DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O sedimento das minhas leituras.

4. O SEDIMENTO DAS MINHAS LEITURAS


Ao reler o que escrevi atrás, pareceu-me que dou a entender que comecei a escrever porque aprendi a trabalhar num computador, e porque este facilita mais a escrita. Mas não era o que eu queria dizer, é exatamente o contrário, pois eu comecei a escrever porque, durante décadas, em vez de navegar na net, li livros, milhares de livros, muitos milhares. Foram essas leituras que me deram o embasamento para escrever e, talvez, para imaginar estórias. Li, mal ou bem, os melhores e, talvez, os piores autores, textos deste ou daquele género, neste ou naquele idioma, que domino bem ou menos bem, isso não importa. Li os clássicos consagrados e os de sucesso recente, românticos, policiais, de intriga internacional, humorísticos,ensaios, divulgação científica, de aventuras, épicos, políticos, de viagens. Não ficção científica nem biografias, que abomino, pouco de história mundial ou de Portugal.
   Muitos americanos, possivelmente tantos como europeus, bastantes espanhóis e sul-americanos, muitíssimos brasileiros e, razoavelmente, os portugueses. Terei lido mais de seis mil títulos, o que pode parecer muito, mas afinal leio desde os dez anos, o que até aos noventa são oitenta anos, bem mais do que quatro mil semanas. Rara a semana em que não leio um livro, sem contar os fins de semana, em especial os chuvosos, em que posso ler dois ou três.
  O que ficou? Muito? Pouco? Não sei! A verdade é que hoje ao escrever temo plagiar inconscientemente um escritor que tenha lido há décadas, um conto, uma ideia, um personagem, um diálogo, que me tenham marcado bastante, sem sequer conseguir identificar ou disso ter a noção.
  No meu primeiro livro de contos, O Contador de Estórias, agora com uma edição comercial, mas do qual antes encomendei uma pequena edição digital para amigos e familiares, incluí um conto sobre touradas: “Miúra”. Ao lê-lo, uma amiga alertou-me que Torga escrevera um conto com título idêntico. Fiquei preocupado, já que fui um leitor assíduo desse notável escritor português, em especial dos Contos da Montanha, mas não me lembrava de ter lido algum com este tema e título, apesar de recordar vários. Corri a comprar uma antologia que incluía esse texto, e li-o, mas felizmente não há qualquer semelhança. E se eu tivesse repetido frases ou situações desse conto, 75 anos depois de o ter lido, como reagiria?
    Eu creio que de cada romance, conto, poema, filme, conferência ou simples conversa, fica sempre em nós qualquer coisa que se incorpora a um ‘sedimento’ onde se aglutina toda essa poeira de vagas recordações, sedimento esse que se aloja não sei onde e que não é estático. Dizia Neruda, em Confesso que Vivi: “Estas memórias ou recordações são intermitentes e por vezes fugidias na memória. Muitas das minhas recordações desvaneceram-se ao evocá-las em pó…”
 Claro, lembro-me perfeitamente de frases, personagens e ideias de livros que li há muito, ou filmes que vi, contudo esqueci (será?) o que li ou ouvi há semanas ou há muitos anos. Oiço agora, e nas horas e locais mais inesperados, “Mi compañero se murió a las cinco de la mañana”, declamado por Maria Barroso, ou, pela voz do saudoso Villaret: “Vou-me embora pra Pasárgada”. E tudo o mais de Llorca  e de Bandeira, que ouvi e li, e gostei, onde estão?
 Também não esqueço, enternecido, a cena final da mulher dando de mamar ao velho esfomeado, em Vinhas da Ira, de Steinbeck, nem tão pouco, quase na íntegra, O Capote, de Tchecov. Fecho os olhos e relembro nitidamente o tenso embarque de Ingrid Bergman para Lisboa, em Casablanca, assim como vejo o carrinho de bebé rolar escadaria abaixo em Couraçado Potemkin. Mas onde está tudo o mais dos filmes que vi ou dos livros que li?
  Por vezes, o que eu já não recordava há muito surge inopinadamente e mistura-se com o que estou a pensar, ler ou escrever, não por associação de ideias, mas de súbito e sem nexo algum. Talvez seja o que, na pintura, se chama de ‘Pentimento’, ou seja, por vezes os pintores pintam um quadro mas, mais tarde, ou porque não gostam dele ou por não terem tela disponível, pintam outro por cima. Acontece que, com o tempo,  algumas imagens ou cores do primeiro quadro sobem e invadem a pintura do mais recente, criando imagens estranhas.
  Lembro-me agora da belíssima novela de Lillian Hellman (que deveria ter incluído na relação dos meus autores preferidos) com o título de Pentimento, um livro de memórias ficcional. Recordo pouco do texto, tenho que relê-lo, lembro melhor o filme Júlia, baseado num capítulo desta novela e em uma outra da autora, e da espantosa interpretação de Vanessa Redgrave e Jane Fonda. Um filme extraordinário e corajoso.
  Hellman nesse livro usa o ‘pentimento’ para explicar a mistura de sentimentos de épocas diferentes, um texto sublime como toda a prosa dela. Ela foi casada durante trinta anos com Dashiel Hammett, considerado como o pai do romance policial americano, de que a obra mais conhecida é O Falcão Maltês, que mereceu várias adaptações ao cinema, das quais a melhor e mais célebre é a do realizador John Huston e na qual Bogart desempenha o papel do detetive durão Sam Spade.


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