11.ROMANCE DE AMOR?
Na última quinta-feira
(23/10) fizemos um novo lançamento dos meus dois livros recém-publicados, no
simpático espaço ‘Âmbito Cultural’, do El Corte Inglés, em Lisboa, uma sala
ampla e com uma vista estupenda que o El Corte Inglés disponibiliza,
gentilmente, para lançamentos de livros e outros eventos culturais. Além de ter
adorado essa sala, apreciei muito a competência e amabilidade dos funcionários
que se ocupam desta área, Ana Neves e João Faria. É maravilhoso colaborar com
pessoas como eles.
Tinha pedido ao meu
amigo e excelente editor Carlos Veiga Ferreira, que, como é sabido, há alguns
anos criou a conceituada Teorema, e que em 2008 a vendeu para a Leya, mas que,
apesar disso, continuou à frente dessa editora. Porém desiludiu-se com a
situação geral e resolveu sair e criar a Teodolito, para alegria dos bons
leitores, pois continua a editar muitos dos seus anteriores autores e outros
igualmente bons.
Veiga evocou as boas relações que mantinha com os meus irmãos
Rogério e Rui, também editores, e lembrou que me conheceu na Feira de
Frankfurt, onde eu e os meus irmãos éramos conhecidos por ‘Os Três
Mosqueteiros’, quando lá nos encontrávamos, eles vindos de Lisboa e eu do Rio,
pois então não podia visitar Portugal, por em tempos idos ter cometido o crime
de… ser antissalazarista.
Há um ano atrás,
enviei ao Veiga um exemplar, em edição digital, de O Contador de Estórias,
que ele nesse dia elogiou no seu conjunto e depois comentou conto a conto, com
a inteligência e o humor que lhe são peculiares. O que, claro, me agradou
imenso, já que ele não é um homem de pronunciar palavras não sentidas e é, sem
dúvida, um rigoroso crítico literário. Haverá alguma benevolência graças à
nossa amizade, mas foram para mim um estímulo, e por isso lhe agradeço.
Desta forma, quando
me coube falar, tentei explicar que sempre escrevi, mas apenas mentalmente,
raras vezes fiz um rascunho, e os que porventura fiz, evaporou-os a voragem do
tempo. A minha vida muito ocupada com as editoras que tive, em certos períodos
com muitas dificuldades que me tiravam o ânimo, em outros, de situação folgada,
que me proporcionavam ocupar o tempo em viagens e outros prazeres, como as
amizades e eventos culturais, afastavam-me da escrita. Por outro lado, tinha
que cuidar de quatro filhos e, ainda, de uma fazenda grande, em Teresópolis, a
que me dediquei muito.
Uma outra razão de
peso, como editor achei sempre que não deveria publicar livros de minha
autoria, pelo menos em editoras minhas.
Depois destas
‘desculpas’, talvez esfarrapadas, acabei por revelar a Verdade, a verdade nua e
crua. Apesar de pensar em escrever contos, de que gosto mais do que de romances,
leitor voraz desde muito jovem, de milhares de obras, perguntava-me: “Para quê escrever
se nunca poderei ombrear com contistas como Gogol, Tchecov, Cortázar, Thomas Mann, Fitzgerald, O’Henry,
Jack London, Mark Twain, Stefan Sweig,
Alice Munro, Virginia Woolf, Nabocov, para citar apenas alguns?” Como
atrever-me a escrever um conto depois de ler Boneca de Luxo (Breakfast
at Tifany’s), de Truman Capote?
Então, perguntarão “porquê
escrever e publicar, agora aos noventa anos?”
Bom, acho que nesta idade posso permitir-me muitas coisas e contar com a
benevolência dos leitores. Sinceramente, hoje preciso de escrever para viver
ilusões ou para relembrar cenas do passado, e modificá-las ao meu gosto, como
eu gostaria que tivessem acontecido e não como aconteceram. Quase poderia citar
aquele poema de Pessoa: “Poema em Linha Reta”, e cito apenas alguns versos:
“Nunca conheci ninguém que tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos
têm sido campeões em tudo.” “Eu, que quando a hora do soco surgiu me tenho
agachado / para fora da possibilidade do soco;” “Toda a gente que eu conheço e
que fala comigo / nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho. / Nunca
foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”
Por fim resolvi falar
um pouco de O Escultor de Almas, romance escrito deliberadamente como
tal e não, diria que acidentalmente, como O Roxo dos Jacarandás.
‘O Escultor’ foi o
último livro que publiquei em edição digital (junho de 2014) e que em setembro
lancei nas livrarias, em edição comercial. Como sempre, distribuí os cinquenta
exemplares da edição digital exclusivamente para amigos e familiares. O retorno
deixou-me perplexo, vários desses meus escassos leitores disseram: “mas, é um
romance de amor!” Mas porque não? Deveria ser sobre zombies, fantasmas,
monstros, gorilas, extraterrestres, erótico e mal escrito por uma mal amada,
biografia de algum vulto histórico absolutamente inócuo, policial, de branqueamento do nosso ditadorzinho…?
E porque não sobre o
amor? Eu acredito no amor, indiscutivelmente é o sentimento mais importante na
vida humana. Eu amei muito e, estou seguro, fui também muito amado. Amar e ser
amado é uma bênção, um privilégio. Mas mais que sobre o amor, ‘O Escultor’ é
sobre uma relação amorosa, o que é muito diferente do amor propriamente.
O amor é um mistério e
um milagre. A relação amorosa é uma arte e o exercício de compreender o outro e
aceitá-lo de ânimo aberto, assim como o de entregar-se abertamente. Caso
contrário, essa relação é corroída como que pelo ácido sulfúrico.
Na relação amorosa há
sempre uma bomba-relógio de permeio: os filhos, ter ou não, criar assim ou
assado, poucos ou muitos. Além de que o homem e a mulher vivem ‘os filhos’ de
maneira diferente. O homem deseja ter filhos de forma mais intelectual, mais
pragmática, por razões sociais, para a continuidade do seu nome e da sua
personalidade, até da sua profissão. A mulher vive a gravidez e a maternidade
visceralmente, com o coração, com todo o seu corpo e mente, com esperança, com
altruísmo. De um modo que o homem não entende, não pode entender. A mulher tem
absoluto direito a essa maternidade, a lutar por ela, mesmo em prejuízo de uma
relação amorosa.
Numa relação, há
ainda uma outra bomba, e mais potente: a interrupção da gravidez, voluntária ou
não, decidida pelos dois ou apenas por um deles. De qualquer forma, é sempre
muito difícil e traumático para a mulher, deixa-lhe sempre angústias, mágoas,
remorsos e frustrações. O homem aceita muito melhor essa situação, afinal nem a
vive fisiologicamente. É possível que isso faça toda a diferença.
Foi todo este quadro
que tentei criar ao escrever O Escultor de Almas, mas não sei se com a
arte e o engenho suficientes para transmitir a mensagem. Sim, o
personagem masculino é um homem de sucesso, sim, ele ama muito a jovem que
arrancou da favela, sim, ele moldou-a, esculpiu-a, por amor e para que a
relação deles fosse equilibrada. Sim, o personagem feminino amava muito o seu
amante, sim, ela desejava viver com ele, sim, ela queria ter um filho, custasse
o que custasse. E quanto a isto não se entenderam. É isto um romance de amor? E
se for?
Foi tudo isto que tentei explicar para os que tiveram a
gentileza e paciência de me ouvir naquela sala do El Corte Inglés, enquanto lá
fora o crepúsculo crescia. Presença que agradeço com sinceridade.
Tentei ainda
responder à pergunta no ar: “porque voltei a ser editor, quatro anos depois de
deixar de o ser?” Mas porque não, se o fui durante seis décadas? Como respondi
a um livreiro que me enviou um mail de boas vindas ao setor: “Estive
internado nos ‘editores anónimos’ quatro anos, mas saí, não consigo livrar-me
do vício.”
Enfim, aqui estou, a
aguardar a ressonância das minhas mensagens escritas, por um lado, e, por outro,
disposto ao diálogo, como sempre franco e amigável, com os autores que me
procurarem.
* * *
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