria que acidentalmente, como O Roxo dos Jacarandás.
 ‘O Escultor’ foi o último livro que publiquei em edição digital (junho de 2014) e que em setembro lancei nas livrarias, em edição comercial. Como sempre, distribuí os cinquenta exemplares da edição digital exclusivamente para amigos e familiares. O retorno deixou-me perplexo, vários desses meus escassos leitores disseram: “mas, é um romance de amor!” Mas porque não? Deveria ser sobre zombies, fantasmas, monstros, gorilas, extraterrestres, erótico e mal escrito por uma mal amada, biografia de algum vulto histórico absolutamente inócuo, policial,  de branqueamento do nosso ditadorzinho…?
   E porque não sobre o amor? Eu acredito no amor, indiscutivelmente é o sentimento mais importante na vida humana. Eu amei muito e, estou seguro, fui também muito amado. Amar e ser amado é uma bênção, um privilégio. Mas mais que sobre o amor, ‘O Escultor’ é sobre uma relação amorosa, o que é muito diferente do amor propriamente.
 O amor é um mistério e um milagre. A relação amorosa é uma arte e o exercício de compreender o outro e aceitá-lo de ânimo aberto, assim como o de entregar-se abertamente. Caso contrário, essa relação é corroída como que pelo ácido sulfúrico.
  Na relação amorosa há sempre uma bomba-relógio de permeio: os filhos, ter ou não, criar assim ou assado, poucos ou muitos. Além de que o homem e a mulher vivem ‘os filhos’ de maneira diferente. O homem deseja ter filhos de forma mais intelectual, mais pragmática, por razões sociais, para a continuidade do seu nome e da sua personalidade, até da sua profissão. A mulher vive a gravidez e a maternidade visceralmente, com o coração, com todo o seu corpo e mente, com esperança, com altruísmo. De um modo que o homem não entende, não pode entender. A mulher tem absoluto direito a essa maternidade, a lutar por ela, mesmo em prejuízo de uma relação amorosa.
   Numa relação, há ainda uma outra bomba, e mais potente: a interrupção da gravidez, voluntária ou não, decidida pelos dois ou apenas por um deles. De qualquer forma, é sempre muito difícil e traumático para a mulher, deixa-lhe sempre angústias, mágoas, remorsos e frustrações. O homem aceita muito melhor essa situação, afinal nem a vive fisiologicamente. É possível que isso faça toda a diferença.
  Foi todo este quadro que tentei criar ao escrever O Escultor de Almas, mas não sei se com a arte e o engenho suficientes para transmitir a mensagem. Sim, o personagem masculino é um homem de sucesso, sim, ele ama muito a jovem que arrancou da favela, sim, ele moldou-a, esculpiu-a, por amor e para que a relação deles fosse equilibrada. Sim, o personagem feminino amava muito o seu amante, sim, ela desejava viver com ele, sim, ela queria ter um filho, custasse o que custasse. E quanto a isto não se entenderam. É isto um romance de amor? E se for?
Foi tudo isto que tentei explicar para os que tiveram a gentileza e paciência de me ouvir naquela sala do El Corte Inglés, enquanto lá fora o crepúsculo crescia. Presença que agradeço com sinceridade.

  Tentei ainda responder à pergunta no ar: “porque voltei a ser editor, quatro anos depois de deixar de o ser?” Mas porque não, se o fui durante seis décadas? Como respondi a um livreiro que me enviou um mail de boas vindas ao setor: “Estive internado nos ‘editores anónimos’ quatro anos, mas saí, não consigo livrar-me do vício.”
  Enfim, aqui estou, a aguardar a ressonância das minhas mensagens escritas, por um lado, e, por outro, disposto ao diálogo, como sempre franco e amigável, com os autores que me procurarem.

        * * *

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Páginas de Prazer

10.   PÁGINAS DE PRAZER
 Como escrevi anteriormente, no início de 1955, estava eu sem trabalho e sem qualquer negócio, pois havia saído deliberadamente da Editorial Andes. Por uma questão de ética, achei que não deveria criar, pelo menos de imediato, uma outra editora e publicar títulos de autores que publicara na Andes.
 Contudo, havia um autor, não da Andes, Hugo Schesinger, com o qual mantinha uma boa amizade, independentemente da área editorial. Ele organizava livros de referência, sobre indústrias e produtos de todo o Brasil, muito úteis naquela época e naquele imenso país em rápido desenvolvimento, que apareciam como edições de autor, e eram. Ele sugeriu que os editasse e distribuísse, pois o esquema de vendas dele era fraco e tinha pouco tempo para se ocupar da produção. Passei a editá-los, já nem me lembro com que chancela, e a distribuí-los. Publicava edições pequenas, que eram atualizadas constantemente, apesar de infelizmente não haver, então, o recurso a edições digitais. Estamos a falar de obras com informações atualizadas, indispensáveis num país imenso e em constante transformação e crescimento. Na realidade, esses livros vendiam bem, por serem únicos no género, e a venda era quase exclusivamente pelo correio, pelo que geravam uma boa margem de lucro.
Pensar nessas edições, hoje, dá-me até vontade de rir, pois qualquer dessas informações que esses guias prestavam, atualmente, em segundos, na net, cá estão.
  Esse meu amigo e autor dirigia uma grande fábrica de móveis de aço, em São Paulo, e insistiu para eu representar essa linha de modernos móveis para escritórios no Rio. Não era uma proposta sedutora para mim, mas entretanto nascera o meu terceiro filho. Topei!
 Não foi fácil, a concorrência era grande e desleal, principalmente nos fornecimentos para o governo, que era onde se ganhava. Consegui penetrar em alguns ministérios e secretarias, mas as concorrências eram publicadas de forma a respeitar acordos anteriormente estabelecidos entre os habituais fornecedores e os compradores. Era, é, o Brasil.
  Em toda a minha vida comercial sempre tentei seguir caminhos diferentes dos outros concorrentes, pois invariavelmente comecei independente de ricos e dos grandes grupos, portanto, com dificuldades.  Foi assim que achei por bem sugerir à fábrica que criassem um cofre sólido e pesado, mas pequeno, oitenta centímetros de altura e cinquenta por cinquenta de lados. Estes cofres pequenos são normais atualmente, mas na época, modelos deste tipo não eram produzidos.
 Consegui uma reunião com a direção geral dos Correios (então ainda no Rio, sede do governo, Brasília nem ainda era um sonho), e propus-lhes o tal modelo com um argumento de peso: nas agências, quando o(s) funcionário(s) durante o expediente, ou de um dia para o outro, eram revezados, como só havia um cofre, parava tudo para a conferência de existências. Ora, isso resolvia-se -- afirmava eu à Direção dos Correios -- se cada funcionário tivesse o ‘seu’ cofre, que fecharia e abriria com exclusividade. Vendi bem a ideia, em breve saiu o edital para a venda de quatrocentos e tal cofres com estas especificações. Ganhei facilmente pois a concorrência não poderia fabricar cofres com essas características rapidamente, enquanto nós já estávamos a produzir, no prazo estabelecido no Edital da Concorrência. Aquando da entrega, os outros fornecedores, por despeito, obrigaram o funcionário recebedor a serrar um dos cofres, para conferir se entre as paredes duplas havia amianto, como era exigido, e tinha. Foi uma boa venda.
  Entretanto eu organizara uma equipe de meia dúzia de senhoras para vender estes cofres para as madames. Argumento: lá podiam guardar as joias e os perfumes franceses, muito caros, e que estando à vista ‘evaporavam-se’ rapidamente. Três ou quatro vidrinhos pagavam o cofre. As vendedoras levavam uma lista de preços desses perfumes para exercerem essa aritmética.
  Contudo, apesar de, no ‘lavar dos cestos’, conseguir manter-me razoavelmente, queria sair deste tipo de negócio. Não me agradavam as relações que era obrigado a manter nesta área. Tratei de conseguir alguém de confiança para continuar essa representação, não queria deixar mal o meu amigo, enchi-me de coragem e… voltei ao livro, que era para mim o chamamento do oásis na travessia do deserto de aço.
  Com pouco dinheiro, teria que limitar as edições e concentrar-me a publicar somente em temas determinados, para poder ter  maior poder de oferta. Fundei a EDITORA PÁGINAS, só com duas coleções: Páginas de Cinema e Páginas de Teatro, temas absolutamente descurados pelos outros editores brasileiros. Fui o editor brasileiro que mais editou nesta área, e em língua portuguesa. O meu irmão Rogério Moura, na Livros Horizonte, publicou muitos dos livros publicados pela Páginas e editou muitos outros de sua seleção.
 A Páginas vendia bem em livrarias, porém o forte das vendas era pelo correio para os associados dos cineclubes, que nessa época proliferavam como cogumelos. E naqueles tempos de livrarias fracas nas cidades não muito grandes, no Brasil os transportes eram demorados e caros, os livros demoravam a chegar às pequenas livrarias, pelo que era uma vaidade receber um livro em primeiro lugar, antes de chegar às livrarias, pelo correio, para poder ler primeiro mas, também, para poder exibir aos amigos.
  Adorei esta editora, tanto pelos livros que publicava, pois sempre adorei cinema e teatro, como porque a sede era uma sala no 18º andar num edifício novo, no Largo da Carioca, nesses tempos o centro nevrálgico do Rio. Dela desfrutava-se de uma linda vista para o Convento de Santo António e para o casario velho construído pelos portugueses, nas ruas em continuação desse morro.
 Além de sede, a sala também era livraria, só de livros de cinema e teatro em diversos idiomas, e praticamente todos os publicados no Brasil. Falta mencionar algo de muito importante: num canto, funcionava um barzinho onde rolava o uísque e caipirinhas, na companhia de alguns salgadinhos.
  A frequência desta livraria era maioritariamente de quem trabalhava em cinema, TV e teatro. As conversas eram muito ricas e, por vezes, acaloradas. De realizadores posso citar Alex Viana, Nélson Pereira dos Santos, Lima Barreto, Alberto Cavalcanti, Glauber Rocha e outros. De artistas, uma longa lista que nem cito. De escritores para teatro e cinema: Augusto Boal, meu bom e saudoso amigo, fundador do Teatro de Arena também em Portugal, Vinícius de Moraes, Salviano de Paiva, Abdias do Nascimento, fundador e diretor do Teatro do Negro do Brasil, e outros. De alguns destes editei os seus livros.
  Ocorre-me relatar um evento interessante promovido pela Páginas.  Como o cineasta Alex Viana estava interessado em adaptar ao cinema Orfeu da Conceição, uma peça teatral de Vinícius de Moraes,  resolvemos promover uma leitura pelo próprio autor,  para um público de empresários, no excelente auditório da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Uma tentativa de encontrar um produtor ou patrocinador para o filme, que não conseguimos.
  Mais tarde, o realizador francês Marcel Camus interessou-se pela peça e realizou Orfeu do Carnaval, filme esse que ganhou a Palma de Ouro em Canes (1959) e o Óscar do melhor filme estrangeiro (1960). Trilha sonora de Tom Jobim e outros compositores brasileiros, não mencionados nos créditos. Essencialmente com intérpretes brasileiros, negros, é uma produção franco/italo/brasileira. Inspirado na Mitologia grega, de Orfeu e Eurídice, em que Eurídice (Marpessa Dawn) se apaixona por Orfeu (Bruno Melo), que tem uma noiva, a bela Mira (Léa Garcia), que se enfurece de ciúmes. O filme é lindíssimo e o seu ponto alto são as cenas do Carnaval, em que a Morte (belo desempenho do tricampeão olímpico de salto triplo Ademar Ferreira dos Santos) persegue Eurídice até que ela na fuga morre eletrocutada. Numa sessão espírita, Orfeu recupera o corpo de Eurídice, o que enraivece Mira e acaba por provocar a queda de Orfeu num precipício com Eurídice nos braços.
   Revi com muito prazer este filme há dias.
  Foi talvez a editora que me deu maior satisfação, mas que não durou tanto quanto desejaria. A razão foi que tive que largá-la para enfrentar um desafio maior, um voo muito alto que afoitamente resolvi enfrentar. Fui convidado para criar uma grande editora de Ciências Sociais pelo Prof. Bilac Pinto (deputado, senador, embaixador do Brasil em Paris), proprietário da maior editora de livros de Direito do Brasil, a Revista dos Tribunais. Era um homem de uma família muito rica, ligada à área bancária, mas principalmente muito culto, inteligente e correto.
  Deste convite nasceu a Editora Fundo de Cultura, da qual qualquer dia falarei.

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