4. O SEDIMENTO DAS MINHAS LEITURAS
Ao reler o que escrevi atrás, pareceu-me que dou a entender
que comecei a escrever porque aprendi a trabalhar num computador, e porque este
facilita mais a escrita. Mas não era o que eu queria dizer, é exatamente o
contrário, pois eu comecei a escrever porque, durante décadas, em vez de
navegar na net, li livros, milhares de livros, muitos milhares. Foram essas
leituras que me deram o embasamento para escrever e, talvez, para imaginar
estórias. Li, mal ou bem, os melhores e, talvez, os piores autores, textos
deste ou daquele género, neste ou naquele idioma, que domino bem ou menos bem,
isso não importa. Li os clássicos consagrados e os de sucesso recente,
românticos, policiais, de intriga internacional, humorísticos,ensaios, divulgação
científica, de aventuras, épicos, políticos, de viagens. Não ficção científica
nem biografias, que abomino, pouco de história mundial ou de Portugal.
Muitos americanos, possivelmente
tantos como europeus, bastantes espanhóis e sul-americanos, muitíssimos
brasileiros e, razoavelmente, os portugueses. Terei lido mais de seis mil
títulos, o que pode parecer muito, mas afinal leio desde os dez anos, o que até
aos noventa são oitenta anos, bem mais do que quatro mil semanas. Rara a semana
em que não leio um livro, sem contar os fins de semana, em especial os
chuvosos, em que posso ler dois ou três.
O que ficou? Muito?
Pouco? Não sei! A verdade é que hoje ao escrever temo plagiar inconscientemente
um escritor que tenha lido há décadas, um conto, uma ideia, um personagem, um
diálogo, que me tenham marcado bastante, sem sequer conseguir identificar ou
disso ter a noção.
No meu primeiro livro
de contos, O Contador de Estórias, agora com uma edição comercial, mas
do qual antes encomendei uma pequena edição digital para amigos e familiares,
incluí um conto sobre touradas: “Miúra”. Ao lê-lo, uma amiga alertou-me que
Torga escrevera um conto com título idêntico. Fiquei preocupado, já que fui um
leitor assíduo desse notável escritor português, em especial dos Contos da
Montanha, mas não me lembrava de ter lido algum com este tema e título,
apesar de recordar vários. Corri a comprar uma antologia que incluía esse
texto, e li-o, mas felizmente não há qualquer semelhança. E se eu tivesse
repetido frases ou situações desse conto, 75 anos depois de o ter lido, como
reagiria?
Eu creio que de
cada romance, conto, poema, filme, conferência ou simples conversa, fica sempre
em nós qualquer coisa que se incorpora a um ‘sedimento’ onde se aglutina toda
essa poeira de vagas recordações, sedimento esse que se aloja não sei onde e
que não é estático. Dizia Neruda, em Confesso que Vivi: “Estas memórias
ou recordações são intermitentes e por vezes fugidias na memória. Muitas das
minhas recordações desvaneceram-se ao evocá-las em pó…”
Claro, lembro-me
perfeitamente de frases, personagens e ideias de livros que li há muito, ou
filmes que vi, contudo esqueci (será?) o que li ou ouvi há semanas ou há muitos
anos. Oiço agora, e nas horas e locais mais inesperados, “Mi compañero se murió
a las cinco de la mañana”, declamado por Maria Barroso, ou, pela voz do saudoso
Villaret: “Vou-me embora pra Pasárgada”. E tudo o mais de Llorca e de Bandeira, que ouvi e li, e gostei, onde
estão?
Também não esqueço,
enternecido, a cena final da mulher dando de mamar ao velho esfomeado, em Vinhas
da Ira, de Steinbeck, nem tão pouco, quase na íntegra, O Capote, de
Tchecov. Fecho os olhos e relembro nitidamente o tenso embarque de Ingrid
Bergman para Lisboa, em Casablanca, assim como vejo o carrinho de bebé
rolar escadaria abaixo em Couraçado Potemkin. Mas onde está tudo o mais
dos filmes que vi ou dos livros que li?
Por vezes, o que eu
já não recordava há muito surge inopinadamente e mistura-se com o que estou a
pensar, ler ou escrever, não por associação de ideias, mas de súbito e sem nexo
algum. Talvez seja o que, na pintura, se chama de ‘Pentimento’, ou seja, por
vezes os pintores pintam um quadro mas, mais tarde, ou porque não gostam dele ou
por não terem tela disponível, pintam outro por cima. Acontece que, com o
tempo, algumas imagens ou cores do
primeiro quadro sobem e invadem a pintura do mais recente, criando imagens
estranhas.
Lembro-me agora da
belíssima novela de Lillian Hellman (que deveria ter incluído na relação dos
meus autores preferidos) com o título de Pentimento, um livro de
memórias ficcional. Recordo pouco do texto, tenho que relê-lo, lembro melhor o
filme Júlia, baseado num capítulo desta novela e em uma outra da autora,
e da espantosa interpretação de Vanessa Redgrave e Jane Fonda. Um filme
extraordinário e corajoso.
Hellman nesse livro
usa o ‘pentimento’ para explicar a mistura de sentimentos de épocas diferentes,
um texto sublime como toda a prosa dela. Ela foi casada durante trinta anos com
Dashiel Hammett, considerado como o pai do romance policial americano, de que a
obra mais conhecida é O Falcão Maltês, que mereceu várias adaptações ao
cinema, das quais a melhor e mais célebre é a do realizador John Huston e na
qual Bogart desempenha o papel do detetive durão Sam Spade.
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