DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Páginas de Prazer

10.   PÁGINAS DE PRAZER
 Como escrevi anteriormente, no início de 1955, estava eu sem trabalho e sem qualquer negócio, pois havia saído deliberadamente da Editorial Andes. Por uma questão de ética, achei que não deveria criar, pelo menos de imediato, uma outra editora e publicar títulos de autores que publicara na Andes.
 Contudo, havia um autor, não da Andes, Hugo Schesinger, com o qual mantinha uma boa amizade, independentemente da área editorial. Ele organizava livros de referência, sobre indústrias e produtos de todo o Brasil, muito úteis naquela época e naquele imenso país em rápido desenvolvimento, que apareciam como edições de autor, e eram. Ele sugeriu que os editasse e distribuísse, pois o esquema de vendas dele era fraco e tinha pouco tempo para se ocupar da produção. Passei a editá-los, já nem me lembro com que chancela, e a distribuí-los. Publicava edições pequenas, que eram atualizadas constantemente, apesar de infelizmente não haver, então, o recurso a edições digitais. Estamos a falar de obras com informações atualizadas, indispensáveis num país imenso e em constante transformação e crescimento. Na realidade, esses livros vendiam bem, por serem únicos no género, e a venda era quase exclusivamente pelo correio, pelo que geravam uma boa margem de lucro.
Pensar nessas edições, hoje, dá-me até vontade de rir, pois qualquer dessas informações que esses guias prestavam, atualmente, em segundos, na net, cá estão.
  Esse meu amigo e autor dirigia uma grande fábrica de móveis de aço, em São Paulo, e insistiu para eu representar essa linha de modernos móveis para escritórios no Rio. Não era uma proposta sedutora para mim, mas entretanto nascera o meu terceiro filho. Topei!
 Não foi fácil, a concorrência era grande e desleal, principalmente nos fornecimentos para o governo, que era onde se ganhava. Consegui penetrar em alguns ministérios e secretarias, mas as concorrências eram publicadas de forma a respeitar acordos anteriormente estabelecidos entre os habituais fornecedores e os compradores. Era, é, o Brasil.
  Em toda a minha vida comercial sempre tentei seguir caminhos diferentes dos outros concorrentes, pois invariavelmente comecei independente de ricos e dos grandes grupos, portanto, com dificuldades.  Foi assim que achei por bem sugerir à fábrica que criassem um cofre sólido e pesado, mas pequeno, oitenta centímetros de altura e cinquenta por cinquenta de lados. Estes cofres pequenos são normais atualmente, mas na época, modelos deste tipo não eram produzidos.
 Consegui uma reunião com a direção geral dos Correios (então ainda no Rio, sede do governo, Brasília nem ainda era um sonho), e propus-lhes o tal modelo com um argumento de peso: nas agências, quando o(s) funcionário(s) durante o expediente, ou de um dia para o outro, eram revezados, como só havia um cofre, parava tudo para a conferência de existências. Ora, isso resolvia-se -- afirmava eu à Direção dos Correios -- se cada funcionário tivesse o ‘seu’ cofre, que fecharia e abriria com exclusividade. Vendi bem a ideia, em breve saiu o edital para a venda de quatrocentos e tal cofres com estas especificações. Ganhei facilmente pois a concorrência não poderia fabricar cofres com essas características rapidamente, enquanto nós já estávamos a produzir, no prazo estabelecido no Edital da Concorrência. Aquando da entrega, os outros fornecedores, por despeito, obrigaram o funcionário recebedor a serrar um dos cofres, para conferir se entre as paredes duplas havia amianto, como era exigido, e tinha. Foi uma boa venda.
  Entretanto eu organizara uma equipe de meia dúzia de senhoras para vender estes cofres para as madames. Argumento: lá podiam guardar as joias e os perfumes franceses, muito caros, e que estando à vista ‘evaporavam-se’ rapidamente. Três ou quatro vidrinhos pagavam o cofre. As vendedoras levavam uma lista de preços desses perfumes para exercerem essa aritmética.
  Contudo, apesar de, no ‘lavar dos cestos’, conseguir manter-me razoavelmente, queria sair deste tipo de negócio. Não me agradavam as relações que era obrigado a manter nesta área. Tratei de conseguir alguém de confiança para continuar essa representação, não queria deixar mal o meu amigo, enchi-me de coragem e… voltei ao livro, que era para mim o chamamento do oásis na travessia do deserto de aço.
  Com pouco dinheiro, teria que limitar as edições e concentrar-me a publicar somente em temas determinados, para poder ter  maior poder de oferta. Fundei a EDITORA PÁGINAS, só com duas coleções: Páginas de Cinema e Páginas de Teatro, temas absolutamente descurados pelos outros editores brasileiros. Fui o editor brasileiro que mais editou nesta área, e em língua portuguesa. O meu irmão Rogério Moura, na Livros Horizonte, publicou muitos dos livros publicados pela Páginas e editou muitos outros de sua seleção.
 A Páginas vendia bem em livrarias, porém o forte das vendas era pelo correio para os associados dos cineclubes, que nessa época proliferavam como cogumelos. E naqueles tempos de livrarias fracas nas cidades não muito grandes, no Brasil os transportes eram demorados e caros, os livros demoravam a chegar às pequenas livrarias, pelo que era uma vaidade receber um livro em primeiro lugar, antes de chegar às livrarias, pelo correio, para poder ler primeiro mas, também, para poder exibir aos amigos.
  Adorei esta editora, tanto pelos livros que publicava, pois sempre adorei cinema e teatro, como porque a sede era uma sala no 18º andar num edifício novo, no Largo da Carioca, nesses tempos o centro nevrálgico do Rio. Dela desfrutava-se de uma linda vista para o Convento de Santo António e para o casario velho construído pelos portugueses, nas ruas em continuação desse morro.
 Além de sede, a sala também era livraria, só de livros de cinema e teatro em diversos idiomas, e praticamente todos os publicados no Brasil. Falta mencionar algo de muito importante: num canto, funcionava um barzinho onde rolava o uísque e caipirinhas, na companhia de alguns salgadinhos.
  A frequência desta livraria era maioritariamente de quem trabalhava em cinema, TV e teatro. As conversas eram muito ricas e, por vezes, acaloradas. De realizadores posso citar Alex Viana, Nélson Pereira dos Santos, Lima Barreto, Alberto Cavalcanti, Glauber Rocha e outros. De artistas, uma longa lista que nem cito. De escritores para teatro e cinema: Augusto Boal, meu bom e saudoso amigo, fundador do Teatro de Arena também em Portugal, Vinícius de Moraes, Salviano de Paiva, Abdias do Nascimento, fundador e diretor do Teatro do Negro do Brasil, e outros. De alguns destes editei os seus livros.
  Ocorre-me relatar um evento interessante promovido pela Páginas.  Como o cineasta Alex Viana estava interessado em adaptar ao cinema Orfeu da Conceição, uma peça teatral de Vinícius de Moraes,  resolvemos promover uma leitura pelo próprio autor,  para um público de empresários, no excelente auditório da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Uma tentativa de encontrar um produtor ou patrocinador para o filme, que não conseguimos.
  Mais tarde, o realizador francês Marcel Camus interessou-se pela peça e realizou Orfeu do Carnaval, filme esse que ganhou a Palma de Ouro em Canes (1959) e o Óscar do melhor filme estrangeiro (1960). Trilha sonora de Tom Jobim e outros compositores brasileiros, não mencionados nos créditos. Essencialmente com intérpretes brasileiros, negros, é uma produção franco/italo/brasileira. Inspirado na Mitologia grega, de Orfeu e Eurídice, em que Eurídice (Marpessa Dawn) se apaixona por Orfeu (Bruno Melo), que tem uma noiva, a bela Mira (Léa Garcia), que se enfurece de ciúmes. O filme é lindíssimo e o seu ponto alto são as cenas do Carnaval, em que a Morte (belo desempenho do tricampeão olímpico de salto triplo Ademar Ferreira dos Santos) persegue Eurídice até que ela na fuga morre eletrocutada. Numa sessão espírita, Orfeu recupera o corpo de Eurídice, o que enraivece Mira e acaba por provocar a queda de Orfeu num precipício com Eurídice nos braços.
   Revi com muito prazer este filme há dias.
  Foi talvez a editora que me deu maior satisfação, mas que não durou tanto quanto desejaria. A razão foi que tive que largá-la para enfrentar um desafio maior, um voo muito alto que afoitamente resolvi enfrentar. Fui convidado para criar uma grande editora de Ciências Sociais pelo Prof. Bilac Pinto (deputado, senador, embaixador do Brasil em Paris), proprietário da maior editora de livros de Direito do Brasil, a Revista dos Tribunais. Era um homem de uma família muito rica, ligada à área bancária, mas principalmente muito culto, inteligente e correto.
  Deste convite nasceu a Editora Fundo de Cultura, da qual qualquer dia falarei.

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