tag:blogger.com,1999:blog-45487828222537766192024-02-08T11:02:42.891-08:00Mário de Moura DeMouraAnonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.comBlogger27125tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-67292053931227324902015-04-08T03:05:00.001-07:002015-04-08T03:05:09.252-07:0027. A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> 27. A VOLTA DO FILHO
PRÓDIGO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando Marcelo Caetano
assumiu o cargo de Presidente do Conselho do Estado Novo, estando ainda Salazar
meio-vivo e pensando que ainda era ele quem ocupava esse cargo, houve muitas
esperanças na melhoria da situação geral (política, económica e social) de
Portugal. Eu fui um dos que me iludi. Ou não, apenas quis justificar para mim
mesmo uma visita a Lisboa, apesar da minha jura (quando pisei o avião que me
levava para Nova Iorque) de que não voltaria enquanto Salazar fosse vivo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Abril de 1970, já
haviam passado vinte e dois anos que eu vivia fora de Portugal sem nunca ter
voltado, sequer em visita. Vivia, então, no Brasil, mais propriamente no Rio de
Janeiro. Convenci-me que seria uma boa ocasião para visitar a família, em
especial o meu pai e a minha mãe, felizmente ainda vivos. E ainda os meus
irmãos Rogério e Rui, com os quais tinha muita afinidade, assim como a minha
irmã Isabel, a mais velha e de quem sempre gostara muito. E ainda havia ‘gente’
a conhecer, sobrinhos e outros familiares por afinidade. Claro que tinha muita
curiosidade em rever a cidade em que vivi 24 anos e da qual guardava infinitas
recordações com as mais diversas variantes.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Resolvi viajar sem
telefonar ou escrever a anunciar a vinda, pois não estava muito seguro de que a
PIDE não me chatearia, o que provocaria preocupações aos meus familiares. Não
foi sem alegria que passei pelos controlos da chegada (policiais e
alfandegários), como se diz no Brasil, “numa boa”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao chegar aos táxis e
apanhar um, falei com o condutor: “Por favor, Rua da Madalena (onde o Rogério
instalava a Livros Horizonte), mas no caminho se não o transtorna dê uma
paradinha na Versalhes.” Quando ele lá parou, entrei e pedi ‘uma bica e um
queque’. Ao terminar gritei para mim mesmo “Estou em Lisboa!”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Para minha surpresa, o
prédio da editora não tinha elevador e esta era num terceiro andar. Para mim
era quase inconcebível aquela escada íngreme, de degraus pequenos, pelos quais
arrastei uma mala de viagem estupidamente grande (até hoje, apesar das centenas
de viagens internacionais, não sei viajar com malas pequenas, como manda o bom senso).
Finalmente, arfando, toco na porta da editora e uma jovem atende e olha para
mim perplexa, pelas roupas e pela mala, possivelmente até pela semelhança com o
meu irmão. Quando perguntei por ele, destemidamente ela tentou impedir-me
clamando “O Sr. Doutor Moura está em reunião.”. Entrei por ali adentro
arrastando a mala e dirigindo-me para de onde ouvia a voz do Rogério.
Indelicadamente, abri a porta e não sei o que soou primeiro, se foi um Rogério!
ou um Mário! Abraçámo-nos sob o olhar espantado do Padre Felicidade Alves, que
só para o conhecer teria justificado a viagem, vim a saber depois, ao conviver
com ele.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Alertado pelo telefone,
chegou esbaforido o Rui, verdadeiramente comovido. Verdade que tanto um como o
outro me visitaram no Rio, mais do que uma vez. De imediato instala-se uma ‘conferência’
para estabelecer a estratégia do ‘como’ aparecer em casa dos meus pais, sem o perigo
de isso causar emoções perigosas, dada a surpresa e a idade deles. O Rui
decidiu: “Vamos direto, não acontece nada!” E lá fomos os três e a incrível
mala no carro italiano desportivo de que ele tanto se orgulhava.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Felizmente, tanto a
minha mãe como o meu pai não se emocionaram para além de ‘que surpresa’, ‘meu
querido filho’, beijos, abraços, lágrimas e risos. Em breve, como que pela
magia de um toque de clarim ‘a reunir’, vieram muitos outros parentes (que
moravam maioritariamente em Campo de Ourique) e não tardou a ser uma balbúrdia
geral. Alguém encomendou ou apanhou salgadinhos e bolos da tradicional ‘Tentadoura’
e a confraternização foi ampla e comovente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A folhas tantas, a
minha mãe perguntou-me, com aquele tom mais perentório do que interrogativo que
as mães sabem tão bem pronunciar: “Então, Mário, amanhã vais visitar os teus
tios e tias?” “Não, mãezinha, não é isso que penso fazer, vou querer visitar
Cabeda, quero ver como está, vou alugar um carro para ir lá!” A admiração da
minha mãe não podia ser maior e logo: “Credo, que pressa em ires lá, se nem o
teu tio António lá está há tanto tempo.” Logo os meus irmãos se prontificaram
para irmos todos juntos, pois também não iam lá há mais de trinta anos, como
eu. Para surpresa deles, e certamente pesar, falei que queria ir só. Logo o Rui
me garantiu o carro dele para o dia seguinte (um Alpha, ele sempre teve a mania
de carros desportivos). A festa prolongou-se, pois continuam a aparecer autoconvidados
que queriam ver o ‘brasileiro’, como já me apelidavam.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A minha família era
muito numerosa e muito unida, boa parte vivendo em Campo de Ourique, outros
noutros bairros, mas estavam sempre em contacto uns com os outros. Era uma
espécie de tribo e quase todos viviam em Portugal. Assim, eu que me tresmalhara
e vivia tão longe e durante tanto tempo fiquei quase como uma figura mítica,
ausente, do qual sabiam uma ou outra coisa esporadicamente, e bem estranhas, pois
tão depressa estava num país como noutro, estava casado com A ou com B, tinha mais
filhos, aqui e ali apareciam notícias sobre as minhas edições e editoras, que
também mudavam muito, os livros por mim editados com alguma presença nas
livrarias portuguesas, vinham amigos meus do Brasil falar-lhes de mim, relatos
contraditórios, etc., etc. Portanto, era
inesperado e extraordinário eu estar
ali, de carne e osso, cabeleira abundante</span><span style="font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">, </span><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">quase
<i>black power, </i>bem bronzeado, roupas
informais, espantando tantos sobrinhos que tinham nascido enquanto estava fora
e não me conheciam. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Eu não era um extraterrestre, mas vinha de longe, de muito
longe, de um país mítico, alguns nem me conheciam, outros tentavam encontrar as
diferenças com a imagem do Mário da sua memória de há muito. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Na manhã seguinte não peguei o Alpha, aluguei um carocha
(Volsksvagem 1300) amarelão e antes de partir estudei o roteiro num mapa que
encontrei no porta-luvas do carro. Lá me orientei para apanhar a estrada
nacional, e não esperava grandes alterações nela, pois pelo que vira Campo de
Ourique era quase igual a quando lá morava. Nem a cor dos prédios mudara.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Adoro conduzir, quanto
maiores as distâncias, melhor, e quando ao volante sinto-me muito bem e consigo
pensar muito. Naquele momento recordava como durante tantos anos imaginei esta
tão simples viagem das mais variadas formas. Assim como quando a vida começou a
sorrir-me no Brasil, e até mesmo antes, na Venezuela e no Canadá, quando
irrealisticamente sonhava que iria enriquecer e realizar o meu sonho: chegar
inopinadamente a Cabeda, dirigir-me ao filho do proprietário que se assenhorara
da quinta formada pelo meu tio, ou mesmo ao pai dele, o verdadeiro proprietário
(seria ainda?) e, como um novo-rico insolente, perguntar-lhe quanto queria pela
quinta. E força-lo a vender-ma, comprá-la por qualquer que fosse preço, e
rápido.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Sonho recorrente e com
as mais diversificadas variantes, mas o certo é que me ajudavam a suportar a
dura vida de emigrante que suportei nos primeiros cinco anos na Venezuela e no
Canadá.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O que ia fazer com a
quinta? Bom, isso não era relevante, o importante era comprá-la, percorre-la
devagar e saber que, finalmente, era minha. Lembro de na escola primária ler
(no livro de leitura adotado) uma passagem de um romance de Júlio Dinis, creio,
na qual um lavrador compra umas terras e quando, logo em seguida, as visita,
teatralmente ajoelha-se para beijar a terra finalmente sua. Não era minha ideia
imitar o tal lavrador, mas tecia os mais fantasiosos cenários, inclusive o de
voltar de vez a Portugal (hipótese que nunca minimamente me atraiu depois de
ter emigrado) e dedicar-me à exploração agrícola ou turística da saudosa
quinta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Por vezes (tantas!),
imaginava-me a passear por aqueles campos da quinta de Cabeda, a admirar os
jogos da luz do Sol a varrer os trigais e as nuvens em constante transformação;
a respirar cheiros tão diversos e tão conhecidos, como o das urtigas ou das
azedinhas pisadas ou da seiva do trigo ao se lhe quebrar o caule e, ainda, da
mordida num pêssego maduro; a ouvir sons familiares como o coaxar das rãs ou o
arrolhar das rolas, ou da enxada a entrar fundo na dura terra, um ruído seco e
cadenciado ou o longínquo chiar de um carro de bois; de recordar algum
fantástico pôr-do-sol a afundar-se numa imensa e esplendorosa mancha vermelha e
amarela, cores que pareciam entrar dentro de mim de tão vibrantes.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Também, sem qualquer
razão, inopinadamente, lembrava-me de cenas fugazes mas que revia com nitidez:
o levantar do voo de algumas perdizes quase debaixo dos meus pés, a corrida
rápida de uma lebre assustada com a minha presença, uma cobra desovando e de
imediato os ovos a se abrirem para deles saírem pequenas cobras, que logo
ondulavam fugindo para as suas vidas, borboletas multicolores volteando perante
os meus olhos como que a se exibirem, as formigas em seus carreiros carregando
enormes pedaços de folhas para a horta dos seus formigueiros, um casal de
pintassilgos a carregar pequenos ramos para construir cuidadosamente o seu
ninho, ou mais tarde o pai a trazer minhocas para colocar na boca dos filhotes
de bico aberto e ávido.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Os meus olhos com
frequência inundavam-se do vermelho das papoulas atrevidas ou do verde das
alfaces, do castanho das terras recém-lavradas, das searas de trigo puro ouro,
do rosado das peras e do vermelho vivo das cerejas, do roxo das amoras
silvestres, como do azul do céu cambiante consoante as horas e até do prateado
do luar a pintar árvores e caminhos estreitos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Tudo isto estava
entranhado em mim, no fundo do meu cérebro ou do meu coração, guardados como
num disco rígido que involuntariamente surgiam no ecrã da minha saudade, uma
viagem à minha infância. Adorava esses momentos que usufruí ao longo da vida.
Agora imaginava revê-los e corria o possível por aquela estrada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Claro, estes <i>flashs, </i>que
nem sei como e porque acontecem, também eram, e são, de paisagens visitadas,
quadros de algum museu, rostos de pessoas com quem conversei e habituais ou que
apenas vi de relance e me impressionaram, momentos de amor e intimidade,
situações chocantes que tenha visto ou nas quais tenho participado, de
ninharias e de momentos importantes, que a minha retina fotografou e o meu cérebro
arquivou.<i> </i><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Já estava há bastantes
quilómetros correndo pela estrada nacional quando um raio atravessou
fulminantemente a minha mente e interrompeu o meu doce sonho de chegar
rapidamente a Cabeda. Nesse momento ouvi aquela voz que conheço tão bem, apesar
de não saber se é do meu anjo da guarda, do meu alter-ego, de algum familiar no
Além ou, simplesmente, da metade racional, do meu cérebro. Certo é que, desta
vez, a voz ressoava furiosa. Parei com dificuldade na berma da estrada (que
nessa época era um luxo no que generosamente chamavam de estradas) e ouvi
gritar:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">“Mário, tu és parvo? Cretino? Ingénuo? Vais à procura de quê?
De Cabeda? Qual Cabeda? Aquela onde há mais de três décadas percorrias os
campos com a tua cadela Lisboa no teu encalço? És tonto! Achas que isso ainda
existe como era? Não percebes que essa Cabeda só existiu, e só existe, na tua
cabeça e no teu coração? Não te dás conta do quanto sublimaste essas
recordações dessa quinta? O que vais fazer? Dás-te conta que vais destruir as
mais belas imagens e recordações do tempo em que eras menino, um menino sonhador
e contemplativo? Saberás ou não que quando cavalgavas o Ginga, ou te deitavas nas colinas de papo para o ar a
apreciar o voo dos milhafres, ou ainda quando colhias as melhores e mais doces
frutas da tua recordação, esses foram os mais genuinamente felizes momentos da
tua vida? Nem as maravilhosas frutas brasileiras, nem as impressionantes
paisagens do Canadá e do Brasil ganham, para ti, na comparação. E, contudo,
delas também usufruíste bem.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Estava parado e
sentado no banco do condutor, esmagado por aquele discurso. Saí do carro e
olhei em volta. Umas terras não cultivadas, algumas casitas pobres, mal
conservadas, muita tralha em volta. Num cercado quatro cabritas olhavam-me como
que a troçar de mim. Estavam magras e o pasto era ralo. Uma velha vestida de
preto saiu de uma das casas e espalhou algum milho para as galinhas que por ali
ciscavam. Quando estas se aproximaram para comer o milho, a velha, com uma
agilidade surpreendente, apanhou uma das frangas pelo pescoço e entrou em casa
com a bichinha a espernear. Imaginei-a depenada a ferver na panela fumegante,
enquanto a velha sorria antecipando o seu filho à mesa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Uma fumaça escura
chamou a minha atenção para mais longe. Uma fábrica, de quê?, pintada de
vermelho escuro, hostil, era a razão. Não muito distantes da fábrica, vários
armazéns alinhados faziam supor capoeiras para galinhas poedeiras.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não eram campos
bonitos, não uma paisagem de postal. A estrada tirara-lhe a imagem singela e a
beleza. Agora aquelas terras, por ventura outrora verdejantes, inspiravam
apenas amargura e tristeza. Até as árvores que ladeavam a estrada (eu
lembrava-me tão bem da sua imponência, sombra e beleza), agora estavam pintadas
de branco e com cartazes toscamente escritos à mão a tinta vermelha pregados nos
troncos, a anunciar qualquer coisa. Nalgumas percebi cartazes de touradas em
Torres Vedras.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Perguntei-me
apreensivo: “Será que Cabeda também se encheu de casas tristes, galinheiros
imensos, fábricas fumarentas? Estarão as suas terras ao abandono? Talvez nos seus vastos campos o
trigo já não ondule dourado? Quem sabe se a horta, agora não trabalhada, foi
invadida pelas ervas daninhas? E se cultivam trigo, é debulhado na eira ou
naquela máquina infernal? Os carros de bois ainda chiam dolentemente pelos
caminhos ladeados de silvas, ou agora são camionetas velhas e ruidosas a correr
por eles? Quem trabalha na quinta, permanentemente os habitantes da aldeia ou
uns quantos guineenses contratados para tarefas ocasionais, a dormir em tendas
improvisadas? E as moças ainda vestem roupas garridas, e entoam canções
maliciosas, ou foram trabalhar paras as fábricas do Barreiro?”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Estas perguntas que me
fazia, as imagens que me assaltavam e que via com nitidez, acabaram por me
deprimir e acabrunhar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Um <i>jeep</i> da GNR parou ao meu lado e inquiriu
se o meu carro estava avariado. Não era para ajudar, era evidente a
desconfiança e o autoritarismo. A auréola fascista era mais brilhante do que os
botões dos seus uniformes. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Respondi: “Não,
sargento, combinei com um amigo encontrar-me aqui com ele, para irmos almoçar
em Torres, mas ele não apareceu. Vou-me embora!” “Oiça, não sou sargento, sou tenente,
não vê as minhas divisas? É brasileiro?” “Senhor Capitão, estou a visitar o meu
país, não entendo nada de patentes, desculpe. Se me dá licença, vou indo!” O
Capitão, de tão espantado com a minha desfaçatez, não me impediu de entrar no
carro e nem perguntou pela minha carta de condução. Na realidade eu tinha
comigo nada menos do que três cartas (do Brasil, do Canadá e da Venezuela), mas
não sabia bem se me habilitavam a conduzir aqui. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Entrei no carro e
decididamente segui em frente. Pelo retrovisor vejo que o tal Tenente apontava
a chapa do carro. Estranhei que um Tenente se ocupasse destas tarefas de
perseguição aos condutores, mas ainda iria ver muito mais para estranhar. Mais
adiante parei num café na expetativa da chegada da GNR… que passou acelerada.
Quando eles se afastaram entrei no carro, manobrei de volta para Lisboa,
pensando almoçar com os meus irmãos um bacalhau com grão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Os meus irmãos
admiraram-se por ter voltado tão rápido. “Então, não foste a Cabeda, não achaste
o caminho?”, perguntaram. Com algum mau humor, respondi: “Não, não fui, e nunca
irei, e nem quero falar mais da quinta.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> E não voltei. Cabeda
ainda é para mim, passados que são setenta e cinco anos, o meu <i>shangri-lá</i>. No Brasil tive uma bela fazenda,
não sei quantas vezes maior do que a quinta do meu tio. Ao voltar a viver em
Portugal, comprei um moinho em ruínas (é o que aparece com outros dois nas
pinturas da Batalha do Vimieiro), recuperei-o a preceito, plantei um
maravilhoso jardim (mas eram apenas dois mil metros quadrados).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quanto de Cabeda no moinho ou na fazenda? Os
grilos, os coelhos bravos, o arrulhar das rolinhas, o trovão frente a frente, o
cheiro da terra depois das chuvadas, os voos parabólicos das andorinhas? A
alegria de ver as árvores a cobrirem-se de folhas, mais tarde de flores e por
fim de frutos, ou de ver nos canteiros, onde pouco antes lançámos sementes, surgirem plantinhas verde-claro e triunfantes?
Colher frutas em árvores que antes plantámos esperançosamente, ou apanhar uma
rosa no nosso jardim para entregá-la à mulher que amamos?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Sim, algumas
semelhanças. Foi bom? Foi ótimo! A fazenda não era suficientemente lucrativa
para os meus gastos. Deixei-a sem a cultivar, ainda é minha, não a visito há
décadas, o meu filho cria lá cavalos de trote. O moinho foi uma maravilha
durantes dez anos. Depois de alguns roubos e assaltos, vendi-o. Tive pena? Sim!
Ponto final.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Há um poema de Manuel
Bandeira que diz: “Vou-me embora para Pasárgada/Lá sou amigo do rei/ Lá terei a
mulher que eu quero/Na cama que escolherei/Vou-me embora para Pasárgada.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Talvez esteja na hora
de eu cantar: “Vou-me embora para o meu sonho/Lá tenho a minha cadela Lisboa/Vou
fartar-me de rir à toa/ Vou-me embora para o meu sonho/Lá cavalgarei o burro
Ginga/Vou-me embora para o meu sonho!” <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> ***<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-22294478553522013822015-03-18T13:02:00.001-07:002015-03-19T11:16:15.340-07:00 26-ROSEBUD<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">26. ROSEBUD<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> As novas gerações na
sua maioria não conhecerão <i>O Mundo a seus
Pés </i>(1941), em alguns países intitulado <i>Cidadão
Kane</i>, do jovem realizador e ator Orson Welles, um filme corajoso, inovador,
que desrespeitava a narrativa cronológica e as técnicas cinematográficas de
então, um marco na história do cinema, hoje considerado um filme de culto. Se
não viram, ou não se lembram, permitam-me recordar o enredo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na hora da morte, o
magnata da imprensa norte-americano Charles Foster Kane (um magnífico
desempenho de Welles) pronuncia uma última e enigmática palavra<i>: Rosebud</i>. Um jovem jornalista resolve pesquisar
no passado obscuro de Kane o que ela poderá significar. Na realidade, o filme
retrata o real dono de uma grande cadeia de jornais muito contestado, William
Randolf Hearst, que tentou impugnar a exibição, felizmente que sem êxito.
Finalmente, Rosebud é apenas um trenó pertença de Kane quando garoto e que nos
seus momentos derradeiros recorda-o a ser consumido pelas chamas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Se eu tivesse sido um
mediático, influente e contestado editor, e ao morrer proferisse uma só
palavra, também enigmática, seria: Cabeda. E se por acaso algum jovem e
esforçado jornalista tentasse descobrir o que significava, ficaria espantado ao
saber que é uma pequena e insignificante aldeia da Estremadura, a meia dúzia de
quilómetros de Sobral de Monte Agraço, a cerca de cem de Lisboa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Cabeda foi o meu <i>shangri-lá</i> quando era um miúdo, entre os
sete e os treze anos. Meu tio António (casado com uma irmã da minha mãe) era
meeiro há muitos anos de uma quinta de boa extensão (talvez uns 50 hectares,
imagino eu agora) e de boa terra mas com muita pedra. Era sobranceira à aldeia
e a água da fonte e do bebedouro, e do lavadouro público, emanava da nascente que
alimentava a grande horta do meu tio, a sua principal receita regular, e da
qual saíam semanalmente alguns camiões totalmente carregados de legumes dos
mais variados, desde o feijão-verde ao agrião, da cebolinha à couve portuguesa,
rabanetes, favas e ervilhas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não, não era esta
atividade hortícola que me encantava, mas não deixava de ir por lá para
arrancar alguma cenoura da terra e comê-la, ou mirar com curiosidade as moças
na sua tarefa, e para ouvir o seu canto aberto e alegre, de que gostava. Tão
pouco deixava de apurar os ouvidos para as conversas entre elas que eu achava
algo ‘picantes’.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O que me encantava
eram os campos de trigo, em especial depois de ceifado, por onde corriam
coelhos e lebres, as muitas árvores de fruta das quais colhia as madurinhas, os
vastos vinhedos, os muros de pedra solta, a vastidão, os pássaros e borboletas,
sapos, rãs e lagartixas que eu perseguia de brincadeira. Nascido e criado em
Campo de Ourique, aquele ‘mundo’, aquela vastidão, aquele isolamento, dava-me
uma sensação de liberdade. Descobertas e aventuras até então inimagináveis para
mim, eram um grande atrativo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Os meus pais tinham
uma casa arrendada ao ano, na Parede, durante uns 4 ou 5 anos, dos meus 7 aos
11. Contudo, a família toda viajava nas férias grandes, todinha, com gato,
canários, papagaio, empregada, no dia 1 de julho para regressar no dia 31 de
agosto, impreterivelmente. Durante o resto do ano só lá ia alguém fazer
vistoria e limpeza. Apesar de a linha de comboios ser a mesma de hoje, sem
muita diferença, e da estação à casa serem poucos minutos, nesse tempo a Parede
eram poucas casas em volta da estação e campos, onde eu e os meus três irmãos
diabolávamos. Fora do período ‘oficial’ de férias na Parede, no resto do verão
e nas mini-férias, como o Carnaval e Páscoa, eu gostava de ir para a ‘quinta’, muitas
vezes sozinho, nem com algum dos meus irmãos. O meu pai ou alguém deixava-me na
‘camioneta de carreira’ (era assim mesmo que se dizia) que ia pela Nacional 115
e me largava perto de Cabeda, não sei avaliar a distância, talvez um ou dois
quilómetros, sei que uma parte era de ladeira, que enfrentava bem. Por vezes ia
por um caminho entre muros de pedras, chão com bastantes lajes, que a lenda
popular dizia ser romano.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A minha felicidade
começava ali. À minha espera, rabo a abanar com alegria, a ‘minha’ cadela
Lisboa lá estava. Fielmente, nunca falhava. Como? Ninguém sabia explicar, mas
quando ela desaparecia à hora da ‘carreira’, a minha tia proferia: “O Mário vem
aí!” Eu subia a tal ladeira, passava ao lado da aldeia e alcançava o casarão,
que apesar de rente ao caminho não tinha janelas para este e era construída a um
nível pouco mais abaixo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao passar o portão entrávamos
numa varanda larga, em pedra, que ladeada os três lados da casa, toda coberta
de uma parreira densa de uva de mesa. Dela avistava-se uma paisagem ampla,
donde se via boa parte da quinta e, a perder de vista, colinas graciosamente
onduladas, com pastos, campos de cultura e pinheirais e, claro, muros de pedra
solta demarcando áreas ou propriedades ou caminhos. Ainda hoje consigo fechar
os olhos e revê-la, com os seus verdes e castanhos fortes, pequenos fiapos de
neblinas mas, predominante, o azul do céu e o manto prata da luz solar. Por
vezes, aqui ou acolá, discretas fumaças de alguma chaminé de casa isolada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Como disse, da varanda
avistavam-se grandes pinheirais nas colinas distantes. Num final de tarde
abrasadora aconteceu um pavoroso incêndio num desses pinheirais. Correram
homens e mulheres de todas as aldeias em volta para atacar o fogo durante
muitas e muitas horas. Já a noite chegara e o fogo ainda não fora dominado. O
problema é que não havia água nas proximidades (eu conhecia bem o pinheiral) e
o combate era com machados, pás, enxadas… e ramos de árvores. Julgo que o
carro-tanque dos Bombeiros Voluntários (de Monte Agraço) não tinha condições de
se aproximar muito.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Da varanda eu olhava
abismado como tantos não conseguiam debelar o incêndio e, ao mesmo tempo,
surpreendia-me com o espetáculo dantesco, feérico e maravilhoso que admirava
confrangido, à distância, sem poder aquilatar o desastre que representava para
os donos do pinheiral e o perigo para quem lá estava, naquela luta insana
contra as chamas. Além do mais, a minha preocupação era grande porque o meu tio
evidentemente que para lá tinha corrido, seguido pelo seu fiel perdigueiro que
além das caçadas sempre o acompanhava. Eu gostava muito de ambos e temia o que
lhes poderia acontecer. Ao longe só se viam os vultos a correr desesperadamente
de um lado para o outro, não se distinguiam os rostos. À noite eram sombras
opacas que lembrariam um Teatro de Sombras se não fossem as labaredas por vezes
a agigantarem-se afastando para longe os atacantes.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Há bem pouco tempo
tive a oportunidade e o prazer de ler uma obra de António Manuel Venda, <i>Uma Noite com o Fogo, </i>em que ele
descreve, com o rigor e a beleza que lhe são peculiares, um incêndio em que ele
e o irmão lutam para dominar num pinheiral próprio, na Serra de Monchique. Ao
ler aquele belo texto, o pinheiral em chamas que vi em miúdo daquela varanda voltou
avassaladoramente à minha memória, com toda a nitidez e grandiosidade. Só então
pude realmente aquilatar a tragédia humana, além de ecológica e económica, que
representa uma floresta em chamas, que por vezes vemos tão distraidamente nos
ecrãs.<i><o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na casa não havia água
canalizada, ela era transportada em grandes recipientes de latão para a cozinha
e os banhos. Como eu recordo os banhos numa imensa bacia de latão, e o cheiro
da água do banho ao ser despejada sobre a terra fora da varanda! Tão pouco
havia eletricidade, além das velas, as candeias a petróleo ou uns candeeiros
alimentados por uma pedra que, colocada na água, alimentava a chama, mas soltava
um cheiro estranho. Na cozinha dominava uma espécie de lareira em pedra,
majestosa, que albergava o fogão a lenha e onde se penduravam chaleiras com
água e panelas com sopa. Era o reino da Luiza, que além disso comandava as
mulheres na horta. Uma vida de tanto trabalho, sem descanso, mas ela nunca se
queixava e tinha muita paciência connosco. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Os quartos eram
espaçosos, alguns com janelas, outros ligados por portas uns aos outros (a
velha arquitetura portuguesa!), tetos altos forrados em tabuinhas. Neles eu
imaginava as mais incríveis cenas enquanto me deleitava com a maciez dos
colchões cheios com ‘camisas’ das espigas do milho. Havia duas salas
importantes, uma armazenava em montes nas tábuas do chão batatas, melões,
melancias, etc., sempre fresquinha. A outra era a sala de visitas, que
praticamente não apareciam, mas se aparecessem lá estavam os móveis da praxe, a
grande mesa com cadeirões, os aparadores pretos com serviços de porcelana e <i>naprons</i>, o relógio de pé badalando
quando devia. Curiosamente, e nunca entendi porque ali, uns estradinhos de ripas de
madeira pendurados do teto alojavam os queijinhos de cabra ou de ovelha postos
a ‘curar’. Ali? Talvez porque a sala mantinha as janelas fechadas e com
cortinas, meia obscuridade, por isso não haveria moscas em cimas dos queijos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao lado da casa, uma
área grande em nível bem mais baixo, fechada para a rua e para a quinta por
muros, onde eram criados porcos e à noite refugiavam-se cabras e ovelhas. Para lá
eram lançadas as frutas já não comestíveis ou em excesso, restos de legumes e
cascas, tudo o mais que engordava os porcos grandes e brancos, turbulentos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Logo adiante, um
comprido e alto casarão, de que a parte final com pouca luz servia para adega,
fechada, porta aferrolhada, onde se perfilavam tonéis e barris. Chão de terra, com
cheiro forte a vinho, resultado dos restinhos de copos que por lá eram jogados
nas provas dos vinhos novos e, claro, na ‘abertura’ da água-pé, acompanhadas
com chouriço na brasa. Todos estes cheiros ainda relembro. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na parte mais à
entrada do casarão era o lagar, mais adiante a estrebaria, onde comiam nas suas
manjedouras quatro bois, uma ou duas vacas, uma égua e dois jumentos. A parede
lateral que dava para um vinhedo era muito alta, talvez mais de dez metros. Bem
no alto, aberturas servindo de janelas, sem vidros, substituídos por algumas
barras de ferro, numa das quais faziam o ninho um casal de milhafres. O curioso
é que estes nunca atacaram as galinhas e pintos que por ali ciscavam, apesar de
percebermos os seus voos mais longe nessa caçada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Depois do casarão, um
imenso tanque quadrado, com um metro e tal de profundidade, armazenava a água
das chuvas utilizada em regas. Para minha alegria hospedava dezenas de rãs que rompiam
o ar com o seu coaxar constante. Não devo omitir que muitas vezes tentava atingi-las
com pedras arremessadas pela minha fisga quando elas se expunham em cima das
folhas de plantas aquáticas. Felizmente para elas, a minha pontaria era
deplorável. Penso até que na realidade não queria acertar-lhes, só assustá-las,
para ver o pinote que davam.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ainda falando dos
animais, é muito importante informar que um dos burros, o Ginga, era ‘meu’,
claro que meu por decisão minha. A égua era muito alta para mim e meio
doidivanas, o outro burro era pequeno e feio, nunca o montava. Já o Ginga era
um companheirão. Além de o montar no final da tarde, quando todos os animais
eram levados à fonte na aldeia para saciarem a sede, indo eu no cortejo, cavalgando
vaidoso o Ginga, tinha várias oportunidades de o montar em pequenas folgas do
seu trabalho. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Certa manhã (nunca o
esquecerei!), estava na varanda, o portão para a rua aberto, quando eu vejo boquiaberto
uma junta de bois a arrastar pelo chão o Ginga, hirto, de pertas para cima.
Sim, isso mesmo, o meu amigão, o Ginga, estava morto, mortíssimo, percebi então.
Não acreditava, na véspera, horas antes, tinha cavalgado nele. Foi o meu
primeiro contacto com a morte, doloroso, inaceitável, inacreditável, injusto…
como sempre o foi para mim aceitá-la, mesmo mais ao longo da vida. Mas eu era
uma criança, ingénuo, como aceitar que me roubassem o meu amigo, o meu Ginga?
Chorei muito, fiquei desconsolado, quis voltar para Lisboa, tinha-se
desmoronado o teto do meu <i>Shangri-lá.<o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Eu conhecia
perfeitamente toda a quinta, pois andava o dia inteiro de um lado para o outro
acompanhado da minha cadela Lisboa. Por vezes carregava um farnel numa tosca
mochila de pano e passava horas e horas a percorrer áreas fora da quinta, nas
colinas lá ao longe com pinheirais aprazíveis. Depois de comer algumas fatias
de pão com pedaços de queijinhos curados de cabra, bebendo depois água pelo meu
cantil, deitava-me no chão, em algum amontoado de folhas ou de ervas rasteiras,
usava como travesseiro a barriga de Lisboa, que, coitada, mal respirava para
não me perturbar, e ficava a contemplar o jogo de nuvens ou o voo majestoso, bem
lá no alto, de milhafres e águias. Ou o menos bonito e mais ruidoso dos corvos.
Será que sobreviveram até hoje?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na quinta conhecia as
mais saborosas árvores de fruta e as uvas mais apetitosas, de que dia após dia
acompanhava o amadurecimento. Sem defensivos, sumarentas, comia-as com casca ou
descascava-as com o meu canivete suíço de que muito me orgulhava.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando o meu tio
contratara aquela quinta para cultivá-la (percebi depois que uma parte do que
cultivava era para o dono, em espécie ou produto, nuns casos um terço, noutros
metade), a maior parte dos terrenos ainda não tinham sido cultivados. Coube ao
tio António essa tarefa, que desempenhou com esforço e perseverança, por
etapas, com uma ou duas parelhas de bois atrelados a um arado, devagar, pois
tinha que despedaçar</span><span class="MsoSubtleEmphasis">r</span><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> na marreta algumas rochas, outras o
arado levantava-as da terra, mais do fundo. Estas pedras eram posteriormente
utilizadas na armação dos muros de pedra solta que desenhavam toda a quinta
caprichosamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Eu gostava de assistir
ao lavrar, mais do que em áreas já anteriormente aradas, naquelas em que o
lavrar era um verdadeiro desbravamento, um trabalho titânico, quase heroico,
que espalhava pelo ar um cheiro/gosto forte e acre muito característico. É o
cheiro da terra lavrada, conheço bem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas do que eu mais
gostava era da eira na época da debulha. Para os que não sabem, uma eira é uma
área de pouco mais de meio hectare (6 ou 7 mil metros quadrados), de
preferência no alto de uma pequena elevação, onde vente razoavelmente. Para a
armar, primeiro há que lavrar o terreno, de seguida passar com o rolo
compressor para aplainar e compactar, depois regar com abundância. A seguir
entra um rebanho de ovelhas que ficam horas andando à roda na terra molhada
(esqueci de dizer que a eira é redonda, uma grande roda) para a compactar mais
com os pequenos cascos das suas patinhas, de forma a que a terra não fique nem
demasiado dura nem demasiado porosa. Tem a sua arte!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Uns quantos garotos,
os pastores das ovelhas, com umas varinhas e correndo por fora, obrigavam os
animais a andar rápido ordenadamente em círculos. Eu ficava de cócoras (como
via os garotos índios fazerem nos filmes de <i>cowboys)
</i>num caminho mais alto que passava mais acima da eira e ficava a ver o rebanho
que protestava com prolongados ‘més’. Visto assim de cima parecia uma cena de
filme mudo, mais precisamente <i>Trabalhadores
a sair da Fábrica Lumière </i>(de Louis Lumière), uma centena de operários a
sair dos portões, a se empurrarem uns aos outros, imagens tremendo, como me
parecia estarem as ovelhas, também se chocando umas com outras, certamente desorientadas
por aquele passeio sem sentido.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Enquanto se aprontava
a eira, o trigo amadurecia e aloirava, altivo ficava na expetativa da ceifa. Chegada
a hora, homens em mangas de camisa e barrete, mas principalmente mulheres
vestidas de cores garridas, as mais novas, de preto por algum luto prolongado
as mais velhas, todas de lenços cobrindo os cabelos, alinhavam-se na seara, e
com as suas foices afiadas começavam a derrubar com golpes certeiros o trigo
que ficava estendido no chão, a sua majestade de ouro ondulante chegava ao
final.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Logo a seguir, chiando
pelos caminhos, possivelmente ladeados de silvas com amoras ainda verdes, pois
as maduras os meninos e os pássaros já as teriam comido, chegavam ao local os
carros de bois, e homens que com forquilhas apanhavam do solo o trigo e o jogavam
no estrado dos carros de bois até formarem uma montanha vacilante. Os carros
voltavam a chiar até à eira onde os mesmos homens desarmavam a montanha que
ficava esparramada por toda a eira, quase com um metro de altura.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Com a entrada do ‘trilho’
começava a debulha. A debulha é o ato de tirar o grão do trigo (ou outro
cereal) das suas cápsulas naturais, o que é alcançado com o auxílio de um trilho,
uma espécie de ‘jangada’ de tábuas sobre uns seis rolos grossos de madeira,
estes com pregos grandes espetados e com cabeças enormes e salientes. Em cima
deste trilho são colocadas pedras bastantes para ficar bem pesado, preparado
para debulhar bem, ou seja, para as cabeças dos pregos soltarem o grão da sua
espiga. Uma parelha de bois puxa este trilho que um abegão (o condutor de bois)
vai conduzindo à roda da eira, horas e horas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Eu pedia ao abegão
para me deixar ir em cima desse estrado, sentado num dos pedregulhos, à socapa,
pois o meu tio proibir-me-ia se soubesse, por representar algum perigo. Sentado
numa pedra ou deitado, o Sol a abraçar-me, eu entrava em transe a ouvir o canto-chão
que o abegão entoava, para animar os bois ou, sei lá, a ele mesmo. Mais tarde,
já não um menino mas gente, quando ouvia os cantos gregorianos recordava quase
sempre este monótono e simples canto-chão que me deliciara.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Além do mais, quando
as cabeças dos pregos rasgavam os caules do trigo, este soltava uma seiva
esverdeada (aliás saborosa) de cheiro muito agradável que eu aspirava com
júbilo, enquanto os bois e o seu condutor continuavam nas suas infinitas voltas
à eira. De quando em quando, o abegão parava os seus animais junto a uma cabana
de ramos de árvores (para um eventual descanso) para beber, mas não água como
seria aconselhável, dado o calor do sol escaldante, mas vinho. Sim, vinho tinto
de um ‘almude’ (recipiente em latão em forma de bilha, que através de um
triângulo aberto no alto do grosso gargalo marca a quantidade de vinho contida,
já que o almude é uma antiga medida para líquidos com cerca de vinte litros).
Ele erguia o recipiente pesado com presteza acima do seu rosto e deixava o
precioso líquido escorregar pela goela abaixo. Um estalo gutural de satisfação,
o passar da manga da camisa nos beiços e a volta à sua faina, com um olhar
cúmplice para mim. Vim a saber que esse vinho era parte da sua jorna.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Finalmente saía o
trilho e entravam homens e mulheres com forquilhas a tirar a palha para as
margens da eira, de forma a ficar apenas o grão e alguma palha. Com pás, os
grãos eram jogados bem alto e aí o vento levava para longe a puínha que ainda
restava do trigo, e este ficava pronto a ser ensacado. Uma batalha longa e
árdua que aqueles guerreiros, armados apenas de forquilhas e pás, venciam,
certo que apenas por uma estação, o milenar arrancar à terra com muito trabalho o seu alimento.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Passados alguns anos
numa das minhas viagens de campista por acaso acampei na época da debulha num
pinheiral. De manhã, ao dar uma volta ouvi um ruído pavoroso. Aproximei-me e lá
estava a autora: uma grande debulhadora toda em aço, fumegando, ensurdecendo
todos à sua volta. Fiquei revoltado, desarmei a minha tenda e fui para longe,
para bem longe daquele sacrilégio<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Usufruí destas
regalias dos oito aos catorze anos, idade em que podia ir até lá desacompanhado
(outros tempos!). Terminou quando a minha tia se afastou do marido para ir
viver com o filho, quando este se casou e foi viver em Portalegre. Na verdade
ela odiava a quinta, a vida no campo, as fainas agrícolas e sentia a falta de
com quem tagarelar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Todo o trabalho do tio
António foi de certa forma mal compensado, pois o dono da terra pouco antes
avisou-o de que precisava dela para um filho que ia casar e queria viver e
trabalhar naquela quinta. Pudera, agora que ela estava toda ‘aparelhada’! O
proprietário deu quatro anos para o tio António sair e nesse entretanto ele
comprou um terreno de cultura (em Freiria) onde construiu uma casa e plantou um
belo vinhedo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Acompanhei a formação
do vinhedo e a construção da casa nos últimos dois anos que para lá fui. Ele
levava-me (de carroça ou de bicicleta) para me mostrar com orgulho ‘a obra’
(como eu sentia que ele gostava de mim por, talvez, adivinhar o meu grande amor
à terra e admiração pelo seu trabalho). Com curiosidade eu assistia ao tio
António outra vez a despedrar e sulcar a terra, a armar moirões e esticar
arames para a vinha se encostar, e finalmente a plantá-la ainda um nadinha.
Depois ele continuou por mais dois anos a sua maravilhosa faina sem eu estar
perto para poder apreciar. Felizmente viveu muitos anos e certamente no
princípio de Outubro, chamar os seus
amigos para a ‘abertura’ da sua água-pé.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Em Lisboa, nos
primeiros tempos, eu pedia notícias de como ‘iam as coisas’ ao meu primo Luís.
Até que um dia ele me falou que o pai tinha mudado para Freiria e abandonado
Cabeda. Nesse dia chorei. Discretamente, fui-me estender em cima da minha cama
e fiquei a recordar pedaço a pedaço aquela para mim maravilhosa quinta, como se
a estivesse a sobrevoar de um avião, a voar baixinho, ou a ver um filme documentário.
Lá estavam: a cadela Lisboa, o burro Ginga, os milhafres, o tanque e as rãs, a
horta, até a vindima e o pisar da uva (ouvia nitidamente a galhofa daquelas
raparigas a pisar as uvas com as saias arregaçadas), os campos de trigo louro a
ondular salpicados de papoulas, a corrida das lebres e o voo precipitado das
perdizes a fugir, o abegão a cantar, tudo, tudo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Depois imaginei o meu
tio no último dia a visitar as terras que regara com o seu suor e a despedir-se
com saudade antecipada de cada árvore, de cada vinha, da horta, das leiras com
o restolho do trigo, de tanta coisa que ele plantara, cultivara, cuidara. Com
raiva? Com amargura? Sei lá. Só sei que eu, nesse dia, estava ao seu lado, sim,
com saudades de outros dias… <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Uma neta dele e o marido, citadinos, melhor dito, lisboetas,
curso superior, respeitados profissionais liberais, quando se aposentaram foram
para lá viver. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quem sabe se para
alegria do avô que nessa altura, certamente, já estaria a lavrar com vigor as
nuvens no infinito céu.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 107%;">DeMOURA</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> ***<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-20134626809220193452015-02-28T05:18:00.000-08:002015-02-28T05:18:25.853-08:0025. DA VÃ GLÓRIA<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">25. DA VÃ GLÓRIA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando Manuel
Laureano Rodríguez Sánchez, naquela tarde quente de 29 de agosto de 1947,
estava em seu camarim a vestir o seu flamejante traje de toureiro, ficou algum
tempo a olhar-se ao espelho, a apreciar o seu rosto magro, austero, os traços
quase esculpidos, o seu cabelo muito preto e uns olhos da mesma cor e vivos.
Contudo, estava muito longe de adivinhar como um touro, um belo miúra, Isleno
de nome, como tantos que matara fulminante e implacavelmente, o enfrentaria na
praça de touros de Linhares, em Espanha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao pisar a arena,
como Manolete, o maior toureiro de todos os tempos até então, e segundo os
aficionados até aos nossos dias, foi como sempre vibrantemente aclamado de pé
pela assistência. A faena com o seu segundo touro foi como habitualmente
brilhante e impecável, Manolete obrigando o touro a passar rente a ele, antes
de marrar o pano vermelho, sem ele se mover um centímetro, sem sequer olhar o
resfolgante animal de setecentos quilos, para aflição da plateia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando o toureiro
parte para a estocada final para matar Isleno, atrasa-se alguns segundos do
habitual, o touro afunda um dos cornos na veia femoral de Manolete,
provocando-lhe uma abundante hemorragia que o mata mais tarde.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Tinha então apenas
trinta anos e deixou saudades das faenas espetaculares que protagonizou durante
mais de uma década nas praças de touros de Espanha, Venezuela e México. A
comoção em toda a Espanha e América do Sul, e no mundo, foi imensa. Franco
declara três dias de luto nacional, durante semanas os espanhóis, e não só, não
falam de outro assunto recitando minuto a minuto a última faena do ídolo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Em Portugal foi também uma choradeira geral. Clamavam: “Morte
injusta!”, “Que perda irrecuperável para a tauromaquia!”, “Que tragédia a sua
morte, tão novo e tão magnífico na arena!”, “Morreu o melhor toureiro de todos
os tempos. Não haverá igual!”, “Que pena, morrer quando era o mais notável
toureiro!”, “Era muito novo para morrer, ainda tinha muito para nos alegrar!”, etc.
e tal. É foto de capa das principais revistas e os jornais dedicam grossas
manchetes nas primeiras páginas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Eu era jovem e
escrevia para algumas revistas, como a <i>Horizonte</i> e a <i>Seara Nova, </i>e
para o jornal de esquerda<i> República.</i> Numa delas, já não me lembro qual, publiquei
um artigo em que dizia que o notável toureiro morrera no local certo (a arena)
e também na hora certa (no auge da sua carreira), portanto
e indiscutivelmente fora a morte adequada. Quase fui linchado pelos numerosos fãs de
Manolete. Eu escrevera que uma estrela como ele não se pode apagar aos poucos,
tem que explodir, desaparecer num ápice. Só assim será mártir e herói, chorado
coletivamente, e perdurará na memória popular. Uma estrela de tal fulgor não
pode esgueirar-se secretamente da sua constelação, apagar-se, ficar velho e ter
uma velhice triste e amarga.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Entre parêntesis. Se conseguirem o DVD não deixem de ver <i>Manolete
–Sangue e Paixão</i>, com Adrian Brody como Manolete e Penépole Cruz, como
Lupe, a linda mulher da sua vida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">A propósito, lembro-me, quando há muitos anos vivia em São
Paulo, de ir às vezes com os meus amigos a um restaurante ‘mexicano’, cuja
comida era ótima. O dono teria sido toureiro e as paredes do salão estavam
literalmente forradas de fotografias dele em faenas ou aparamentado à toureiro.
Recordo ainda de uma impressionante com uma orelha de touro na mão… gotejando
sangue. E como não bastasse, ele vinha até à nossa mesa a vangloriar-se desses
seus êxitos passados, teriam sido ou não, e eu olhava para aquele gordo
derrotado, barrigudo, com o cinto abaixo do umbigo, a camisa e a roupa tão
amarfanhadas, uma figura tão distinta dos exuberantes trajes de ‘matador’, que
me dava vontade de rir. Ao mesmo tempo, tinha muita pena dele a exibir com
tanto orgulho o seu passado em fotos ruins e cagadas pelas moscas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Porque é que James
Dean, apenas com três filmes, ficou nos anais do cinema como um ator
fantástico, que realmente foi, mas não muito mais do que outros seus companheiros,
também muito bons, que desapareceram da história do cinema. Talvez por ter
morrido ao volante de um carro, como num dos seus filmes, com apenas 24 anos e
no próprio ano desses seus filmes (<i>A Leste do Paraíso, Fúria de Viver</i> e <i>Gigante</i>).
Porque é que Marylin Monroe é tão popular hoje como em vida, quando <i>O Pecado
Mora ao Lado</i> era sucesso mundial. Possivelmente por estar no auge da sua
carreira aos 36 anos e ter-se suicidado de forma dramática e um pouco
misteriosa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ainda no cinema, não
assistimos tão recentemente ao anúncio da morte por suicídio de Philip Seymour Hoffman
e logo ao justo reconhecimento do seu mérito? Na música poderia citar Elvis
Presley e Charles Parker (Bird), com 37 anos, sem esquecer Bob Maley e tantos,
tantos outros. E na política portuguesa, Sá Carneiro? E até, antecipadamente, o
anúncio que Jon Stewart se vai retirar da televisão no pico do êxito do seu <i>Daily Show</i>, que manteve
por dezasseis anos, com o segmento de
humor político ‘International Moments of Zen’?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Também recordo de um
outro facto. O trânsito em São Paulo é muito ruim, como é sabido, mas ainda por
cima os carros são largados em qualquer lugar, passeios, em frente de portas de
garagens, bloqueando outros, um inferno. Até que um dia apareceu um ‘Salvador
da Pátria’: um Diretor do Departamento de Trânsito, um tal Tenente Estrela, que
declarou guerra aberta aos motoristas desrespeitadores dos bons costumes. Era
presença constante nos telejornais ou em vibrantes entrevistas e comunicados,
ou mesmo à frente das câmaras de televisão com uma sua equipa a rebocar carros
a torto e a direito, a bloquear as rodas, até a esvaziar os pneus. Um prato
cheio para os noticiários em geral, e o povinho adorava. Óbvio, não tanto
quanto os motorizados. Até que numa entrevista à TV, das muitas que dava, de
pé, exaltado, vociferando, não deu outra, tombou com um AVC e morreu frente às
câmaras. Para muitos era um herói, passou a super-herói.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Continuei assim a
defender sempre a tese de que é no auge que o artista, o ator, o trapezista, o
boxeur, o escritor, o bailarino, o músico, porque não o político e o locutor ou
âncora, se devem retirar, sem necessariamente emigrar para a chamada ‘outra
vida’. Se bem que, tendo a sorte (?) de ser de forma dramática, fica mais
garantida a saudade perene.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Há dias quando falei
a uma amiga que tinha criado uma nova editora, ela disse-me: “Oh! Mário, está
errado, já provou que é bom editor várias vezes, para quê, com a sua idade,
voltar a trabalhar?”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> É facto que vendi a
Editora Pergaminho há sete anos, uma editora que, na época, mais do que uma
editorial era uma marca respeitada e de sucesso, e que vendi muito bem. Era a
altura de me retirar. Mas parei? Não, meses depois criei a Vogais &
Companhia, com o sucesso explosivo e prolongado de <i>O Diário de um Banana, </i>que vendi um ano depois em boas condições,
há cinco anos. Fui turista ativo durante três anos, no ano seguinte escrevi
dois romances e dois livros de contos. Depois das férias do ano passado iniciei
a ‘4Estações-Editora’ e a sua chancela editorial ‘O Castor de Papel’. Ao
celebrar noventa anos. Qual a razão? Qual a lógica?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Deveria ter-me
retirado quando? Quando vendi a ‘Vogais’, a ’Pergaminho’ ou alguma das
brasileiras, talvez a ‘Fundo de Cultura’,
ainda tão celebrada?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quero crer que voltei
por duas boas razões: Primeiro, pela minha paixão pela leitura e pelos livros,
desde muito novo, a partir dos meus oitos anos. Mas para acalmar essa paixão,
dirão, não bastaria ir de quando em quando a uma boa livraria? Sim, é certo,
isto é, seria se não houvesse uma segunda razão: do que eu gosto mesmo é de
‘criar’, sim, isso mesmo, criar, no
sentido amplo da palavra. E asseguro-lhes, nada como editarmos um livro para
sentir a força do criar. Verdade é que já criei muitos jardins, dos mais
variados tamanhos e usando as mais variadas plantas, o que sempre me deu muita
satisfação. Já construí talvez duas dúzias de casas de campo, muito diferentes
umas das outras, o que também foi um excelente exercício do criar. Assim como a
partir da terra rasa criei três urbanizações. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Nem quero falar de
minhas experiências juvenis: a produção de bijuteria em madeira, um fracasso,
mas mais tarde vi, com alegria, semelhantes em
vitrines parisienses; e uma pequena fábrica de perfumes, o de nome ‘55’
teve razoável sucesso, quase que ainda recordo o seu aroma (pesquei as fórmulas
num livro de química, alemão, em tradução espanhola).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao completar noventa
anos, na festa com os meus numerosos familiares, disse umas palavrinhas que se
enquadram muito bem, acho, no meu percurso de vida. Lembrei-lhes que subir a pé
pela encosta de uma montanha, como tantas vezes fiz, não é um desafio fácil. As
botas escorregam nas folhas apodrecidas e no limo, as pedrinhas atrapalham, tanto
como troncos quebrados e plantas
espinhosas e atrevidas. As trilhas por vezes são interrompidas por rochas
grandes e nem percebemos a razão, já que continuam adiante, mas é uma incerteza
angustiante procurar a continuação. A respiração fica ofegante à medida que
subimos e a mochila parece ter ficado mais pesada, mas temos que ficar atentos
ao caminho que percorremos. Com frequência enganamo-nos e entramos em veredas erradas, e por vezes temos
dificuldades em encontrar a senda certa. Caímos, esfolamos as mãos e os
joelhos, mas é preciso continuar, queremos continuar a subir, desejamos
alcançar o alto da montanha, a nossa meta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Finalmente
conseguimos pisar no cume, sentamos numa rocha, a respiração normaliza e a
paisagem de que desfrutamos alegra-nos. Experimentamos uma sensação de vitória
e de conquista, e serenamos. Lá em baixo, no vale, estão os que não subiram e
cumprem o seu dia-a-dia. Algumas casas fumegam, as crianças a sair da escola
são apenas pontos brancos das suas camisas. Dos animais a pastar ouvimos os
bramidos, como música de fundo. Sentados e tranquilos, a sensação é tão boa que
quase esquecemos que teremos que descer e que a descida é também difícil, pouco
menos do que a subida. Mas temos que voltar para, também, irmos à nossa
vidinha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Contudo, um bom montanhista, enquanto descansa
no alto de uma montanha, além de olhar para o vale, mira ao seu arredor a
admirar os cumes das outras montanhas em volta, algumas mais altas e certamente
de escaladas mais difíceis. Então esquece as dificuldades da subida que acabou
de vencer e prepara-se, mentalmente, para subir a que mais o desafia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Há sessenta anos que
o meu trabalho é editar e dele tenho vivido, basicamente. Criei mais de uma
dezena de editoras, felizmente com o sucesso suficiente para serem respeitadas
pelos leitores, que é realmente o que me interessa, pois que só daí virão os
resultados. Mas como o montanhista que de um alto de uma montanha ambiciona e
propõe-se a subir outras, não ignorando nem temendo as dificuldades, decidi voltar
a editar. Criei assim a ‘4Estações-Editora’
e a sua chancela editorial ‘O Castor de Papel’. Será difícil, eu sei,
talvez esfole os joelhos ou erre a trilha, mas quero continuar. Hoje com mais
razão, pois tenho uma companheira fiel e forte para me ajudar nesta escalada, a
Ione França, a qual nos últimos vinte anos a mim se tem amparado e eu, com
amor, a ela.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Talvez seja isto que
deva responder à minha amiga. Ela compreenderá, creio.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">
* * *<o:p></o:p></span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-86642683826081427972015-02-22T03:24:00.002-08:002015-02-22T03:24:23.439-08:00Mário de Moura (DeMOURA) . O RAPTO DA EUROPA, NÃO POR ZEUS<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> 24. O RAPTO DA
EUROPA, NÃO POR ZEUS<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O dia de ontem, 20 de
fevereiro, foi um dia que ficará para a história como o dia de luto para a
Europa, o dia de Finados para a União Europeia, o dia do réprobo geral à
Alemanha e o dia da vergonha para Portugal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O dia
de luto para a Europa, porque o presidente do Eurogrupo (o Sr. Jeroen
Dijsselbloem), num momento crucial para esta instituição, se acobardou perante
Berlim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O dia
de Finados para a União Europeia, porque o Presidente da Comissão Europeia (Jean-Claude
Juncker), um experimentado político, retrocedeu o seu apoio à causa grega e foi
incapaz de impor a sua manifesta vontade a favor da antiausteridade na Europa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O dia do réprobo à
Alemanha, porque o seu Ministro das Finanças (Wolfgang Schäuble) e a sua acólita
(Angela Merkel) conseguiram travar um processo de repúdio aos nefastos
programas de austeridade impostos a alguns países europeus, através do qual os
gregos pediam apoio para programas mais sensatos e humanos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O dia da vergonha de
Portugal, pela subjugação canina do seu incompetente Primeiro-Ministro (Coelho)
ao lamber as botas do diabólico ministro
alemão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Como a maioria dos
europeus, admirei a coragem e o destemor de Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis ao
tentarem a saída da Grécia do programa dito de assistência, que na realidade é
de agiotagem do capital internacional, não se negando a pagar a dívida do país,
mas sim a equacionar a sua amortização para abrandar o sufoco e a miséria a que
foi lançado uma boa parte do povo grego, e não só </span>—<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> some-se Itália, Espanha, Portugal,
Chipre etc.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O certo é que a
Alemanha que saiu destruída da 2ª Grande Guerra, provocada por ela, que no
pós-guerra recebeu um colossal auxílio financeiro dos E.U. e de outros países
europeus, tendo depois essa dívida perdoada, incrivelmente, hoje domina
totalmente a dita União Europeia, económica e politicamente. Há alguma razão? Tem
algum cabimento? E faz sentido que menospreze claramente os países europeus do
Sul, a que chama de preguiçosos e gastadores? Quando a Itália, a França, a Grécia,
a Espanha eram vigorosas culturas, que deram coesão e prestígio à Europa, a
Alemanha era um país de bárbaros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O belo sonho da
Europa unida, tão bem idealizado, está a ser torpedeado sem escrúpulos ou
hesitações por quem dele devia melhor cuidar. Não estará na altura destes
indesejáveis países do Sul saírem em conjunto da União Europeia e formarem a
União Europeia do Sul, com a sua moeda e economia próprias? Sem o peso
burocrático e dispendioso de Bruxelas. Dessa forma a importação de produtos
alemães e de outros países do Norte da Europa seriam tributados, dando melhores
oportunidades aos dos seus próprios países. A Europa do Sul não precisa dos
carros, das cervejas e dos alfinetes alemães.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> E já não estaria na
hora dos povos ‘gastadores’ do Sul começarem a boicotar os produtos alemães?
Não haverá alguém que encabece esse movimento desde já?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Num século a Alemanha provocou três sangrentas guerras, e
perdeu-as. Mas deixou sempre muita miséria, mortes e destruição. Atualmente
está de novo a provocar miséria, mortes e destruição. Como não considerar os
bairros miseráveis onde se amontoam milhões de habitantes destes países do Sul
da Europa como novos campos de concentração, onde inocentes morrem de fome, de
frio e de doenças, sem terem culpas, e apenas para que os capitalistas alemães
enriqueçam? Que devemos à Alemanha? O <i>Requiem</i>
de Mozart para acompanhar os nossos mortos?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao que parece a cruz
suástica esconde-se agora no símbolo do euro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Estamos agora à mercê
do despeito, da crueldade e do cinismo do prepotente senhor Schäuble, como há
décadas estivemos de um outro louco de bigodinho de triste memória. Não estará agora
na hora de rever <i>O Grande Ditador</i>, de
Chaplin? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Como é possível que um
ministro Alemão se atreva a ladrar que o povo grego não deveria ter eleito
Tsipras? Que audácia e que desrespeito pelos outros povos! E como se não
bastasse, depois da reunião de ontem, em que teimosa e cruelmente impediu que
os outros países analisassem com atenção e democraticamente a proposta grega,
ainda teve o atrevimento de dizer: “E agora o que é que o Sr. Tsipras vai dizer
ao povo grego?” <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Como é possível que
mais de duas dúzias de chefes de Estado europeus ‘soberanos’ fiquem calados
perante estas incríveis afirmações?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não quero aqui e
agora falar do Presidente da República de Portugal e das suas habituais gafes
políticas, que bem contribuem para a nossa vergonha. Esperemos pacientemente
que ele volte para o seu Algarve.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas não posso deixar
de falar da insensatez do Primeiro-Ministro (evitei dizer nosso), que não
percebe que o ‘caso’ grego pode fazer toda a diferença, para melhor ou para
pior, para a crise portuguesa. Penso que possivelmente ele não ganhará as
próximas eleições (acredito nos portugueses), mas o que me pergunto é o que acontecerá a ele posteriormente? Será julgado
em Tribunal Criminal por tantas mortes e destruição que causou, ou simplesmente
irá roçar as suas calças em Bruxelas ou numa grande empresa?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Já disse que, para
Portugal, 20 de fevereiro é o dia da vergonha pelo comportamento servil de
Coelho à dupla alemã, mas não só. Mais caricato ainda, é a Ministra das
Finanças de Portugal prestar-se ao papel de panfletária a favor da austeridade
apresentando o país como um exemplo de sucesso do programa da <i>troika,</i> um desrespeito aos muitos
milhares que aqui estão na miséria e desempregados, para agradar aos alemães.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não sei se se lembram
de Fritz Lang no início da sua carreira de cineasta nos estúdios da UFA, no seu
país, a Alemanha (<i>Dr. Mabude</i> e <i>M de</i> <i>Matar</i>)?
Nos seus filmes dessa época apareciam umas figuras disformes e pérfidas que
aterrorizavam as plateias. Depois ele foi para os Estados Unidos onde dirigiu
belíssimos filmes, entre eles o corajoso <i>Os
Carrascos</i> <i>também Morrem</i> (sobre o
assassinato de crianças pelos nazis, estando estes ainda no poder,1943). Parece que Lang deixou à solta, no seu país
natal, descendentes desses monstrinhos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não, não, a mítica
Europa não foi raptada por Zeus, mas por Schäuble e Merkel!<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> <o:p></o:p></span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-40448508053017588442015-02-11T12:19:00.002-08:002015-02-14T12:00:36.176-08:00LISBOA, MINHA DOCE E ESQUECIDA NAMORADA<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">23. <b>LISBOA, MINHA DOCE E ESQUECIDA NAMORADA<o:p></o:p></b></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Depois de ter visitado Portugal pela primeira vez vinte anos
após a minha saída em 1948, voltei muitas vezes durante o período de outros
vinte anos em que continuei a viver no estrangeiro. Nos primeiros anos
especialmente para estar com o meu pai e a minha mãe ainda vivos, que moravam
sozinhos em Campo de Ourique, ou melhor dito rodeados de todos os seus filhos
vivos (Isabel, a minha irmã mais velha, Rui, pouco mais velho do que eu, e
Rogério, um pouco mais novo), mais um genro e duas noras, e nada menos que doze
netos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Para mim, Campo de
Ourique, para além do convívio com todos esses familiares (a maior parte dos
meus sobrinhos eram-me até então desconhecidos), oferecia-me muito em termos de
recordações da adolescência e da juventude. Contudo, Lisboa oferecia-me pouco
mais, uma cidade sem grandes espetáculos e quase sem museus de porte, apenas o
Museu de Arte Antiga (que eu revisitava muito, como quando era jovem) e o recém-inaugurado
Museu da Gulbenkian, uma verdadeira pedrada no pântano. Dava umas escapadas a
Mafra, à Ericeira, a Sintra e até a Coimbra.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Na minha segunda visita à terrinha, a política nacional
divertia-me muito. Eu voltara a Portugal porque Salazar deixara de ser
Presidente do Conselho de Ministros. Bom, não foi bem assim. Salazar havia
caído de uma cadeira, parece que ao cortar os calos, há pouco mais de um ano
atrás, e ficara incapacitado para governar, segundo os médicos, e não só, e
Marcelo Caetano ocupara o cargo de Salazar. Mas o mais fantástico é que Salazar
foi levado para o Palacete de São Bento, sua residência oficial como Presidente
do Conselho de Ministros (como é sabido o Parlamento ficava praticamente no seu
quintal das traseiras), e lá ficou como se ainda Presidente do Conselho de Ministros
fosse. Os Ministros iam despachar com ele e, ao que se dizia, a D. Maria (essa
controversa personagem) não o deixava ler jornais, ouvir rádio ou ver
televisão. E assim se passaram dois anos, ele caiu da cadeira a 3 de agosto de
1968 (estava de férias) e veio a morrer em 27 de julho de 1970, pouco depois de
eu voltar para o Brasil.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quase no final do
falso mandato, um jornalista francês entrevistou Salazar e a folhas tantas
diz-lhe: “Atualmente fala-se muito do Prof. Marcelo Caetano.” Salazar respondeu
que Marcelo tinha sido do seu governo, mas como divergiam muito, ele
demitira-o. Tem alguma coisa de Pirandelo, não tem?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O que me surpreendia
é que todas as pessoas com quem eu falava, mesmo as mais inteligentes e
politizadas, acreditavam nesta farsa. Para mim é evidente que Salazar tinha
consciência da sua incapacidade para estar à frente do Governo, armando esta
cena de fingir que continuava como Presidente do Conselho, e devia divertir-se
muito com as reuniões com os ‘seus’ Ministros. Esta manipulação foi o seu maior
golpe como estadista e permitiu-lhe gozar por mais dois anos da mistificação de
ser o todo-poderoso, o que muito lhe agradaria. Se ainda conseguia falar com
ministros e jornalistas, como era possível alhear-se completamente das notícias
do País e do mundo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Tive curiosidade de
ir até à rua do Palacete de São Bento (uma mansão inserida em 20.000 metros quadrados de área, construída por um homem muito rico, no séc. 19, no terreno de um convento), esquina pela qual passei durante sete
anos, duas ou quatro vezes por dia, quando ia ou vinha do Liceu Passos Manuel
para casa) e fiquei parado a ver o movimento. De facto, chegavam carros grandes
com motorista, fulanos no banco traseiro, certamente ministros, que iam como os
bobos da corte alegrar Sua Majestade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Um guarda veio até
mim e rispidamente informou-me que eu não podia ficar ali. Tive vontade de lhe
perguntar se temia que eu matasse o morto, mas resolvi afastar-me rapidamente, pois
conhecia a delicadeza da polícia portuguesa. Mas contente, pois assistira a
mais um ato de uma ópera bufa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas, como disse,
enfadava-me em Lisboa. Então, decidi ir até Madrid, que visitara por duas vezes
em viagens à Europa, mas sem vir a Portugal. Lembrava-me da minha primeira
viagem a Espanha, há 30 anos, tinha eu apenas 15 anos, por pura curiosidade,
trajeto a pé e de boas recordações, que relatei no <i>post</i> 17, Maria
Azeitona.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Fui sozinho de
comboio e na volta escrevi uma carta, ou lá o que é, sobre essa viagem, para
uma amiga minha no Rio, que transcrevo abaixo com ligeiras alterações.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<b><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Não há queques em Madrid.<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<b><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na era do jato
resolvi, por maluquice e saudosismo viajar de comboio de Lisboa a Madrid. São
seiscentos quilómetros unindo, quer dizer, separando, estas duas capitais, mas
na realidade uma viagem que nos leva a um passado presente e mais do que
medieval.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Como companhia, meu
amigo quase irmão, meu irmão quase amigo, eu próprio, cuidadosamente embrulhado
em ideias fantasiosas de uma viagem de quando ainda garoto a uma cidadeca
espanhola, e muitas saudades de uns tempos em que a escola era risonha, pois
era apenas um menino, e só depois de homem mais que feito o menino sabe, tarde,
como era bom aquele tempo. Enquanto a paisagem corria, ficámos conversando,
discutindo o futuro que não sabemos se teremos, grandes planos, não realizáveis
— mas afinal quantos dos nossos sonhos conseguimos realizar? Porém, seria a
vida possível sem eles?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A paisagem é
anacrónica. Ovelhas e oliveiras, oliveiras e ovelhas, como nos tempos bíblicos.
Fico a aguardar guardas pretorianos como os de filmes americanos. Mais
oliveiras, ovelhas, algumas vacas, muros de pedra, casas de pedra, rochas, um
ou outro cão, mais muros de pedra, oliveiras. Infelizmente poucos jumentos, que
saudades do meu burrico Ginga, da quinta de Cabeda, a cadela Estrela e o meu
casal de milhafres. E do seu voo sereno e soberano que eu admirava estirado
naquela terra de cheiro tão gostoso como o de mulher amada (mas isto só vim a
descobrir depois).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Lá fora a colheita de
azeitona está em marcha, ou talvez outra tarefa agrícola. Cestos e lonas, os
putos, muitos, as mulheres de preto, curvadas, cansadas, que não acenam para o
comboio de luxo, possivelmente até lhe rogam pragas. Em vez de burros, um ou
outro <i>Renault</i> ou <i>Fiat</i>.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Sete horas de muros
de pedra a dividir as pequenas propriedades, velhas e retorcidas oliveiras,
riachos prateados e as azedinhas pintando alegremente de amarelo ingénuo e puro
o verde-escuro do pasto. Os grandes novelos de lã, como há milhares de anos,
arrancam pacientemente o seu sustento deste pasto. Para mim, estas ovelhas representam
uma viagem no tempo, não no espaço.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Aqui e acolá,
vergonha, grandes manchas de eucaliptos. Empurram, mais e mais, a vinha, o
trigo, o pinheiro, o pasto, a oliveira. Em breve o português comerá e beberá
celulose… e defecará imensos rolos de papel higiénico com os <i>Lusíadas </i>neles
impresso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Há uma fronteira,
assim o indica a parada, guardas e carimbos e, claro, perguntas idiotas. Para
quê, se dos dois lados tudo é gente humilde vivendo de colheitas à custa de
muito suor, um mundo simples, a vaca, a oliveira, o leite, a lã, a azeitona, o
azeite, a mulher de preto. Ao mirá-las penso no ato sexual simples, sem
sofisticação, a mente simples, o corpo quase virtuoso mas que gera todos estes
desgraçados que fogem destas terras para Lisboa e para os Brasis da vida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na chegada a Madrid,
para minha desilusão, não há banda de música nem passadeira vermelha. Sinto-me
o pó da bosta seca do cavalo de bandido de filme de <i>cowboys. </i>Mas afinal
não é tão ruim assim. Telefono para uma amiga madrilena, que não se chama
Carmen nem Dolores, pouco interessa, eu chamo-a de ‘minha flor’.</span><br />
<span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;"> É Páscoa. Vejo o
desfile na Gran Via, muita pompa e fervor, muito roxo e dourado, mas, coitados,
não conseguiriam desfilar no Segundo Grupo das Escolas de Samba do Rio. Falta
requebro e pele escura e, claro, maconha e cachaça. Confronto com um desfile de
Páscoa em Cuba, há muitos anos, e concluo que Disney liquidou as velhas
tradições. Oh! Hollywood, como mudaste os homens em meio século, mais do que a
Igreja Católica em vinte.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Madrid, linda, limpa,
imponente, ainda com resquícios do franquismo. Mas sem dúvida espetacular…
porém não há queques em Madrid. Apenas churros e roscones. Se Portugal não
estivesse a vender ainda e apenas os extraordinários feitos dos navegadores de
há quatro séculos, poderia estar vendendo queques, pastéis de nata e papos de
anjo para seus vizinhos, e não só. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Madrid sem touradas,
com sol e frio de março. O ritual do cinema às dez da noite e a ceia à
meia-noite e depois tablado ou zarzuela. Felizmente também <i>la siesta</i>,
que ninguém é de ferro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Visito demoradamente
<i>El Retiro</i>. Está cheio e lindo. Fantasmagórico com centenas de árvores
despidas de folhas, ramos implorando algo ao céu, e como elas me impressionam.
Dá vontade de aguardar o renascer das suas folhas na primavera já próxima. E
porque não? Acarinho algumas das suas árvores majestosas, aproveito o fresco
das imensas copas das que mantiveram a folhagem, ensopo-me de verde abundante e
do salpicado das cores de muitos canteiros em flor. Nem que seja só para
visitar este maravilhoso parque, vale a pena visitar Madrid.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> No Prado vejo a
jogar a equipa completa: Ticiano,
Velásquez, Goya, Zurbarán, El Greco,
Becerra e outros. Não descubro qual é o artilheiro, mas aposto em Goya.
Porém, fico pensando como os bispos e beatas aceitavam aqueles nus voluptuosos,
pecaminosos, mágicos? Autoflagelação ou alimento de sonhos proibidos?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Depois <i>Guernica</i>.
Pausa. É um murro no estômago bem dado por Picasso. O resto é água com açúcar.
Penso em Lorca fuzilado em lugar incerto, no bombardeamento pelos aviões
alemães, nas colunas de mercenários roubando e incendiando tudo quanto
assaltavam, das crianças roubadas aos pais ou sem eles, assassinados. Além de
uma obra de arte poderosa é um testemunho, um alerta, que fica, ficará por
muitas gerações para lembrar aquele período negro, tão negro da história da
Espanha e da humanidade. Obrigado, Picasso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na época ainda não
existiam os museus da Rainha Sofia e o Thyssem-Bornemisza. Por isso visito
também o Museu de Arqueologia. Aquela vida há tantas dezenas de séculos
impressiona-me tanto quanto os livros de Arthur Clarke, que me esperam lá fora,
no quiosque de jornais. Para mim é uma medida muito grande, inaceitável, tantos
milhões de anos para quem tem apenas escassos milhões de segundos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas é preciso voltar
à terra, que não tem funcionado como tal para mim, regressar a um outro mundo,
terceiro (?), não sei.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> De novo o comboio. A
paisagem secular. Em terras espanholas há muitos touros a pastar. Manadas
pretas movimentam-se lentamente como que para uma refrega. Que esperam aqueles
touros, para que praça de touros irão ser lidados e mortos para glória e
vaidade de que toureiro?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A minha carruagem
está quase vazia. Antes da fronteira, um sujeito, possivelmente africano ou
boliviano, bem vestido, como os pretos em filme americano nos seriados,
inclusive com grandes óculos escuros, vem até à primeira classe, estaca um
pouco na entrada, inquieto, eu estou olhando os campos pela janela, ele
decide-se e entra apressado na casa de banho. Filho da mãe, não me engana.
Quando ele saiu fui conferir, não deu outra. No toalheiro, em baixo, lá está a
coca em saquinhos, sedutora, ameaçadora, vale um dinheirão. De repente pensei
em surripiá-la, mas tive medo e nem tinha sentido. Jogá-la fora pela janela? Um
espírito burguês idiota não me deixou destruir o que valia tanto. Depois me
achei uma besta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Assim que entrámos
neste Portugal patusco, querido (?), nem sei, o <i>dealer </i>volta à casa de
banho para apanhar a muamba. Levou um susto quando viu tudo remexido, sacos
rasgados, o ‘pó’ descoberto. Agora ele ‘sabe’ que alguém ‘sabe’, mas não
entende a jogada, pensará que foi algum curioso, não os guardas. Sai da casa de
banho e fica especado no corredor a olhar para os viajantes nas suas poltronas.
Tenho a certeza que ele ‘sabe’ que fui eu, o mais possível dos seis
passageiros. Fico firme. Ele olha e não entende. Dá um tempo esperando que eu
abra o jogo. Levanto-me, passo por ele e vou até ao bar. Tomo meia garrafa de
vinho branco, o meu ‘pó’, líquido e saboroso. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Entretanto, fico a
pensar como os brancos estão sendo destruídos pelas drogas vendidas por outros
brancos sem escrúpulos, pretos, mestiços, crioulos, árabes, asiáticos. Réquiem
para uma raça! Os chineses vendem o seu ópio de segunda aos americanos ou aos
lordes ingleses, que compram a coca ao mestiço boliviano, e a heroína aos
argelinos. Bom negócio, sem necessidade de milionárias campanhas de
publicidade. Repito, réquiem para a raça branca, música de Mozart, em CD de
gravação japonesa e aparelho coreano.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Finalmente o comboio
está a chegar a Santa Apolónia. É o regresso a Lisboa ainda simplória, minha
doce e esquecida namorada. Quando a locomotiva freia com aquele cinematográfico
resfolgar, tenho a sensação que acabou uma sessão de cinema.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Meus irmãos
esperam-me na estação. Afinal sou gente. Eu que fiz centenas de viagens aéreas,
de comboio e de autocarro, por tantos países, nunca alguém me acenou um lenço
de adeus nas partidas, nunca alguém me abraçou nas chegadas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Lisboa, 1970<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-702795363720341002015-02-06T11:20:00.000-08:002015-02-07T07:22:27.261-08:0022. DA BELEZA E DA VERACIDADE<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> 22. DA BELEZA E DA VERACIDADE<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Um internauta
tropeçou no meu blogue e depois fez reparos ao meu <i>post </i>do final do ano, em que publiquei um muito conhecido e belo
texto, ‘Desiderata’, bem adequado à quadra natalícia. O leitor chamava-me a
atenção para o facto de esse texto não ter sido gravado na pedra na velha
Igreja de São Paulo, em Baltimore, em 1692 (como eu mencionei). Afirma que ‘Desiderata’
foi escrita em 1927 por Max Ehrman, um poeta, mas por ter sido divulgada por um
padre levou a esse erro frequentemente cometido.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Sinceramente, eu já
sabia dessa versão, contudo não a mencionei: primeiro, por não acreditar muito
nela, várias pessoas afirmam terem fotografado este texto gravado na pedra;
segundo, porque é mais interessante que seja um texto com alguns séculos e
gravado na pedra no interior de uma velha igreja do que um artigo publicado num
jornaleco de província; terceiro, porque o que me importa é a beleza e a força
da sua mensagem. Se foi X ou Y que o escreveram, no séc. 17 ou 20, pouco me
importa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Imaginem que encontro
uma bela poesia de Fernando Pessoa gravada na pedra no interior de uma
velhíssima igreja alentejana, sem assinatura e datada de 1825. Entusiasmado
divulgo-a acrescentando que é anónima e que tem quase cem anos. Deixa de ser
menos bela se alguém a identificar como sendo do nosso maior poeta e de ter
sido encontrada no célebre baú?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Há um outro caso
similar, que também vem levantando controvérsias. É um outro texto lindíssimo e
que deveria ser divulgado nas escolas pela sua beleza, força e atualidade, um
verdadeiro manifesto ecológico. Estou a falar da ‘Carta do Chefe índio (na
realidade cacique), Seattle, ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce’,
em 1854, quando este lhe propôs comprar uma grande área onde habitava a sua tribo e confiná-los
a uma reserva.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> De novo a mesma
questão. A carta não teria sido escrita diretamente pelo chefe índio Duwamish,
de nome Seattle (as terras em questão são quase na fronteira do Canadá), ao
presidente americano, mas sim por um tal Dr. Henry Smith que assistiu à reunião
desse respeitado cacique com a sua tribo para discutir a oferta do presidente
americano. Esse Dr. Smith ficou tão impressionado com a eloquência tão brilhante,
lúcida e emocionante do cacique e com o profundo respeito que inspirava ao seu
povo, para além da coragem das suas palavras, que anotou uns apontamentos, na
base dos quais publicou essa ‘falsa carta’ num jornal (<i>Seattle Sunday Star</i>), em 1887, que daí em diante passou a ser
conhecida como ‘A Carta do chefe Seattle ao Presidente dos Estados Unidos’ até
aos nossos dias.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas o que importa? O
que vale é a beleza e a importância do texto. As palavras, sim, só podem ter
sido pronunciadas por um índio genuíno, velho e sábio. A ironia, a lucidez, o
amor à terra e aos animais, a coragem, explodem nestas linhas e tornam-nas
perenes. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Adiante poderão ler
uma versão divulgada na década de setenta do discurso do cacique Seattle após o encarregado dos negócios indígenas do governo norte-americano ter feito
a proposta de adquirir as terras da tribo Duwamish. Texto este traduzido pela
equipe de ‘Floresta Brasil’, e mantido inalterável, no estilo e na ortografia, e do qual se originou 'A Carta do Chefe Seattle' numa versão mais epistolar e a que foi e é a mais divulgada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT; mso-hansi-font-family: Calibri;">O
pronunciamento do cacique Seattle</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT; mso-hansi-font-family: Calibri;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">O grande
chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande
chefe assegurou-nos também de sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua
parte, pois sabemos que ele não precisa de nossa amizade.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Vamos, porém,
pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá
com armas e tomará nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no
que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem
confiar na alteração das estações do ano.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Minhas
palavras são como as estrelas que nunca empalidecem.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Como podes
comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se não
somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes
comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo, cada folha
reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta
escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na
consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as
recordações do homem vermelho.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">O homem
branco esquece a sua terra natal, quando - depois de morto - vai vagar por
entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela
é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores
perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia - são nossos
irmãos. As cristas rochosas, os sumos da campina, o calor que emana do corpo de
um mustang, e o homem - todos pertencem à mesma família.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Portanto,
quando o grande chefe de Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra,
ele exige muito de nós. O grande chefe manda dizer que irá reservar para nós um
lugar em que possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos
seus filhos. Portanto, vamos considerar a tua oferta de comprar nossa terra.
Mas não vai ser fácil, porque esta terra é para nós sagrada.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Esta água
brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de
nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é
sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada reflexo
espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida
de meu povo. O rumorejar d'água é a voz do pai de meu pai. Os rios são nossos
irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam
nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e ensinar a
teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terás de dispensar aos rios
a afabilidade que darias a um irmão.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Sabemos que
o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra
é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira
da terra tudo o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e
depois de a conquistar, ele vai embora, deixa para trás os túmulos de seus
antepassados, e nem se importa. Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não
se importa. Ficam esquecidos a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à
herança. Ele trata sua mãe - a terra - e seu irmão - o céu - como coisas que
podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelha ou missanga cintilante.
Sua voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Não sei.
Nossos modos diferem dos teus. A vista de tuas cidades causa tormento aos olhos
do homem vermelho. Mas talvez isto seja assim por ser o homem vermelho um
selvagem que de nada entende.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Não há
sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há lugar onde se possa
ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o tinir das asas de um inseto.
Mas talvez assim seja por ser eu um selvagem que nada compreende; o barulho
parece apenas insultar os ouvidos. E que vida é aquela se um homem não pode
ouvir a voz solitária do curiango ou, de noite, a conversa dos sapos em volta
de um brejo? Sou um homem vermelho e nada compreendo. O índio prefere o suave
sussurro do vento a sobrevoar a superfície de uma lagoa e o cheiro do próprio
vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou recendendo a pinheiro.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">O ar é
precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas respiram em comum -
os animais, as árvores, o homem.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">O homem
branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada
agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás
de te lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar reparte seu espírito com
toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro
sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se te vendermos nossa
terra, deverás mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o
próprio homem branco possa ir saborear o vento, adoçado com a fragrância das
flores campestres.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Assim pois,
vamos considerar tua oferta para comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar,
farei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como se
fossem seus irmãos.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Sou um
selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto milhares de
bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os abatia a
tiros disparados do trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um
fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o bisão que (nós -
os índios) matamos apenas para o sustento de nossa vida.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">O que é o
homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma
grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, logo
acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Deves
ensinar a teus filhos que o chão debaixo de seus pés são as cinzas de nossos
antepassados; para que tenham respeito ao país, conta a teus filhos que a
riqueza da terra são as vidas da parentela nossa. Ensina a teus filhos o que
temos ensinado aos nossos: que a terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra -
fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles
próprios.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">De uma coisa
sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso
temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família.
Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da
terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da
mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Os nossos
filhos viram seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob
o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, envenenando seu
corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância
onde passaremos os nossos últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas
horas, menos uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram
nesta terra ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques sobrará, para
chorar sobre os túmulos de um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de
confiança como o nosso.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Nem o homem
branco, cujo Deus com ele passeia e conversa como amigo para amigo, pode ser
isento do destino comum. Poderíamos ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver, de
uma coisa sabemos que o homem branco venha, talvez, um dia descobrir: nosso
Deus é o mesmo Deus. Talvez julgues, agora, que o podes possuir do mesmo jeito
como desejas possuir nossa terra; mas não podes. Ele é Deus da humanidade
inteira e é igual sua piedade para com o homem vermelho e o homem branco. Esta
terra é querida por ele, e causar dano à terra é cumular de desprezo o seu
criador. Os brancos também vão acabar; talvez mais cedo do que todas as outras
raças. Continuas poluindo a tua cama e hás de morrer uma noite, sufocado em
teus próprios dejetos.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Porém, ao
perecerem, vocês brilharão com fulgor, abrasados, pela força de Deus que os
trouxe a este país e, por algum desígnio especial, lhes deu o domínio sobre
esta terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é para nós um mistério, pois
não podemos imaginar como será, quando todos os bisões forem massacrados, os
cavalos bravios domados, as brenhas das florestas carregadas de odor de muita
gente e a vista das velhas colinas empanada por fios que falam. Onde ficará o
emaranhado da mata? Terá acabado. Onde estará a águia? Irá acabar. Restará dar
adeus à andorinha e à caça; será o fim da vida e o começo da luta para
sobreviver.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Compreenderíamos,
talvez, se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as
esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as
visões do futuro que oferece às suas mentes para que possam formar desejos para
o dia de amanhã. Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para
nós ocultos, e por serem ocultos, temos de escolher nosso próprio caminho. Se
consentirmos, será para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez,
possamos viver os nossos últimos dias conforme desejamos. Depois que o último
homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma
nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará vivendo
nestas floresta e praias, porque nós a amamos como ama um recém-nascido o bater
do coração de sua mãe.</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Se te
vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a
protegíamos. Nunca esqueças de como era esta terra quando dela tomaste posse: E
com toda a tua força o teu poder e todo o teu coração - conserva-a para teus
filhos e ama-a como Deus nos ama a todos. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é
o mesmo Deus, esta terra é por ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar
o nosso destino comum.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">
***</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao ler este pronunciamento do velho índio dá-me vontade de ser cineasta e fazer uma curta-metragem com
base nela. O filme enfatizaria várias vezes a imagem do cacique Seattle a falar
à sua numerosa tribo, uma multidão de rostos, focando de quando em quando os
mais expressivos, exibiria a floresta ao fundo com as suas imponentes e
seculares árvores, depois adentrava nela e explorava as frondosas copas com os
seus pássaros, esquilos e outros pequenos animais, não deixaria de valorizar as
altas montanhas ainda com neve, assim como rios de água cristalina
precipitando-se em pequenas cascatas,
ainda uma imensa planície que servia de pasto para gazelas e veados, e
no céu a majestosa águia e muitas outras aves, até borboletas a bailar caprichosamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Imagino as imagens a
acompanharem passo a passo as palavras corajosas do velho índio revelando as
cenas que ele denuncia. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Seria, creio, um belo
e educativo documentário para passar nas escolas. Claro, uma utopia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">
*** <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-31964933038789625322015-01-31T07:06:00.001-08:002015-01-31T07:06:54.276-08:00A CASA DOS HORRORES<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">21. A CASA DOS
HORRORES<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Com este título li uma
notícia na <i>Visão</i> (edição de
15/1/2015), da qual transcrevo parte: «Depois de ter acolhido presos de foro
eclesiástico (até 1820), mulheres presidiárias, presos políticos do fascismo, e
novamente condenados por delito-comum, a antiga prisão do Aljube, em Lisboa,
vai, enfim, receber… visitantes. Tristemente celebrizada… pelas tenebrosas
torturas aí perpetuadas, durante os interrogatórios da PIDE, este sinistro
edifício histórico pelo menos não vai “para” condomínio de luxo.», como o foi o
edifício sede da PIDE na rua António Maria Cardoso, onde não foram cometidas
menos atrocidades. A notícia acrescenta: “Será, sim, convertido em espaço de
memória, evocação da liberdade e da resistência à ditadura.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Após duas décadas
sem visitar Portugal por ter emigrado, voltei a Portugal pela primeira vez era
Marcelo Caetano Primeiro-Ministro. Claro, o país estava exatamente na mesma,
apesar das malogradas esperanças nesse fascista, que eu não entendi porque
existiram.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Voltei de novo depois do 25 de Abril e contava
encontrar grandes transformações políticas, sociais e outras. Mas não, não as
encontrei, só politiquice. Como antifascista e ex-prisioneiro no Aljube, fiquei
admirado por tanto o Aljube como o ignóbil edifício da António Maria Cardoso
estarem ‘esquecidos’, ‘arrumados’ no
sótão do passado, como tudo o que já não interessa em nossas casas, e como nos
antigos romances em que alguém encontrava no sótão embaraçantes cartinhas de
amor escaldante e clandestino da querida avozinha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Falei com alguns relevantes políticos de então, alguns meus velhos
amigos da militância antissalazarista, mas nenhum deles se interessou pela
minha proposta de criar nestes dois espaços, ou pelo menos num deles, o Museu
da Resistência, ou como quer que se chamasse. Achei ótimo o título que a<i> Visão</i> escolheu: “A Casa dos Horrores”.
Enfim, um espaço onde seriam expostas as técnicas e a prática de repressão e de
tortura usadas pela PIDE, para permitir às gerações futuras tomarem
conhecimento da história do país durante as quatro décadas do salazarismo e
evitar o esquecimento dos horrores cometidos. Nada mais do que de semelhante
foi concretizado em vários países democráticos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Voltei várias vezes a Portugal, para acompanhar os meus pais nos seus
últimos anos de vida, e cada vez mais constatava que os crimes do fascismo eram
tabu, deles não se falava, deles queriam apagar o acontecido pois ao mexer
nisso algo poderia respingar para alguns dos do antigo regime que
descaradamente já ocupavam cómodas poltronas administrativas. A classe política
do país ‘dos brandos costumes’ decidira
branquear o salazarismo e todos os seus crimes contra as pessoas físicas e
contra o país, que o atrasaram em quarenta anos em relação aos demais da Europa
democrática.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Eu sei que na Espanha aconteceu o mesmo e com mais determinação, e que
de cada vez que apareceu algum movimento no sentido de uma averiguação séria e
de uma divulgação pública e de punição criminal, foi de uma forma ou outra
podado. Foram encobertos e escamoteados do povo os terríveis crimes do
franquismo, ocultados tantos assassinatos de inocentes, tanta crueldade contra
os inimigos, afinal os legítimos representantes do povo, tantos roubos de
filhos à suas chorosas mães, tantas apropriações de bens indevidas. E quando um
juiz espanhol corajoso conseguiu prender Pinochet, quando este visitava
Londres, foi aclamado, mas quando o vento mudou e este mesmo juiz Garzon quis
averiguar o período franquista, então foi ostracizado pela classe dominante
espanhola e afastado das suas funções.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Num conto que escrevi, “O Prisioneiro”, incluído em <i>O Contador de Estórias</i> (4Estações-Editora), o personagem esteve
preso no Aljube tendo depois emigrado e, mais tarde, já após o 25 de Abril,
veio visitar Portugal com a mulher e filhos para lhes mostrar as belezas do seu
país. Naturalmente não resistiu ao desejo que a família conhecesse a ‘terrível’
prisão de que sempre lhes falara, mas quando se depara com o edifício do Aljube
reage assim:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> «Frente ao edifício do Aljube, salta do carro
e fica parado a olhar. Não quer acreditar. Está perplexo enquanto, do passeio
em frente, fixa as carcomidas e velhas paredes do prédio de que tantas vezes se
recorda. Tinham passado algumas décadas e, no seu imaginário, aquele edifício
tinha crescido em tamanho e em terror. Agora não é mais do que um prédio feio e
degradado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> O que o espanta é que nada assinala o que
nesse edifício se passou durante tantos anos. Não há qualquer indicação de que
ali estiveram presos, sem julgamento nem culpa formada, tantos milhares de
inocentes e outros tantos corajosos ativistas que lutaram destemidamente contra
o regime injusto. Nem uma placa pequena a assinalar. Nada. Para quem passa, é
apenas um edifício público anónimo. O prisioneiro pensa que isto representa uma
insensível, ou melhor, uma cobarde afronta a tantos que ali sofreram muito.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Quando ainda no Canadá, imaginava esta visita, estava certo de naquele
edifício encontrar um ‘Museu da Repressão’, ou lá como se chamasse, aberto ao
público, mostrando as celas terríveis, o ‘parlatório’ em baixo, onde as
famílias viam com dificuldade os presos devido a duas paredes de rede que
também barravam o contacto, os WC, ou seja, como tudo era quando funcionava
como prisão. Ingenuamente, o prisioneiro esperava até ver figuras de cera, de
tamanho natural, reproduzindo os carcereiros, os pides e os presos, até os
ratinhos e as ratazanas que ali viviam com mais liberdade que os presos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
—<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Não fiques triste, meu querido pai,
por as gerações anteriores escamotearem às mais novas períodos negros da
história do país, mesmo neste caso em que foi tão longo. Aconteceu o mesmo na
Espanha onde branquearam Franco e a cruel Guerra Civil, na França fizeram o
mesmo com a rendição e Vichy. E assim foi em tantos outros países.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
A filha, que parecia completamente alheada, coloca a mão no ombro do pai
e diz:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
—<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Na realidade, só os judeus pugnaram
sempre e lutam veementemente até hoje para que o holocausto não caia no olvido,
senão seria um episódio esquecido.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
O pai olha para os dois filhos com carinho.»<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Eu não só estive preso lá no Aljube, como muito antes, com 18 anos, ia
lá muitas vezes para visitar o meu irmão Rui Moura que foi preso várias vezes,
a última por dois anos com mais oito economistas, mas nesta altura eu já não
estava em Portugal. Mas naquela a que eu me refiro, em que ele deve ter estado
lá mais de seis meses, aconteceu uma situação que vou relatar, apesar de estar
ciente de que os leitores não acreditarão. Mas aconteceu, é verdade, e passo a
narrar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Um dia, ao sair da visita ao meu irmão, um homem de uns trinta anos
abordou-me dizendo que queria falar comigo e convidou-me para ir com ele a um
café. Estranhei, até porque ele era espanhol e achei-o com ares misteriosos e
suspeitos, e decidi não lhe dar conversa. Mas fomos descendo a rua da Sé, a pé
e a par, até que para me livrar dele entrei na Igreja da Sé. Estava deserta e
eu sentei-me no último banco. O espanhol entrou, sentou-se noutro banco à minha
frente e fez-me uma assombrosa proposta: “O seu irmão, é um resistente à
ditadura, nós sabemos, e portanto deve cooperar connosco. Bastará falar com alguns prisioneiros jovens em
perigo de serem deportados, conseguir os dados pessoais deles, além de outros
pormenores documentais, como profissão, se
serviram ao exército, se faziam algum desporto, etc.” Para tal,
continuou, assegurava-lhes que depois da
documentação ser examinada e aprovada (na Inglaterra, suponho, mas não foi
dito) ‘eles’ tiravam-nos do Aljube com um passaporte britânico. Em
contrapartida, esses presos libertados comprometiam-se a alistar-se diretamente
no 8º Exército Inglês, que estava a combater no Norte de África, sob as ordens
do General Montgomery, contra Rommel, o general alemão apelidado de ‘a raposa
do deserto’. Uma batalha feroz!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
O espanhol salientou que a opção era boa para o prisioneiro, pois do
Aljube este seria deportado para donde ele viera assim que a PIDE o
identificasse com segurança suficiente, e de lá o caminho era o dos campos de
concentração, enquanto que se se alistasse no exército inglês poderia morrer,
mas talvez não e então viveria livre e com a nacionalidade inglesa. Eu fiquei
perplexo e desconfiado, fiquei de lhe dar resposta no dia da visita seguinte,
sábado. Era quinta-feira e combinámos o encontro na mesma igreja e à mesma hora.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Fiquei com medo que fosse uma manobra da PIDE para conseguir os dados
que queria dos prisioneiros, mas a minha intuição dizia que o espanhol
trabalhava para a resistência dos aliados. Também pensei que podiam querer
comprometer o meu irmão e a mim, mas não via a razão, já que o meu irmão tinha
sido preso sem qualquer razão, apenas pela suspeita de pertencer ao PCP. Mas,
afinal, quem deveria decidir se se arriscava ou não deveriam ser os próprios
presos, e não eu. No sábado seguinte, no Parlatório </span>—<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> uma sala grande onde as visitas
ficavam de pé com os presos em frente delas, mas com uma imensa tela de arame
forte e malha grande a separar </span>—<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> expus a proposta e os meus medos ao meu irmão e
perguntei-lhe o que ele achava. Ele também ficou na dúvida e resolveu falar com
alguns dos detidos e expor a proposta, ressaltando-lhes as débeis garantias que
nós tínhamos de que fosse um plano decente. Assim, na quinta seguinte dir-me-ia
alguma coisa. As visitas só eram possíveis às quintas e sábados.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Saí, tomei muito cuidado a ver se era seguido, dei umas voltas e
contravoltas e entrei na Igreja. O espanhol estava lá, no mesmo banco, e depois
de eu lhe dizer a decisão do meu irmão disse que entendia as nossas dúvidas e
garantiu que trabalhava para o serviço secreto inglês, que era antifascista e
que dois irmãos seus e o pai tinham sido fuzilados pelas tropas de Franco.
Marcámos para a quinta seguinte mas não na Igreja, era preferível o miradouro
de Santa Luzia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Fiquei muito surpreendido quando na visita de quinta-feira ao Rui ele me
passou dois rolinhos que disse terem os dados de dois presos que estavam na
iminência de serem deportados. Eles sabiam que era prática corrente esse tipo
de arregimentação, aliás não só em Portugal como também em Espanha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Nem abri os rolos, nem li os nomes. Conforme os recebi entreguei-os ao
espanhol, lá no miradouro, falando alto como se estivéssemos a admirar a
paisagem. Depois ele marcou um encontro para dali a uma semana, não no
miradouro, mas numa esplanada mais acima. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Por causa de ter ido acampar, só pude visitar o meu irmão na
quinta-feira seguinte. O meu irmão estava feliz, na véspera os dois rapazes que
tinham dado os nomes tinham sido libertados pela Embaixada Inglesa e já havia
muitos mais a quererem candidatar-se ao esquema de alistamento. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Fui muito eufórico falar com o espanhol na esplanada. Ele estava sentado
numa cadeira e pareceu não querer falar comigo. Eu dei umas voltas por ali mas
ele nem olhava para mim. Resolvi apanhar o elétrico. Quando subi percebi que ele
também subia. Saltei na Rua Augusta e encaminhei-me para o Terreiro do Paço
pressentindo que era seguido. O espanhol alcançou-me, ficou um pouco ao meu
lado enquanto eu caminhava pelas arcadas e apenas disse: “Já sabes, não é?
Apanha mais dados de voluntários e leva-mos à garagem do Parque Mayer na sexta
da próxima semana às seis da tarde.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Na sexta acordada fui ao encontro do espanhol levando comigo três
rolinhos que o Rui na véspera me havia passado com cuidado pela tela no
Parlatório. Na tal garagem estava o espanhol junto de uma camioneta fechada com
altifalantes no tejadilho. Pela propaganda colada na camioneta pareceu-me ser
propaganda política ligada ao governo espanhol. Como? Não sei. Apenas sei que
repeti esta visita algumas vezes, em todas levando rolinhos, e que muitos dos
que haviam entregado os rolinhos ao meu irmão foram libertados, outros não.
Dissera-me o meu irmão que os ‘voluntários’ eram principalmente polacos,
checoslovacos e austríacos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Um dia cheguei à garagem e a camioneta não estava nem o espanhol.
Perguntei ao velho que sempre por lá andava, acho que era vigia, pelo espanhol
e ele respondeu-me de modo fugidio que o Alonso (até então não sabia o nome do
espanhol, e certamente não seria esse) saíra na véspera de madrugada, muito apressadamente.
“Para onde?”, perguntei parvamente. “Disse-me que para Espanha”, respondeu
encolhendo os ombros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Foi com muito desgosto que devolvi ao meu irmão os rolinhos que levara à
garagem. O meu irmão olhou-me com lágrimas nos olhos e com voz embargada
indagou: “E o que vou eu dizer-lhes?”, “Sei lá, diz que o contacto sumiu, mas
que eu vou continuar a tentar, e vou mesmo, talvez o espanhol volte ou venha
outro com aquela carripana para fazer o mesmo, ou então o esquema ficou
‘queimado’.” Ficámos os dois calados muito tempo, a olhar um para o outro sem
capacidade de falar de tão emocionados. Eu estava muito pesaroso de ir
desiludir aqueles três, certamente já confiantes na libertação. Mesmo que fosse
para as areias escaldantes do Norte de África, para combater, sempre seria
muito melhor do que um campo de concentração.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
A partir daí interessei-me muito em ver filmes e a ler livros sobre essa
campanha africana que afinal Montgomery ganhou. Eu tinha participado um pouco,
pensava para comigo, conseguira uns 12 ou 15 ‘voluntários’, e salvei a vida a
alguns deles. E ficava muito satisfeito comigo pelo que conseguira com
perseverança. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Hoje penso que fui muito temerário, que coloquei o meu irmão em grande
risco de a PIDE descobrir. E o esquema poderia ser um logro, mas felizmente não
era. Uma cartinha da irmã de um dos presos assegurou de forma enigmática que o
amigo estava a salvo. Não tanto, claro, o exército nazi estava muito bem
equipado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Quem era o espanhol? O que era aquela camioneta? A verdade é que os
dados eram transmitidos e recebidos muito rapidamente. Certamente teria um
transmissor potente para se comunicar. E porque é que na Embaixada, apesar da
minha insistência, ninguém se prontificou a receber esses dados e a conseguir
os passaportes para a libertação? Ao contrário, receberam-me como a um
lunático. Depois li Graham Greene e aquele comportamento passou a fazer
sentido. Mas talvez seja apenas porque a literatura consegue ser para mim mais
real do que a realidade. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
* * * <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-81031485554770663622015-01-24T13:49:00.002-08:002015-02-14T11:56:41.433-08:00NA POEIRA DO TEMPO<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"> 20. NA
POEIRA DO TEMPO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Não sei porque me
lembrei agora da viagem (Lisboa/Nova York/ Caracas), de que falei no blogue
anterior, feita há já sessenta e seis anos. As recordações são como as nuvens,
aparecem subitamente num céu límpido, avolumam-se, por vezes desfazem-se em
chuvas, outras somem na profundeza azul do céu. Nem umas nem outras respeitam
previsões antecipadas, aparecem e desaparecem a seu belo prazer.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Imaginem, eu lembrar
agora, com noventa anos, essa viagem que fiz com vinte e quatro anos. Certo que
foi muito importante, uma virada total na minha vida, mas porque me lembro
agora dela, com tanta nitidez e detalhes, tantos anos decorridos?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Quando olho para o
meu passado, e faço-o pouco, as recordações não obedecem nem a uma ordem
cronológica, nem à importância emotiva, familiar ou profissional. Vêm porque
vêm, e como vêm, vão quando vão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Quando comecei a
escrever estes blogues o tema a que me propunha era o que os intitulava: “Encantos e desencantos de um editor”. Na realidade eu pensava escrever
exclusivamente sobre os episódios bons e maus, curiosos ou divertidos,
importantes e marcantes da minha
longa vida de editor (sessenta
anos). Mas com o tempo saltaram à minha memória, e aos meus dedos, algumas cenas que nada têm a
ver com a minha vida de editor mas sim com ela em geral. Ou seja na sua
sequência alguns blogues revelam a minha trajetória editorial, outros apenas algo da minha vidinha. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> A realidade é que
não é fácil separar essas recordações pois umas interferem nas outras, por
vezes são concomitantes no tempo e no espaço, algumas são puramente
consequências de anteriores. O meu percurso foi moldado pela minha paixão por
livros e viagens e pela vida, num emaranhado do qual emergem hoje cenas
marcantes para mim.<o:p></o:p></span><br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Há dias revi mais uma vez o filme <i>Fany e
Alexander</i>, de Bergman, em que
Helena, a matriarca, e que havia sido atriz, diz que na vida representou os
mais variados papéis, mas que sempre
continuou igual a si mesma. Já a nora,
Emilie Ekdahl, afirma que durante a sua vida teve que mudar tanto de máscaras
que já não sabia quem era.<o:p></o:p></span></div>
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
</span><br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Também eu, no
decorrer da minha vida, fui forçado a desempenhar diversos papéis mas não mudei
nem a minha maneira de ser, nem a de pensar e agir. Máscaras, não, não usei nunca.
Minto, usei sim, mas só no Carnaval
brasileiro onde não conseguimos ser nós, é uma loucura. Mas na vida, mesmo nas
piores condições, nunca usei máscaras.<o:p></o:p></span></div>
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Desta forma, resolvi
não policiar a estrita pureza em relação
ao título do que aqui escrevo, com as antecipadas desculpas para quem não
gostar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Mas a verdade é que
este episódio que agora escrevi, mais do que os anteriores, despertou em mim a
vontade de colocar no papel algumas dessas recordações do meu passado, não,
claro, porque tenham interesse para os outros, ou valor literário, mas porque
vai ser curioso, gratificante, ou não, para mim recordá-las. É óbvio que
possivelmente estão diferentes, partes esquecidas e outras adulteradas,
involuntariamente ou não, pela ação mágica do filtro do nosso ego e da nossa
consciência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> As lembranças são como o pentimento na
pintura, uma paisagem pintada sobre uma outra (porque ao pintor não lhe
interessa mais o quadro anterior, talvez por não o achar bom) arrisca a que as
imagens inferiores, antigas, subam e alterem as recentes, com resultados
extravagantes.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Para colmatar esses erros e deturpações poderia,
claro, deveria até, pesquisar, informar-me com parceiros desses momentos, para
evitar muitos dos erros ou omissões, trocas de datas e nomes, até de
personagens. Mas decidi que isso não interessa porque não será um livro de
memórias, autobiográfico ou histórico. Não é sequer um livro, nem um Diário.
Será, sim, como que um filme sem guião, com realizador e atores não
profissionais, um filme experimental e neorrealista.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Não posso dizer se a minha trajetória de vida
foi, ou não, prejudicada por ter eu sido um contestatário político, ou por ter
sido emigrante (na Venezuela, no
Canadá, no Brasil e, de certo modo, até
em Portugal, no regresso), ou por o meu curso universitário, em termos
práticos, ter sido um erro em todos os aspetos, nunca o tendo aproveitado
profissionalmente, dele retirei para a vida
a matemática que aprendi e de que tanto gostei. Apesar de tudo isso,
considero que fui muito feliz.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Primeiro, porque os meus pais me proporcionaram
uma boa infância e uma família grande e muito unida, e, também, por me terem
permitido uma adolescência com muita liberdade e rica em experiências.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Segundo, porque quando adulto, com esforço e
perseverança, e bastante sorte, consegui um rumo profissional muito
gratificante, o da edição, no qual tive razoável sucesso. Também porque
aproveitei este para viver bem, criar quatro filhos, viajar muito e desfrutar
sempre de muita oferta cultural.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Terceiro, porque a natureza me concedeu o
privilégio de uma velhice saudável e lúcida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Porém rolei como um
seixo no leito de um rio de caudal forte. Mas talvez tenha sido isso que alisou
a minha alma e a mente, de tal forma que agora revejo todos esses anos vividos,
um a um, mês a mês, semana a semana, hora a hora, e acho que valeu a pena, que
posso dizer, sem falsa modéstia, que plantei sonhos dos quais colhi os frutos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Conseguirei eu,
através destas linhas, escritas sem ordem e sem formalidade, construir um painel
variado do que foi essa minha vida, para eu mesmo ver e apreciar. Talvez alguns
leitores, que de qualquer forma tenham sido mais chegados a mim, tenham
curiosidade de espreitar também para estes textos descontinuados e identifiquem
episódios e épocas de que participaram ou que, pelo seu teor, lhes interesse particularmente.
Ficaria muito satisfeito.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Essa probabilidade
será possível agora que as redes sociais desfizeram fronteiras geográficas e
até pulverizaram as do tempo-memória, transformando o planeta Terra antes
compartimentado em países e nacionalidades
agora numa imensa comunidade global.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
* * * <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-57981681309479913732015-01-19T12:03:00.000-08:002015-01-19T12:03:15.143-08:00PARTIDA. A GRANDE AVENTURA<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">19. PARTIDA. A
GRANDE AVENTURA</span><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Naquele tempo (1949),
uma viagem de avião internacional era inusitada, pelo que foi natural que toda a família fosse ao aeroporto dizer
adeus ao jovem que embarcava já depois da meia noite para Nova York, para um
futuro completamente desconhecido. Hoje,
para mim, uma rematada loucura, mas, então, uma fantástica aventura.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Quando os altifalantes
berraram: “Senhor Mário Mendes Moura, favor dirigir-se ao balcão da Polícia de
Vigilância e Defesa Internacional”, gelei. Contudo, não podia mostrar que ficara preocupado,
principalmente perante a minha mãe e o meu pai,
fiz um sorriso de tranquilidade e
lá fui, com o coração apertado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> No guiché da PVDI, lá
estavam dois pides com a indisfarçável cara de pides. Com um falso sorriso de ingénuo perguntei
porque me chamavam.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
— <span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">O senhor não vai poder viajar, acho que conheço a sua cara, e este passaporte não me
parece em ordem, preciso de averiguar a
sua ficha lá na sede.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
— <span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Mas que ficha? Sou estudante, vou fazer uma viagem de
negócios na Venezuela, para o meu pai que não consegue viajar. Volto antes de
um mês, veja na minha passagem. Tenho visto de trânsito nos Estados Unidos e de
turista na Venezuela, estão aí confirmados e carimbados no passaporte. Está
tudo em ordem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
— <span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Conheço a sua cara, não me engano. Faço plantões lá na sede a
vigiar os que fazem ‘estátua’. Lembro-me bem que, quando foi a sua vez, foi muito engraçadinho ao dizer-me que mais
tarde os meus filhos me iriam ver enforcado nos candeeiros da Avenida da
Liberdade, e se eu não ficava preocupado com isso. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Entrei em pânico,
mas felizmente acho que não o demonstrei. Claro, estive em várias sessões do
que eles chamavam ‘estátua’, nas quais um pide se sentava e nos vigiava para
não nos sentarmos no chão, tínhamos que ficar de pé, andar o mínimo. De duas em
duas horas o pide era revezado e o que chegava vinha sempre com ameaças e
grosserias para nos desmoralizar. O truque era dizer coisas do género das que o
pide agora me acusava.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Se não embarcasse,
adeus à viagem. A António Maria Cardoso informaria que eu estava com residência
fixada em Lisboa e que o meu pedido de passaporte não tinha passado por lá.
Realmente, tinha conseguido o meu passaporte diretamente no Registo Civil
Central, com ordem direta do Capitão Matos, Tesoureiro Geral, nosso vizinho e
que me conhecia desde garoto. Por isso não houvera o trâmite da passagem do
processo pela PVDI.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> ‘Perdido por cem,
perdido por mil’, pensei. Com a maior naturalidade disse ao polícia:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
— <span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Olhe, senhor, pode telefonar para o Capitão José Catela, ou
pedir que a sede o faça, para dizer que o filho do senhor Gil Mendes de Moura
está aqui para embarcar com a documentação em ordem e vocês querem impedir.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
— <span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Acha que
vamos telefonar para o Capitão a esta hora?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
— <span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">É melhor
do que ele amanhã cair em cima de vocês os dois! Telefonem, por favor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> A minha insistência e
a cobardia deles acabou por convencê-los. Com muitas hesitações, troca de
palavras entre os dois, resolveram liberar-me. Eu sabia, por experiência, que
eles tinham mais medo do ‘esquema pidesco’ do que nós, os detidos. Claro está
que o Capitão Catela nem imaginava a existência do meu pai, um pacato
importador/exportador autónomo. Também não sei porque pelo menos não
telefonaram para a sede, talvez por ser tarde, ou por insegurança.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> O numeroso grupo
familiar, umas vinte pessoas, sem suspeitar sequer do susto por que eu passara, acolheu-me em
clima de festa e de antecipada saudade,
que afinal duraria duas décadas. Entretanto eu contava angustiado os minutos
para a partida. Claro, não foi sem
emoção que me despedi de todos, rumo a Caracas, via Nova York, voo TWA, com não
muito mais do que cem dólares no bolso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Fora o meu amigo
António Pedro, de quem eu era padrinho do casamento dele com a minha boa amiga
Glicínia Quartin, que trabalhava na
TWA, a aconselhar-me esse voo, às quintas-feiras e que deveria fazer conexão
na sexta de Nova York para Caracas, pela
AVE. Mas, segundo António Pedro, essa conexão numa acontecia como era prevista
no horário e, neste caso, eu entretanto ficaria por conta da companhia até
acontecer o tal voo semanal para Caracas, provavelmente dois ou três dias mais
tarde.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Quando me sentei na
poltrona do avião senti a alegria de estar em liberdade. Alegria que durou
apenas umas três horas, pois logo anunciaram a descida para o aeroporto de
Santa Maria, aeroporto açoriano construído pelos americanos durante a guerra
para abastecimento dos seus voos intercontinentais, e que passou ao serviço da
aviação civil portuguesa em 1946. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> ‘Não muito longe da
terrível ilha que albergava a prisão do Tarrafal’, pensava eu aterrorizado. ‘E
se os pides depois comunicaram com a sede e esta contactara com o aeroporto
para onde estávamos a descer, ordenando a minha detenção?’, interrogava-me. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Quando o avião aterrou
fingi estar a dormir para não sair, mas sem resultado, a hospedeira informou-me
de que todos os passageiros, todos, tinham mesmo que sair. Desci do avião e percorri a
pé e preocupado o piso do aeroporto até à gare, nessa época nem se sonhava com
‘mangas. No portão da gare estava um
tipo da Polícia de Vigilância pedindo os passaportes aos viajantes. Entreguei o
meu, claro, e fiquei vagueando pelo salão na certeza de que, ao voltar para o
avião, o pide não me devolveria o passaporte e nem me deixaria embarcar. Um
sofrimento.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Mas felizmente as
minhas preocupações eram infundadas. Era apenas uma rotina e Lisboa dormia. Ao
voltar à minha poltrona jurei para mim mesmo não mais voltar a Portugal
enquanto o regime fosse fascista, com ou sem Salazar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Nevava à chegada a
Nova York. Era fevereiro. Não tive quaisquer problemas com a Polícia de Imigração
Americana, para minha surpresa. Também não foi surpresa o representante da AVE,
a companhia de aviação venezuelana que garantia a ida para Caracas, informar-me
que não havia voo previsto para Caracas para
aquele dia, nem sequer para sábado. Possivelmente o voo seria no domingo. Confirmariam
o voo diretamente para o hotel, para onde me recambiaram com um voucher para
pagar a estadia, julgo que se chamava ou White Elephant, ou Big Elephant, em Manhattan.
Um hotel do tipo de três estrelas de hoje, não mais de quinze andares, não
longe do Empire Building. Nunca consegui localizá-lo das muitas vezes que
depois visitei aquela cidade. Inexperiente na época nem reclamei da AVE o
pagamento do transporte para a cidade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Mal acabei o meu diálogo
ao balcão da AVE, uma confusão imensa em razão de muitos outros passageiros na
mesma situação do que eu, afastei-me um pouco do balcão e logo um pretão me disse
algo que não entendi, estava aparentemente de uniforme, e afastou-se arrastando
pelo chão a minha mala (não haviam inventado ainda as malas com rodinhas).
Felizmente deixou-me na fila de táxis e cobrou-me três dólares.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> O trajeto para a
cidade maravilhava-me, exultei ao atravessar a ponte que tão bem conhecia de
filmes, mas não achei graça nenhuma quando o táxi estacionou frente ao hotel e
me arrancou uma enormidade de dólares. Considerando os meus recursos, deveria
ter usado ónibus até à Grande Central e só depois usar táxi. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Assim que me
instalei no quarto e usei a casa de banho, vesti os agasalhos de que dispunha e
a gabardine, e saí para me meter na neve. Era puro entusiasmo, Estados Unidos,
neve, Nova York, Manhattan, uma nova vida, julgava que promissora. Quase
rebentava pelas costuras. Num atrelado tomei um chocolate quente com <i>donuts</i>, a delícia das delícias, enquanto
admirava os flocos de neve a flutuarem,
uma novidade para mim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Independente, rumo a
um país rico de oportunidades, longe de um regime castrador, estava confiante
de que não demoraria a estar ‘muito bem’ e a poder chamar a minha mulher e o
meu filho, com pouco mais de um ano.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> No Consulado da Venezuela, em Lisboa, quando
pedi o visto e apresentei o certificado do curso de silvicultura, apesar de
faltar uma cadeira e o estágio, garantiram-me que o governo me doaria terras e
maquinaria e faria empréstimos para eu montar uma exploração agrícola. ‘Como
nos filmes americanos’, pensei, e acreditei, pois estava tudo por fazer na
agricultura da Venezuela. Pobre de mim, não conhecia ainda a descarada mentira
da burocracia sul-americana.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Por dois dias
vagueei pela notável ‘maçã’ e tudo me maravilhava. Tinha direito ao pequeno-almoço
no hotel e nele tratava de fazer as minhas ‘reservas’, como um camelo antes de
enfrentar o deserto. Não era o deserto que eu ia enfrentar mas sim uma
gigantesca, soberba e assustadora cidade. Durante o dia, os <i>muffins,</i> os <i>hot
dogs</i> e os <i>meat balls</i> garantiam-me
a energia a preço módico. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Para quem sempre
vivera em Lisboa, especialmente em Campo de Ourique, com os seus modestos
prédios de quatro andares, a diferença era abissal. A cidade impressionou-me
muito, com os seus arranha-céus, alguns interessantes, o imenso movimento de
pessoas a todas as horas do dia e da noite, a variedade de raças cruzando-se nessas
multidões, o néon das lojas e dos gigantescos anúncios publicitários. Contudo,
o cinema tem o condão de mistificar as cidades, como também de desvirginá-las.
Tantos e tantos filmes haviam criado em mim um forte desejo de conhecer esta
cidade, mas vira tantas e tantas vezes aquelas ruas, prédios e anúncios luminosos,
que estes não me eram desconhecidos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Estranhamento, eu
que sou friorento enfrentava bem o frio, que este sim, desconhecia. Percorria
as ruas como um andarilho, ou um desesperado vagabundo, lembrava-me de alguns
contos de O’Henry e de Tchecov, entrava o mais possível nos espaços fechados e
olhava tudo como menino frente à montra de uma loja de doces. Lia com atenção
os menus dos restaurantes, o quadro com os preços das entradas nos cinemas (que
variavam de sessão para sessão), espiava o custo das entradas nos museus, e os
meus não-dólares obrigavam-me a sorrir e continuar em frente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Otimista, prometia a mim mesmo voltar àquela
cidade com dinheiro suficiente para não ter todos aqueles acessos impedidos.
Não sabia ainda que tão poucos anos depois voltaria muitas vezes, mais de uma
dúzia, em condições de usufruir a múltipla e plurifacetada oferta desta babel,
que nunca sossega, nunca dorme, sempre tem algo de novo a oferecer. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Domingo finalmente o
carro da companhia, como tinham avisado, apanhou-me no hotel para me levar ao
aeroporto. O avião com as cores venezuelanas era bem menor do que o da TWA e
não me inspirou muita confiança. Mas o que fazer? Contudo foi um voo tranquilo,
talvez de seis ou sete horas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Na chegada à Venezuela,
quando me despachei da Imigração em Maquetia, contei os meus dólares, treze.
Perguntei quanto era um táxi para Caracas e após longa discussão a ‘corrida’ ficou
estabelecida em doze dólares. E lá começámos a escalada, do nível do mar até à
cota mil, onde os espanhóis encarrapitaram Caracas. Apenas vinte quilómetros,
mas curvas em declive assustador, uma estrada estreita, realmente empolgante.
Só muito depois foi construída uma autoestrada com arrojados viadutos que
tornam hoje esta viagem um passeio.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> O táxi largou-me no centro
da cidade, rodeado de arcadas, uma bela solução para um clima tropical e de
inspiração francesa, copiando a Rue Royal de Paris. Fora nesta praça que tinha combinado
com o meu amigo Daniel Morais o encontro, antes por carta e depois de Nova York
por telegrama, do próprio aeroporto, avisando da hora provável da chegada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Enquanto esperava
entrei numa ‘Fuente de Soda’, que deduzi tratar-se de uma pastelaria mais moderna,
tomei um delicioso sumo de pera e uma sanduíche de queijo, e lá se foi o meu último
dólar. Mas senti-me feliz, imensamente feliz. Vim a saber depois que parvamente
feliz.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Foi com alegria que
abracei o Daniel, que não demorou a chegar, o meu querido e leal amigo,
companheiro presente mas invisível no Aljube, e depois partilhando a mesma cela
em Caxias. Éramos ambos da Comissão Central do MUD Juvenil e ambos tínhamos
sido presos em 31.1.48 sob o pretexto do MUDJ ter convocado uma manifestação
para esse dia, comemorando uma esquecida data de uma revolução portuense. Ficámos
dois meses em celas distintas no Aljube e depois de muitos interrogatórios, em
que tentaram sempre que um denunciasse o outro, com artifícios e mentiras,
fomos transferidos para Caxias. Apenas os dois numa grande cela, felizmente com
janela, mas suspeitávamos que estávamos sob escuta, pois não encontrávamos
explicação para esta transferência se não fosse esse o objectivo: escutar as
nossas conversas. E foi um martírio, pois os nossos diálogos eram censurados
por nós mesmos, alguma coisa mais confidencial era escrita e depois queimada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Mas naquele momento,
sob aquele sol radioso e céu azulíssimo, o que importava é que eu tinha uma
vida pela frente em liberdade e, acreditava, cheia de possibilidades.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Naquele país comi o
pão que o Diabo amassou, e não é gostoso, mas foi lá que fiquei adulto. Deixei
de ser ingénuo e sonhador, tornei-me mais pragmático e realista, mas não
canalha, para poder enfrentar a difícil
vida de emigrante e de homem de negócios.<o:p></o:p></span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-17512109861174391182014-12-31T07:02:00.003-08:002014-12-31T07:02:32.484-08:00BOA NOITE 2014 - BOM DIA 2015<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">18 - BOA NOITE 2014
- BOM DIA 2015<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao terminar o último
dia de 2014 apresento um lindo texto — não de minha autoria — com algumas
centenas de anos, que pode ser interessante ao revermos o ano que finda e nos
prepararmos melhor para enfrentar o que começa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">
«DESIDERATA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Caminha serenamente
por entre a azáfama e o barulho dos homens e lembra-te da paz que é possível
encontrar no silêncio. Tanto quanto possível, sem cumplicidade ou rendição,
mantém boas relações com os teus semelhantes. Afirma as tuas verdades com
clareza e com serenidade e escuta o que os outros têm para dizer, mesmo os
simples, os inocentes e os ignorantes — também eles têm a sua história. Evita
as pessoas agressivas, porque ferem e diminuem o espírito. Se te comparares aos
outros homens podes tornar-te soberbo, arrogante e amargo, porque haverá sempre
pessoas melhores e piores que tu. Goza os teus triunfos e o prazer de planear
para o futuro. Mantém vivo o gosto pelo teu ofício ou profissão, por mais
humilde que seja; é uma riqueza verdadeira e certa nas contingências da
fortuna. Sê cauteloso nos negócios, porque o mundo está cheio de maldades e
traições. Mas nunca deixes que essa cautela te cegue para a virtude que existe.
Há sempre à tua volta muitos homens que lutam por altos ideais, e por toda a
parte a vida está cheia de heroísmo. Aceita-te tal como tu és, e principalmente
nunca penses no amor com cinismo porque face a toda a avidez e desilusão o amor
é perene como a relva. Aceita generosamente o conselho dos anos que passam, e
abandona sem mágoa as coisas que pertencem à juventude. Cultiva a força do
espírito para te protegeres em caso de súbita desgraça. Mas não tortures o teu
espírito com angústias imaginadas. Muitos medos e muitas angústias nascem da
fadiga e da solidão. Mantendo uma disciplina fundamental sê tolerante contigo
próprio. És filho do Universo tal como as árvores e as estrelas, tens direito
ao teu lugar no mundo e, quer tu queiras ou não, o destino do Universo segue o
seu devido curso. Por conseguinte, fica em paz com Deus, seja qual for o Deus
em que acredites. E sejam quais forem as tuas labutas e aspirações, na confusão
ruidosa da vida, fica em paz com a tua alma. Apesar de toda a mentira, do suor
sem recompensa e de tantos sonhos fracassados o mundo em que vivemos é cheio de
beleza. Sê prudente, E tenta sempre ser feliz.» <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> (Encontrado na Old
Saint Paul’s Church, Baltimore, datado de 1698)<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A veracidade da
autoria e data desta Desiderata foi posta em dúvida por alguns, apesar de estar
gravada na pedra na referida Igreja. Mas, o que importa quem escreveu, quando
escreveu e porque escreveu? De qualquer forma é um pouco inocente para os dias
de hoje, mas sábia e inspiradora. Mas porque não enfrentar o ano que começa com
alguma candura e otimismo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> ***</span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-73237578631589813712014-12-30T11:50:00.003-08:002014-12-30T11:50:27.489-08:00MARIA AZEITONA<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">17. MARIA AZEITONA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ainda a propósito de
viagens e o que isso representa de surpresas e encantamentos. A minha primeira
viagem ‘internacional’ aconteceu quando eu tinha apenas quinze anos (1939), a
Espanha… e a pé.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Fui passar uns dias
nas férias grandes a casa do meu primo Luís, em Portalegre, e nessa cidade
viviam dois colegas de Liceu, irmãos, que desafiei a irmos até Espanha, tão
perto, e que eu estava louco por conhecer, mas eles não aceitaram o desafio.
Contudo, numa festa de noivado para a qual me convidaram, numa parada por
instantes da ruidosa música, apresentaram-me uma prima deles, mais velha,
dizendo que ela iria a Espanha no dia seguinte. Gentilmente, ela convidou-me a
acompanhá-la mas teríamos que partir muito cedo e voltaríamos à tarde. A rir,
os primos tinham-ma apresentado como Maria Azeitona. Não percebi bem se eles
riam por citarem uma alcunha e não o apelido verdadeiro, mas ela não reagiu e
beijou-me nas duas faces como a um conhecido. Teria uns vinte e tal anos, cara
redonda, amiga, um sorriso aberto, de formas generosas e uns olhos muito
escuros e vivos que me mediam com curiosidade. “Estás mesmo preparado? Gostas
de andar?”, perguntou-me. Estranhei a pergunta mas respondi afirmativamente,
com convicção, apesar de muito bem saber que a Guerra Civil espanhola recém
terminara, mais ou menos, pois era voz corrente que franquistas e republicanos
ainda acertavam contas, aqui e acolá.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Às sete e meia da manhã fui ao encontro dela, no adro da
Igreja na praça central, conforme havíamos combinado. Eu levava também mochila
e nela parte de uma galinha assada e um pão alentejano e, na alma, muito
entusiasmo. Ela beijou-me nas duas faces, como na véspera, estava séria e
vestida com simplicidade e de mochila às costas. Começámos a caminhar,
atravessámos a cidade já num despertar escondido e, em breve, continuámos pelos
arredores de Portalegre, paisagem que já conhecia pelos meus passeios curiosos,
salpicada de casas e quintinhas. Nestas o movimento já era muito, tratavam dos
animais, e começavam a faina agrícola. Ao chegar a uma quinta pequena onde uma
velhota estava a dar milho às galinhas, Maria beijou a mulher chamando-a de tia
e depois continuou para os fundos onde havia um telheiro, junto do qual estava
um rapaz que eu tinha visto na véspera com os meus colegas. Eles olharam-se e
pareceu-me que nem trocaram bons dias. O rapaz olhou para mim e sem mais
perguntou-me se eu já tinha andado de carroça. Respondi que sim, na quinta do
meu tio em Cabeda. Ele repetiu “Cabeda”, “Cabeda”, a rir, e acrescentou: “Então
vamos lá!”e levou-nos até uma carroça carregada de espigas de milho. Ele ajudou
Maria e a mim a subir para o banco do cocheiro, não sem antes pegar nas nossas
mochilas e colocá-las em cima das espigas, deu a volta e instalou-se no seu
posto. Com uma chicotada seca no ar, as mulas começaram a andar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Pensava que iríamos nos meter pela estrada normal utilizada
por carros e camionetas na ida para Espanha, mas não, ele optou por uma vereda
larga que subia pela Serra de São Mamede, deixando o Parque do mesmo nome à
esquerda. O rapaz, ouvira chamarem-no de José, incitava a parelha a andar
rápido. Eu e Maria estávamos encostados, lado a lado, e eu sentia o calor do
corpo dela no meu braço esquerdo, e gostava de o sentir. Contudo quase não
falávamos, nem tão pouco ela com o rapaz. Antes pensara que eram namorados mas
agora estava certo de que não, agiam como indiferentes um ao outro. Tinha muita
curiosidade de saber se o nome verdadeiro dela era mesmo Azeitona, mas não me
atrevia a perguntar. Algum tempo depois José abrandou a marcha, talvez para
poupar os animais e porque o caminho já começara a subir bastante. A paisagem
modificara-se muito, extensos pastos onde as ovelhas se amontoavam vigiadas por
cães e ao longe a cumeeira da serra marcava o horizonte. Muros em pedra solta
dividiam as propriedades e, de quando em quando, alguns pinheirais. Velhas
oliveiras retorcidas pareciam implorar por ajuda. De vez em quando algumas
perdizes eram espantadas pelo barulho das rodas da carroça no chão meio
empedrado. No alto, águias e milhafres olhavam-nos atentos. Nós percorríamos um
caminho em terra batida e granito, possivelmente ainda do tempo dos romanos,
suficientemente largo para um carro de bois, evidenciando os sulcos deixados
por estes. Era este o meu país rural, pobre, de terra tão mal aproveitada,
depauperada, igual a si mesmo há séculos, depois de o ter conquistado aos
árabes, depois de tantos invasores o terem dominado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Chegámos a uma aldeia
a que ela chamou de Alagoinhas, e mesmo na entrada junto a um cercado e a uma
casa velha a carroça parou e nós descemos. Do campo surgiu um homem com roupas
de trabalho na terra que pediu a José para encostar a carroça mais adiante,
junto a um telheiro. Retirámos as mochilas da carroça e Maria com presteza
ajudou-me a pôr a minha às costas e depois ajustou a sua, bem pesadona, nas
suas. Entretanto já o rapaz levara a carroça sem sequer um adeus ou outra
frase.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Maria sorriu para mim
e pronunciou um “agora vamos” com um misto de preocupação e determinação, e
talvez de dúvida sobre a minha resistência. Enfiámos na aldeia onde ela entrou
numa taberna, bebeu um copo de tinto e comeu dois bolinhos de bacalhau. Eu só
bebi uma soda e paguei as duas despesas enquanto ela foi à casa de banho. Atravessámos
a curta aldeia e voltámos ao mesmo caminho ‘romano’. Ela andava muito rápido,
em largas passadas, desconfiei que
estava a testar-me, mas eu conseguia
acompanhá-la. Pouco depois ela abrandou o passo e ficou mais fácil
conversarmos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Durante o percurso
falámos muito pouco, mas mesmo assim Maria revelou-me que fazia esta viagem
três vezes por semana, verão ou inverno, com sol ou chuva. Com naturalidade,
confessou que era como ganhava a sua vida, o que de imediato não entendi. A
paisagem continuava igual mas o calor aumentara. Felizmente além da mochila
havia me precavido com um cantil, o que me tranquilizava. De terras de Espanha
nada, ela dissera-me que era perto, já caminhávamos há algum tempo, e assim
interpelei-a: “Maria, quando chegaremos a Espanha?” Ela riu alto e afirmou que
já lá estávamos. Fiquei desiludido, esperava uma cena de cinema, cercas de
arame farpado, soldados com capacete e cara de maus, empunhando espingardas com
baionetas. “E a fronteira, os guardas onde estão?”, “É muito cedo, eles só
andam a farejar por aqui mais tarde, e raramente. Eles preocupam-se mais com a
estrada, em especial com as camionetas e camiões.” Perante a minha cara de
parvo ela acrescentou que levava na mochila café, açúcar, sabão e não sei mais
o quê, que vendia lá, e de lá trazia outras tantas coisas mais caras ou raras
em Portugal, como os caramelos. “Desta forma — continuou ela — garanto uns
tostões para viver.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Passado algum tempo
atrevi-me a indagar: “E se os guardas aparecerem?”, “Ora, são como alimentos
para uso pessoal, só trago um pacote de cada coisa. Já ando nisto desde os
dezasseis anos e eu conheço todos os guardas portugueses, assim como eles a mim
e à minha família.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Eu era um garoto de
família citadina e burguesa, ingénuo, tonto, ainda não sabia as voltas que os
adultos (e mais tarde percebi que também os garotos) davam (e dão nos dias de
hoje) para conseguir um precário sustento, a sobrevivência a pulso. Ao voltar
para a comodidade da casa dos meus pais senti-me um pouco constrangido por ter
tanto com tão pouco esforço. Por isso, para financiar as minhas compras de
livros e discos (tinha a minha grafonola) passei a dar explicações e a
datilografar textos para conhecidos. Mas adulto, adulto mesmo, conhecer a
realidade das dificuldades da vida, só o fui ser na Venezuela, emigrante, e
como doeu!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Chegados a uma
pequena cidade, El Pino, por volta do meio-dia, Maria Azeitona encaminhou-se
decidida para o centro da cidade que eu tentava olhar com curiosidade. A cidade
encantava-me, mas na realidade nada tinha de muito diferente de outras pequenas
cidades portuguesas, a não ser muito mais, mas muito mais, movimento e
agitação, de pessoas e cavalos, mulas e bicicletas. Mas era uma cidade
simpática e eu esforçava-me para achar tudo maravilhoso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Pouco adiante chegámos a um jardim e Maria pediu para eu
ficar por ali, ou dar umas voltas, mas para estar dali a três quartos de hora
num largo que me apontou, redondo e rodeado de pérgulas muito floridas (sei só
hoje que eram glicínias e buganvílias), com alguns bancos com muitos homens e
mulheres à conversa. Ela afastou-se apressada e eu dei algumas voltas pelas
cercanias a bisbilhotar as montras, e numa mesa de rua de um bar tomei outra
soda. Voltei ao parque, ao largo florido, todos os bancos estavam vazios, as
pessoas teriam saído para almoçar em suas casas. Mal sentei, Maria chegou sem
mochila, bem penteada e refrescada, lavara a cara e maquilhara-se ligeiramente.
Estava alegre e logo que se sentou puxou de uma bolsa de pano duas cervejas e
com um sorriso passou-me uma. Pensei em recusar pois não bebia cerveja, mas
hesitei em confessá-lo com medo de estragar a minha imagem de caminhador
valente. Ela tirou ainda do saco dois papo-secos, dois queijos de cabra secos,
pequenos, um naco de chouriço e uma navalha de ponta e mola e ofereceu-mos. Eu
saquei o meu pão alentejano cortado às fatias e a galinha e repartimos tudo.
Bebi a cerveja pelo gargalho e a malvada subiu muito rapidamente para os meus
ouvidos e para o couro cabeludo. Tudo zunia um pouco mas aguentei firme e, à
medida que comia, melhorava. Tentava recordar-me de um <i>western</i> a que
assistira há pouco, com John Wayne, uma cena similar, mas no filme o <i>cowboy </i>e
a mocinha aqueciam uma lata de feijão numa fogueira improvisada, enquanto nós
roíamos um pão seco mas, sim, com um queijo gostoso. Mas eu estava contente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Acabada a ‘lauta’
refeição, Maria avisou-me que teríamos que esperar para voltar ao armazém (não
sabia do que ela estava a falar) e que era bom descansarmos um pouco para
enfrentarmos o regresso. Chegou-se mais para a ponta do banco e convidou-me a
pousar a minha cabeça nas pernas dela para dormitarmos um pouco. Deitei-me no
banco e encostei a minha cabeça naquela almofada, a verdade é que constrangido
de início e entusiasmado depois. Maria logo adormeceu, parecia-me, de olhos
fechados e respirando ritmadamente, enquanto eu, que pela primeira vez gozava
da sensualidade de uma adulta, aquecia o meu rosto afogueado na tepidez
daquelas pernas, escutava (?) o sangue dela a correr nas veias, ouvia a sua
barriga a trabalhar e respirava o seu odor forte… e perturbador. Não conseguia
dormir de tão excitado, até que Maria descuidadamente pousou uma das suas mãos
na minha anca, eu estava deitado de lado. Para minha surpresa, preocupação e
vergonha, isso excitou-me de tal forma que ejaculei, pela primeira vez sem a
ajuda da minha mão. Não sei, não sei mesmo, se ela percebeu. Quero crer que
não. Depois, quando nos levantámos do banco, fui até uma casa de banho pública
no parque para me limpar tanto quanto possível.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Como sempre, em grandes passadas atravessámos alguns quarteirões e
chegámos a uma loja com um grande ‘Almacén Vargas’ pintado por cima da porta,
que estava fechada. Ela bateu numa porta dos fundos, que logo se abriu.
Entrámos. Em cima de um balcão estava a mochila dela já abarrotada. Uns quantos
pacotes sobravam. Maria Azeitona perguntou-me confiante: “Não te importas que
use a tua mochila?” Acenei apenas com a cabeça enquanto ela já colocava na
minha mochila vazia, que retirara das minhas costas, os tais pacotes.
Suspendeu-a para avaliar o peso, exclamou um “Aguentas bem, tu és forte.” (o
que me encheu de alegria), e ajudou-me a colocá-la nas costas. Como o calor
estava forte e eu vestia um casacão por causa do frio da madrugada, que
despira, pedi-lhe para enrolá-lo e colocá-lo no topo da mochila. Ela assim o
fez, parecia que estava a encilhar um cavalo, ideia que lhe terá passado também
pela cabeça, tanto que me deu uma palmada na nádega e gritou um enérgico
“vamos!”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Atravessámos de novo a cidade, àquela hora deserta pela ‘siesta’, alguns
gatos e cães dormiam pelos cantos e à nossa passagem abriam displicentemente os
olhos para avaliarem o perigo que poderíamos representar. “Porque temos que ir
a esta hora com tanto calor?”, perguntei à minha companheira, possivelmente
mais porque era o caminho para o fim daquela ‘amizade’, estávamos a encurtar o
tempo de estar juntos. “Agora os ‘tipos’ estão a fazer a sesta à sombra das
árvores, não nos incomodarão.”, retorquiu de modo maroto. Obviamente que não
queria encontrar os guardas, apesar do que dissera. Ou talvez se referisse
apenas aos espanhóis.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Enquanto palmilhávamos de regresso por aquela paisagem agreste, agora
envolta num mormaço palpável, a evaporação do solo e das plantas criava uma
ténue e baixa neblina, eu sentia-me um herói, agora que também carregava
contrabando e era portanto um contrabandista, como nos filmes, o que me enchia
de orgulho apesar de ainda não ter qualquer consciência política, mas sentia-me
adulto ao lado de Maria… não queria pronunciar Azeitona, pensei em Maria Olive,
para finalmente em apenas Olívia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Chegados a Alagoinhas, tivemos de esperar um pouco pela carroça que estava
a carregar. A mulher a quem Maria chamara de tia convidou-nos a esperar em sua
casa, melhor dito na cozinha, muito grande em relação à casa, com uma ampla
lareira onde um imenso fogão estava acesso, estaria sempre, em cima do qual
muitos tachos e panelas fumegavam. Sem mais a senhora encheu duas malgas com
sopa e entregou-me uma e outra a Maria. Estava uma delícia, mas não tive
coragem de repetir, ao contrário de Maria que exclamou: “Oh Tiazinha está muito
boa, vou repetir!” Ao servi-la de novo a tia encheu um copo de tinto e colocou-o
à frente da sobrinha, que lhe agradeceu beijando-lhe a mão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
A carroça chegou cheia de melões,
mas o José estava mal-encarado, ou bebera muito ou alguma coisa não lhe tinha corrido
bem. Durante todo o tempo da volta não soltou uma palavra e parecia incomodado
com a minha conversa com Maria, em especial com as risadas frescas desta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Ao chegarmos a Portalegre a carroça parou para nós descermos, eu apertei
a mão ao José e agradeci a boleia, ele resmungou apenas e logo que descemos
saiu em disparada. Maria pegou a minha mão com naturalidade e encaminhou-se
para uma mercearia num dos bairros. Entrou, pousou a sua mochila no balcão e
aliviou-me da minha. Encarando um homem de cabelos já grisalhos disse apenas:
“Este foi o meu companheiro hoje, Pai!” O homem olhou-me surpreso, com um
trejeito de incredulidade (o que me enfureceu) e pronunciou um seco ‘Olá’. De
furioso, não pronunciei sequer uma palavra. Maria (ou Olívia, já não estava
certo) esvaziou as duas mochilas no balcão, enfiou a dela no ombro e deu-me a
minha. Sem mesmo se despedir dos presentes, saiu puxando-me pela mão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
“Vamos refrescar a goela!” falou a rir e alegre, sem me soltar a mão.
Sentámo-nos numa pequena esplanada e ela mandou vir duas cervejas. Eu travei e
substituí uma por uma limonada. Conversámos muito, pouco, muito pouco dela, que
se escapulia de o fazer, em especial sobre mim e os meus familiares, hábitos e
estudos, e de Lisboa, que ela não conhecia mas que amaria visitar. Um pouco
precipitadamente, ofereci-lhe a minha casa, digo a dos meus pais, confiante na
compreensão deles que os filhos tanto desafiavam. Dei-lhe o telefone lá de
casa, ela ficou a olhar o papelzinho e depois olhou-me e disse: “És um querido!
Gostei muito de te conhecer. Não acreditei que aguentasses a caminhada.”
Levantou-se, eu também, ela colocou uma das mãos no meu ombro e beijou-me as
pálpebras: “Tens uns olhos muito bonitos. Vais ter muitas namoradas.” Virou as
costas e caminhou sem olhar para trás, enquanto eu, estacado, apreciava o seu
andar e já sentia saudades. “Será que nunca mais a vejo?”, perguntei-me. Não,
nunca mais a vi, nem tive notícias dela, pois nem me telefonou nem os primos
voltaram para o meu Liceu. Eu também nunca mais voltei a Portalegre. Mas nunca
me esqueci de Maria Azeitona, a minha secreta Olívia, uma terna recordação que
acalentei por algum tempo, quem sabe se até hoje.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Não, não foi bem uma viagem, mas foi importante para mim, para o meu
imaginário. Outras foram muito mais significativas em termos pragmáticos,
outras em que substituí a carroça pelos jatos, o pão com queijo por
restaurantes famosos, a cerveja por vinhos recomendados. Foi uma viagem simples
onde não conheci monumentos, museus, grandiosos edifícios. Mas por outro lado,
sei que foi a minha primeira viagem ao mundo maravilhoso da mulher e do amor,
da amizade e da camaradagem sem distinção de sexos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">
Sim, mais importante em termos práticos foram outras viagens, como a ida
para a Venezuela, a minha primeira visita de volta a Lisboa depois de vinte
anos ausente, e o meu regresso ao meu país, inesperado e definitivo, outros
vinte anos decorridos. Quem sabe se falarei delas aqui? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoListParagraph" style="line-height: 115%; margin-left: 150.75pt; mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18.0pt;">
<span style="font-family: Symbol; font-size: 14.0pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="font-family: 'Times New Roman'; font-size: 7pt; font-stretch: normal; line-height: normal;"> </span></span><!--[endif]--><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">*
* *<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; text-align: justify;">
<br /></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-87076863168048064572014-12-17T09:08:00.002-08:002014-12-23T07:09:11.769-08:00OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">16- OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Como haviam divulgado,
o Museu Van Gogh expõe mais obras dele, inclusive do período inicial, aliás muito
sombrias, nem parecem pintadas por ele, mas não assim tantas mais do que
anteriormente. A realidade é que não há assim tantos quadros de van Gogh, e o
Prado, d’Orsay e tantos outros museus estão recheados de telas de Vincent van
Gogh. Para compensar muitos quadros de outros conhecidos impressionistas. O
certo é que Vincent (assinava assim muitas vezes) pintou não muitos quadros,
talvez apenas três ou quatro centenas (não tenho essa informação) e em toda a
sua vida só vendeu um quadro, <i>O Vinhedo
Vermelho,</i> por uma bagatela. Vincent nunca foi autossuficiente, nunca casou,
nunca foi feliz, um permanente fracasso. Foi professor, pregador, mineiro, mas
viveu sempre com o apoio financeiro do seu irmão Theo, com o qual trocou uma
correspondência muito interessante sob todos os pontos de vista, a pintura em
especial. Por incrível que pareça, van Gogh viveu apenas 37 anos (1853-1890) e
só começou a pintar aos 29 anos (em 1982), ou seja, só pintou durante oito
anos, principalmente nos últimos três.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Contudo, em 1884/85,
ainda em casa dos pais, em pouco mais de um ano de prática obsessiva, alcança
uma nova forma do tratamento da cor. O seu triunfo deve-se à tonalidade das
cores e por criar uma separação entre a cor no quadro e a cor do objeto,
criando a autonomia da cor. Ou seja, consiste em abafar a cor do objeto a favor
da cor do fundo em variadas e fortes tonalidades. Neste período pinta quatro
telas notáveis: o célebre e pungente <i>Os
comedores de batatas,</i> o inovador <i>Tecelão
no tear,</i> <i>Busto duma camponesa com
touca branca,</i> um belo exemplo do seu cânone de beleza, e <i>Natureza morta com Bíblia,</i> uma clara rutura
com o seu passado pessoal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Mais tarde, em Paris
(1886/87) convive com muitos outros pintores e aprende muito. Os seus quadros
revelam mais maturidade, entre os quais se destacam a melancólica <i>Mulher sentada no ‘Café du Tambourin’,</i> <i>Montmartre
perto do moinho de cima</i> e várias naturezas mortas onde ele abraça
decididamente a arte japonesa. Gosto muito especialmente do <i>Retrato de Père Tanguy,</i> em que o modelo
era o comerciante chinês de tintas baratas que ele usava.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Em Arles (1988/89), dá-se
a explosão da cor. Não são só os emblemáticos girassóis, mas também as
paisagens a plena cor que nos envolvem como se estivéssemos a olhá-las numa
manhã de primavera, e ainda extraordinários retratos de pessoas do povo, como
em <i>A arlesiana,</i> <i>O carteiro Joseph Roulin,</i> <i>O
zuavo Milliet</i> e <i>La Mousmé</i>. Instalado
na Casa Amarela (cor com que ele a pintou), apresenta-a em vários quadros,
assim como o seu quarto, como no emblemático <i>O quarto em Arles,</i> e as tão conhecidas cadeiras de palha com
cachimbo (a dele e a de Gauguin). Nesse período ainda pinta o confrangedor <i>Autorretrato com orelha ligada</i> e o
tecnicamente arrojado <i>Exterior de café, à
noite, na Place du Forum, em Arles.<o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Depois é o asilo em
Saint-Rémy (1889) de onde surgem os notáveis <i>Seara com ciprestes,</i> <i>Caminho de ciprestes sob o céu estrelado,</i>
<i>O olival</i> e <i>A noite estrelada, </i>que só por si notabilizariam van Gogh, em
especial o último. E, como se não bastasse, ainda o viril e tenso pintor no seu
último <i>Autorretrato</i> e um espantoso,
pela cor, <i>A sesta.</i><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> A seguir, em Anvers
(1989/90) pinta <i>A igreja de Auvers,</i>
puro sofrimento e angústia em cor, e um remate fantástico à sua carreira de
pintor, como que uma cena mestre de um filme de Hitchcock, <i>Campo de trigo com corvos,</i> o definitivo adeus à sua arte e à sua
vida. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Vincent van Gogh teve como amigos grandes pintores e com eles
aprendeu: Monet, Renoir, Pissarro, Degas, Seurat e Gauguin. Por ciúme deste,
corta a sua própria orelha e oferece-a a uma putinha. Alucinado pelo absinto,
em que Toulouse-Lautrec o viciara, suicida-se desesperado pela precariedade da
sua vida e da sua carreira de pintor. E, contudo, van Gogh é hoje o pintor
mundialmente mais conhecido. No imaginário popular, van Gogh é o melhor pintor
de todos os tempos e os seus girassóis a sua marca, assim como as cores fortes
e envolventes, o vermelho, o amarelo, o roxo… cores estas que infelizmente
estão esbatendo pela má qualidade do pigmento. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">A <i>Mona Lisa,</i> como
quadro, e apenas como quadro, supera van Gogh em fama, mas experimente
perguntar aos que estão na longa fila no Louvre quem é o pintor, e ficará
surpreendido.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Toda a sua obra é de
uma lucidez e audácia ímpares na história da pintura. A sua pintura é à vez
cerebral e emocional, os seus quadros expressam a solidão, a angústia, o medo
da vida, o desprezo pelo convencionalismo, mas sempre uma contínua busca do
belo através da cor, tão bem conseguida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Para muitos um louco,
um marginalizado, mas ele na realidade foi um pioneiro e um génio
incompreendido no seu tempo. Todos os seus quadros estão empastados do seu
sangue e das suas dores, será essa a empatia que desperta em todos nós. Paz à
sua alma!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Milhões de pessoas foram
nas últimas décadas, vão nos dias de hoje, irão no futuro, a Amesterdão para
ver o Museu Van Gogh. Milhões de dólares enriqueceram, enriquecem e
enriquecerão os cofres da cidade. Há cem anos que galeristas e colecionadores
ganham milhões com a compra e venda dos quadros deste luminoso e infeliz
artista, que morreu na miséria.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> * * *</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-60404911612067655462014-12-16T12:20:00.001-08:002014-12-16T12:20:11.963-08:00AS TULIPAS DE AMESTERDÃO<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
15 – AS TULIPAS DE AMESTERDÃO<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Para aproveitar um provável verão de São Martinho, viajei a
Amesterdão e, para nossa surpresa e prazer, a tradição aconteceu: quatro dias
de sol. Será, talvez, a décima vez que visito esta incrível cidade (acho que o adjetivo
está certo), o que não é estranho, pois viajo há seis décadas. Primeiro pela
paixão de conhecer outras cidades e paisagens; segundo, porque criei várias
agências de viagens (Caracas, Montreal, Londres, Portugal, aqui cinco), em
diversas épocas, com as vantagens que por isso conseguia; terceiro, porque
adoro visitar museus e amo (de paixão declarada) flores e plantas, e neste
campo a Holanda é quase imbatível, certo que só quanto às cultivadas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Flores na Holanda, para o vulgo, é igual a tulipas, mas não
só, também todas as bolbosas que florescem. Importada da Turquia no século <span style="font-variant: small-caps;">xvi</span>, a tulipa (cujo significado original
é turbante) tornou-se uma importante cultura na Holanda e as variedades e cores
multiplicaram-se espantosamente. Bolbos e plantas, não só de tulipas como de
lilases, dálias, íris, jacintos, narcisos e outras bulbosas representam hoje
uma parte importante das exportações do país.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">A uns vinte quilómetros de Amesterdão há um parque,
Keukenhof, criado pela cooperativa dos floricultores holandeses, e são muitos,
que garante que este jardim possui todos os espécimes de bolbos que dão flor.
São 32 hectares de cor, um espetáculo inebriador ao qual felizmente já
compareci vários anos, em abril ou maio, data também marcada este ano mas que
por diversas razões transferi para agora. Acresce que para chegar ao tal
parque, que se situa entre Haarlen e Leiden, atravessamos infindáveis campos de
tulipas, das mais diversas cores, em grandes quadrados da mesma cor, um
gigantesco tabuleiro a cores que, visto de avião, lembram as saudosas colchas
de retalhos das nossas avós. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> E é também espantoso
que existe uma ‘Bolsa’ de venda internacional de flores, onde nos painéis
saltitam as cotações das rosas e tulipas, camélias e girassóis, em várias cidades
do mundo… em vez do valor das ações do mundo financeiro. Dá-nos a esperança de que
o belo natural da natureza ganha o apreço dos povos. É entusiasmante e faz
lembrar o conselho do budista Li Bai: “Vende um dos teus pães e compra um
lírio.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Não fomos à busca de
tulipas, pois não era a época, mas de outras belezas: pinturas. O Museu Van
Gogh esteve fechado cinco anos e agora reabriu com mais quadros do pintor e de
outros pintores que o influenciaram, em especial impressionistas, além de mais
documentação. É interessante a coleção de livros do pintor e ver como ele
aproveitou (diria mesmo copiou) tanto a pintura japonesa nos seus quadros. O
extraordinário Rijksmuseum esteve encerrado para obras dez anos e reabriu no
ano passado com noventa salas. Sem dúvida, um sério rival para os Prado, Quai
d’Orsay, Hermitage e MET. E como se não bastasse, há um excelente Museu de Arte
Contemporânea, Stedelijk Museum, instalado num belo e moderno edifício. Todos a
poucos metros uns dos outros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Estes museus, como os
jardins e os campos de tulipas, os moinhos, e, sem dúvida, os canais e os
edifícios em tijolo que os ladeiam e as barcaças de habitação lá atracadas
atraem centenas de milhares de turistas. Alguns, com a curiosidade adrede do
bairro da luz vermelha e dos cafés onde podem fumar o seu charro
tranquilamente. É, além disso,<a href="https://www.blogger.com/null" name="_GoBack"></a> uma cidade efervescente e
charmosa, com muito que ver, mesmo para quem não visita museus.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Faço fortes reservas
às atividades marítimas das frotas holandesas na época das descobertas, assim
como à sua cruel colonização. Mas admiro o povo holandês pelo seu pragmatismo e
capacidade de trabalho, que conquistou grande parte do seu território ao mar
(creio que sem outro exemplo) e construiu uma sociedade política e socialmente
equilibrada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Por outro lado,
também penso que os holandeses devem bastante ao nosso querido Marquês de
Pombal por ter expulsado os judeus do nosso país, que, juntando-se aos judeus
expulsos de Bruges e Antuérpia, <i>experts </i>em
lapidação de diamantes, lá se instalaram com o seu <i>know-how</i> e relações, deslocando de Lisboa para Amesterdão a força
do eixo do comércio mundial. Quem sabe se um dia o obelisco da praça Dam não
será substituído pela estátua do nosso cruel estadista, que só atrapalha o
trânsito da Avenida da Liberdade?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<a href="https://www.blogger.com/null"><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">A</span></a><span class="MsoCommentReference"><span style="font-size: 8.0pt; line-height: 115%;"><!--[if !supportAnnotations]--><a class="msocomanchor" href="file:///C:/Users/mario_000/AppData/Local/Packages/microsoft.windowscommunicationsapps_8wekyb3d8bbwe/LocalState/LiveComm/f8bc92d61a0933b4/120712-0049/Att/20008ae7/15-revisto.doc#_msocom_1" id="_anchor_1" language="JavaScript" name="_msoanchor_1">[29211]</a><!--[endif]--> </span></span><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> partir do século <span style="font-variant: small-caps;">xvi</span> os
holandeses ocuparam uma posição de destaque no comércio internacional, em
especial através da ‘Companhia das Índias Orientais’ e da ‘Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais’.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Contudo, acho muito
curioso o seu desempenho nas artes em geral. Aprecio muito a pintura flamenga,
em especial pela sua amplitude em focar o homem, os animais, a natureza, com
uma independência menos comum nas belas pinturas espanhola, francesa e
italiana. Estas dependiam do mecenato, quase só pintavam de encomenda, os temas
eram impostos pelos que encomendavam. Mecenato aristocrático e religioso,
portanto os temas eram cenas bíblicas,
retratos de nobres e seus protegidos, propriedades, batalhas. Na Holanda a classe
rica eram os comerciantes que não tinham mentalidade para o mecenato, mesmo que
eventualmente comprassem quadros. Os artistas flamengos pintavam quadros que os
negociantes (galeristas?) lhos vendiam, ou os compravam e negociavam em seu
proveito.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Naquela época,
naquele país, esta é a verdade pouco divulgada, começou o mercado das artes,
com as regras de qualquer mercado, exploradores e explorados, lucros e
prejuízos, roubos e falsificações, leilões, tendo o dinheiro como o único
padrão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="color: red; font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> </span><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Como é natural, nesta viagem não pude
deixar de me lembrar da minha primeira visita a Amesterdão, nos anos sessenta
do século passado, saindo do Brasil para Frankfurt (Feira do Livro) e que estendi
até à Holanda, de comboio, para apreciar as montanhas e os campos (apesar de
ter passagem aérea desse percurso). Não, não continuaria para a Lisboa, pois
nesses tempos vinha à Europa mas não visitava Portugal, pois prometera a mim
mesmo não o fazer enquanto Salazar estivesse no poder. Verdade que, numa outra
viagem, numa noite de verão, em Tarragona (Espanha), deu-me a louca e decidi
alugar um carro e incitava-me em voz alta: ‘amanhã estou lá!’. Mas não o fiz,
nem sei bem porque não. Mesmo que fosse preso pela PIDE, creio que seria uma
prisão curta. Mas poderia não ser, e eu tinha que tocar o meu negócio
unipessoal no Rio, o meu sustento e o meu sonho. O estar tão perto de Lisboa e
não poder ir abraçar os meus pais e irmãos era o meu Muro (de Berlim) pessoal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Então, a minha editora brasileira era ainda pequena e eu viajava
com poucos recursos. Na época, quando os meus amigos me perguntavam por quanto
tempo era a viagem, eu respondia invariavelmente: “Três mil dólares” (claro ou
outra quantia). O certo é que a viagem durava consoante o dinheiro, melhor
dito, os dólares no bolso. Não havia cartões VISA, nem tão pouco estrelas
naqueles hotéis em que pernoitava. Conseguia disputar reservas nos Centros de
Turismo dos aeroportos, garantidas por depósito na hora, depois reembolsado. O
imprevisível, as dificuldades, as interrogações, os pequenos triunfos
temperavam essas viagens já tão emocionantes pela concretização de sonhos
alimentados por tanto tempo. Aliás de tantas e tantas cidades que conheci, acho
que foram Paris e Florença as mais mágicas, e logo Amesterdão e Barcelona. Porquê?
Quantas conheci? Não sei, não me interessa, quero apenas saber quantas ainda
conseguirei conhecer ou revisitar. Anos depois, comecei a viajar com tudo
reservado, garantido, planeado, os hotéis com várias estrelas, restaurantes
recomendados, táxis, carros alugados, já os aviões eram a jato, os aeroportos
melhores, e é bom, muito bom, mas não deixo de ter saudades daquelas primeiras
viagens em condições por vezes precárias, outras nem tanto, mas a juventude e o
realizar de sonhos superam todas as
dificuldades.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Voltando à primeira
viagem a Amesterdão. Chegado à Estação Central reservei o hotel no Posto de
Turismo. Isto é, não um hotel mas uma residencial, frente a um canal, não tão
afastado, mas agora nem suspeito onde. Uma vivenda grande, talvez uma dúzia de
quartos, o meu com uma casa de banho que servia ao meu e a um outro. O uso
facultado através de um simples jogo de trincos. Quem usava fechava o trinco da
porta do outro quarto e pronto. Se a sua porta estava com trinco, o jeito era
esperar. O que não obstou que, distraído como sempre fui, não tivesse passado o
trinco e, enquanto me duchava, entrou de rompante a hóspede do outro quarto
que, apesar de eu não ser assim tão horrível, gritou assustada (?) e saiu.
Depois fui pedir-lhe desculpas pelo ocorrido, afinal eram três espanholas e com
elas vi parte do muito que há de interessante para ver naquela cidade. Uma das
espanholas já conhecia bem aquela cidade
e o meu castelhano era na época bom. Além de que eram ‘guapas’ e desinibidas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">Porém, uma noite resolvi ir à Ópera, tanto por ser quase
impossível assistir no Rio, na época, como porque queria conhecer o edifício
por dentro e em função, o Concertgebouw Orkest. É nada menos que uma das casas
de espetáculos com a mais perfeita acústica do mundo, um impressionante e
imponente edifício em estilo renascentista holandês. Ao voltar tarde, isto é,
seriam umas onze horas, talvez menos, pois começara às oito, todas aquelas ruas
desertas (julgo que hoje não estariam, o nível de turistas está muito diferente),
a porta exterior da residencial estava fechada. O dono, um russo ‘branco’
(fugido do comunismo), verificara no quadro das chaves que não havia nenhuma
(sim, eu levara a chave comigo, esquecera de a deixar na receção), portanto pensou
que todos os hóspedes estavam dentro e trancou o porta e foi dormir. Toquei à
campainha, que me pareceu não funcionar (não estava, por causa da pintura do <i>hall</i>) e insisti. Depois utilizei a
mãozinha de ferro que lá é comum, e nada. Desesperei. Onde ficar? Onde me
abrigar do frio daquele outubro de temperatura já tão glacial para um carioca
assumido? Enlouqueci e parti para pontapear a porta e soltar palavrões em português
bem castiço, mas que a minha querida mãe não teria aprovado. Não tardou a que de
uma daquelas janelas rentes ao chão, comuns nas casas holandesas, (são meias
caves, pois o piso está abaixo da rua mas as janelas são amplas e altas), surgisse
uma cabeça de mulher que perguntou: “O que se passa Senhor? A porta está
fechada?” Com alívio, pois afinal aparecia alguém, afirmei: “Está fechada e a
campainha não funciona e eu estou hospedado aqui.” Só então percebi que
estávamos ambos a falar em português. Desci a escadinha, acerquei-me da janela
e entabulei conversa com a patrícia, que era do Porto. Prolongámos a conversa
(é sempre emocionante encontrarmos um patrício no estrangeiro), enquanto o
marido lá de dentro buzinava “quem é?”. Por fim ela prontificou-se a telefonar
para o dono do hotel, afirmou que ele tinha extensão do telefone no quarto, e
foi o que ela fez. A porta abriu-se e afinal eu consegui alcançar a tão
desejada cama. Ao deitar-me, lembrei-me de um trecho de <i>As Minas do Rei Salomão, </i>numa tradução de Eça de Queiroz, que eu
direi mais ser uma recriação, apesar da boa autoria, em que num dos labirintos
o explorador descobre que há muitas moscas e diz (quem? O Eça ou o explorador?)
que “as moscas são como os portugueses, encontram-se em todas as partes do
mundo.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;"> Tenho andado meio
perdido neste texto, como perdi o meu bom humor e me assustei e irritei nas
ruas de Amesterdão, por causa das bicicletas. Muitas, milhões, uma praga, que
vêm com velocidade de todos os lados, fora dos seus limites, e insultam e quase
atropelam os pobres pedestres, os turistas totós que nas suas vidinhas estão
habituados a passeios apenas para peões. Mas vamos lá, gostei muito desta
viagem, primeiro, como já disse, porque a temperatura estava ótima e o céu
azul. Depois, porque só por si os três museus a que me referi valem qualquer viagem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-left: 129.75pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 115%;">* * *<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div>
<!--[if !supportAnnotations]-->
<br /><div>
<div class="msocomtxt" id="_com_1" language="JavaScript">
<!--[if !supportAnnotations]--></div>
<!--[endif]--></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-35276062319662046782014-12-14T08:28:00.001-08:002014-12-14T08:28:59.988-08:00IMAGINÁRIOS GANHADORES<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
14. IMAGINÁRIOS GANHADORES<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Há algumas semanas
atrás, a Troika chegou de novo a Portugal, a primeira vez depois do fim da
intervenção de ‘ajuda’ financeira, ou seja, a propagada e patética ´independência’
anunciada por Portas. Pompa e circunstância como o habitual, as figuras sérias
em trajes formais e escuros atravessando os corredores ministeriais repetidas
mil vezes nos noticiários, além do enxame de repórteres atrás de declarações.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Como sempre, era manifesta
a arrogância e a clara determinação desses enviados dos credores internacionais
para vigiar a gaveta da caixa registadora do país ainda devedor. Entre outros
temas, o aumento de vinte euros no salário mínimo. Um absurdo, porque terão os
trabalhadores portugueses que receber aumento para um cafezinho diário (sem
bolo), indagavam?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na primeira reunião,
enquanto um empregado da cantina servia água, sumos, cafezinhos e bolos, os
troikianos notaram algo que não lhes agradou, apesar de não conseguirem detetar
de imediato o que era. Depois, entre eles, concordaram que os ‘sim-senhor’, os
numerosos funcionários superiores de vários Ministérios, que sempre forneciam
os mais recentes dados económicos e sociais, estavam diferentes, apáticos,
distraídos, vagos. A suspeita surgiu pela boca do fmiano: “talvez a China ou os
Emirados estivessem em negociações para pagarem a dívida de Portugal e ocuparem
a posição de credores.” E lá se iam os jurinhos e, quiçá, os seus empregos. De
imediato foram selecionados dois dos seus colaboradores para irem às ruas e
assuntar o povo para descobrir o que acontecia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Exatamente 24 horas
depois, os colaboradores reuniram-se com a comissão da Troika e contaram o que
tinham descoberto. Muito simples: os portugueses, todos, todos mesmo, nesses
dias deixaram de se interessar pela discussão do orçamento, pela percentagem de
desempregados, pela confusa colocação de professores nas escolas e a não
abertura das aulas, pelo volume da dívida pública, pela paralisação absurda dos
tribunais… e tudo o mais que antes os afligiam. De momento, a grande
preocupação era o chorudo prémio do Euromilhões, uns redondos 190 milhões de
euros. Nada menos! Saíra para um compatriota de… Castelo Branco. Essa era a
informação. Mas a quem concretamente?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">A Troika tranquilizou-se, mas as mais variadas conjunturas
multiplicaram-se, voaram de boca em boca, mas logo eram ultrapassadas por
outras. Porque o ganhador não tinha aparecido para receber o prémio? Estranho!
Teria morrido de um ataque de coração, ao saber que ganhara tanto dinheiro? Teria
deixado o boletim do jogo no bolso da camisa que fora para a máquina de lavar e
lá ter sido desfeito sem ele próprio se lembrar onde guardara o boletim? Teria
o sortudo perdido o boletim do jogo em algum lugar e não sabia, nem saberá, que
era um feliz sorteado? Teria o filho bebé roído o boletim até ter ficado
irreconhecível para desespero do pai?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Um matutino enviou um
jornalista à agência em que fora preenchido o boletim ganhador, mas o Sr.
António, o gerente, afirmou que deveria haver algum equívoco, pois conhecia
todos os que lá jogavam e continuava a ver todos eles na sua pacata vidinha.
Foi o suficiente para nas conversas de café entrar na baila a tese da Cabala.
Sim, afirmavam alguns, perentoriamente, a Direção do Euromilhões, como o prémio
já estava muito alto, e não havendo premiado, resolvera ‘inventar’ um premiado
e, portanto, nenhum apostador iria receber. Pelo que a dita Direção resolvera
forjar um boletim com os números sorteados, já após o sorteio e, por certo,
teriam dividido o bolo entre eles. Esta notícia foi logo aceite como a razão
mais natural e desencadeou profunda indignação. Alguns sugeriram que deveria
ser constituída uma Comissão de Inquérito para deslindar o assunto. Também não
tardou a que muitos indignados partissem para apedrejar algumas agências da
CGD.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Com tanto alarido e
notícias desencontradas, todos, e cada um dos portugueses, imaginou-se ‘o
premiado’. Porque não? Porque não eles que jogavam religiosamente todas as
semanas? Muitos levaram tão a sério essa hipótese de serem o ‘ganhador’,
convenceram-se de tal modo, que tiveram que ser assistidos nos hospitais.
Infelizmente, um senhor de 85 anos acabou por falecer de AVC. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Alguns noticiários
enfocaram que, segundo a Lei, o premiado, se aparecesse para receber, teria que
pagar ao Fisco 20% do prémio, exatamente 38 milhões. O que provocou outra onda
de indignação entre os imaginários ganhadores que vociferavam: “um absurdo, um
assalto, roubarem o ‘meu’ dinheiro!” Muitos escreveram cartas e enviaram
mensagens para deputados e governantes a exigir a revogação de uma lei tão
injusta e cruel.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Entretanto, centenas
de milhares de ‘sortudos’, imaginários mas convictos, elaboravam planos de como
gastar esses ‘seus’ 152 milhões, que ainda ‘restavam’. Para uns, era a ajuda
aos filhos, aos netos e à família em geral; para outros, dar a volta ao mundo
num luxuoso navio de cruzeiros; a maior parte comprava uma casa fantástica para
viver, dois ou três ponderaram comprar a de Ricardo Salgado que, pensavam, ele
deveria estar a querer vender.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Porém, o Sr. Manuel
Alves ficou indeciso se comprava outra casa. Sim, a sua moradia é modesta, mas
afinal toda a vizinhança é sua amiga, ali ele nasceu e se criou, todos os
vizinhos tinham ido ao enterro da sua mãe e ficaram solidários com ele quando a
mulher o abandonou, com duas crianças pequenas para criar. Mudar para onde
ninguém o conhecia e não lhe daria os bons dias? Afinal, concluiu que o melhor
era dar uma boa reformadela na casa, comprar um Renault, desses que estão
anunciando, e ir de férias para o Algarve, umas semanas. Afinal, teria que ver
bem para que dava aquele dinheirão, que felizmente ‘ganhara’, ele que ganhava
423 euros mensais, e a sua atual companheira, 226 euros de inserção social,
teriam que pensar bem o que fazer do dinheiro. E falou isso mesmo com ela.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Finalmente a mídia
notificou que o premiado havia comparecido para receber o prémio, sem revelar o
nome, idade ou profissão, e outros detalhes mais precisos, o que continuou a alimentar
a desconfiança nos mais céticos. Mas em geral, o balão daqueles sonhos dourados
rebentou como picado por um alfinete e cada um voltou ao seu dia a dia e
preocupações: o que fazer com o garoto ainda sem professor; como e quando consertar
o telhado da casa, pois chovia num dos cómodos; continuar mesmo desesperançado
o envio de currículos para tentar emprego; continuar a visitar a velha mãe que
mora numa aldeia longe, doente e solitária; tratar, assim que possível, de
levar o velho carro para a oficina; tentar mais uma vez com o patrão algum
aumento do salário há tanto tempo congelado, etc. etc. etc.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Afinal é natural as
pessoas que enfrentam uma vida difícil, um dia, por alguma razão mesmo sem
nexo, sonharem bonito e jogarem para debaixo do tapete os problemas mais
imediatos. Lembro-me bem que, quando vivia no Brasil, uma noite fui deitar-me
às duas da manhã, desesperado porque o noticiário a que acabava de assistir
dava como certo o uso da bomba atómico pela Rússia sobre a América, ou ao revés.
Estávamos no auge da Guerra Fria e as reportagens eram assustadoras. Fui
deitar-me, dormi inquieto e no dia seguinte ao levantar-me corri para a minha
televisão, mas infelizmente ela não estava a funcionar por problemas de antena,
o que acontecia sempre, e não consegui ver os noticiários. Desci para tomar um
café e comprar algum jornal. No quiosque, o grande destaque era de dois jornais
desportivos, num: “Jardel danificou irremediavelmente o joelho de Rubinho.”; no
outro: “Rubinho por causa do menisco não jogará domingo.” Fiquei a reler as
manchetes e a abismar-me como, para aqueles jornais, e certamente para os seus
leitores, o importante era o próximo Fla-Flu. Saberiam que os russos ameaçavam
lançar uma bomba atómica que pulverizaria todos os Rubinhos e Jardéis e o
próprio Maracaná? Ou preferiam não saber?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Enquanto me recordo
desse dia estou a barbear-me. Olho-me no espelho e pergunto àquela cara
ensonada e cheia de espuma: “E tu?”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Eu? Eu sei, sei bem
que neste exato minuto, dezenas de milhares de mulheres estão a ser violadas;
que neste exato minuto, centenas de milhares de crianças estão a passar a mais
absoluta fome; que neste exato minuto, milhares de velhos estão a morrer em
camas ou macas de hospitais, abandonados pelos seus próprios filhos; que neste
exato minuto, muitos milhares de assassinatos estão acontecendo; que neste
exato minuto, milhares e milhares de famílias estão sendo expulsos das suas
casas pelos bancos; que neste exato minuto, estão sendo roubados muitos e muitos
milhões dos cofres públicos, por funcionários e políticos desonestos; que neste
exato minuto, uma imensidade de jovens está a se drogar e a se destruir; que
neste exato minuto, um milhão e meio de sírios, a maior parte mulheres e
crianças, estão a viver na Turquia em frágeis tendas, onde faltam água,
alimentos e remédios… e que o principal responsável continua impune e
milionário; que neste exato minuto, milhões de metralhadoras estão sendo
produzidas e vendidas para quem não as devia usar. Eu sei, eu sei tanto mais.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Olho-me no espelho, de barba feita, passo uma loção e vou ao meu dia. Atravesso o quarto e na TV ligada vejo os Senhores da Troika a dar a entrevista final sobre esta recente missão entre nós. Parece-me que não estão contentes nem otimistas com o país. Mas voltarão. Voltarão como abutres à volta da carniça. Virão raspar os últimos tostões da gaveta da caixa registadora do país </span><br />
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> ***</span></div>
<div>
<div>
<div class="msocomtxt" id="_com_1" language="JavaScript">
<div class="MsoCommentText">
<o:p></o:p></div>
<!--[if !supportAnnotations]--></div>
<!--[endif]--></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-53092234517794149872014-12-14T08:23:00.002-08:002015-02-11T12:23:48.189-08:00AS ZEBRAS DE LISBOA<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> 13. AS ZEBRAS DE LISBOA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O Rio é chamada de ‘cidade
maravilhosa’, era-o realmente, talvez ainda hoje o seja, mas não tanto como
quando Ary Barroso, na década dos sessenta do século passado, criou o seu hino,
uma linda alegoria à alegria carioca.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Acho que os turistas
que vão pela primeira vez ao Rio deveriam preparar-se cuidadosamente para essa
aventura, como os que vão para certas regiões e têm que se sujeitar a vacinas. Quando
digo ‘preparado’ entenda-se apenas para se arriscar menos e poupar aborrecimentos.
Uma orientação, mínima que seja, sobre táxis, metro, águas, contas de
restaurantes, horários adequados ou, ao contrário, não, não mesmo, para aqui ou
para ali, pontos dos carteiristas, uso de joias, trombadinhas, etc. e tal. O
que serve também para qualquer outra cidade a visitar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A ‘viagem’ é
atualmente um artigo de consumo obrigatório, diria quase que mais socialmente
(família, amigos, vizinhos) do que de interesse individual. Os que fazem
viagens curtas, conforme as ofertas das agências de viagens, em geral apenas
levam consigo algum pequeno guia ou brochura com informação reduzida de
restaurantes, hotéis e lojas para compras especiais, e breves notas sobre os
lugares interessantes a visitar. Bastará, pois afinal o principal objetivo é o
de fotografar, fotografar tudo, fotografar todos. De máquina fotográfica em
punho, ou <i>iPhon</i>e ou <i>iPad,</i> fotografam desde a escada do avião ao
quarto do hotel, sim, também monumentos em passagem rápida, do alto de um
autocarro <i>city seein</i>g, e o grupinho frente a qualquer outro local tido como obrigatório. Mais do que ver, sentir, cheirar e admirar…
fotografar, para depois exibir essas fotos aos vizinhos e, talvez, quando mais
velhos, para que lhes devolvam esfumaçadas recordações da Torre Eiffel ou do
Coliseo de Roma.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas há os que planeiam
cuidadosamente as suas viagens para conhecer minimamente um país ou uma região,
as suas belezas naturais e as construídas pelo homem, e o seu povo e a sua
cultura. Para estes as viagens serão cuidadosamente antecipadas com leitura de
bons guias de viagens e livros de arte, quando possível, de romances ou filmes
em que a ação se ambienta nessa cidade. Mesmo assim, e mesmo que a visita seja
mais longa, não será fácil captar totalmente o espírito da cidade. Bairros
modernos e elegantes, onde de dia circulam milhares de pessoas e carros, às
compras ou a caminho dos seus escritórios e lojas, ou de um cinema ou
restaurante, às dez da noite podem estar assustadoramente desertos. Em
compensação, velhos bairros degradados, com pouco movimento e quase só de pessoas
de idade, às onze da manhã, doze horas depois surpreenderá pelas centenas de
negócios iluminados pelos néones publicitários e incrível movimentação dessas
lojas onde se vendem livros, discos, sandes, recordações, artigos esotéricos e
de medicina alternativa, talvez drogas mais ou menos camufladas. Haverá,
também, restaurantes (não faltarão os japoneses, chineses e tailandeses), bares,
sex shops, barbearias… Possivelmente, em algumas ruas, infelizes de vários
sexos e idades oferecem os seus serviços em roupas provocadoras, assim como nalguma
esquina um velho tocará melancolicamente o seu acordéon ou um jovem andrógino
sopra flauta lisa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Obviamente que as
perspetivas do viajante serão diferentes se vai para Berlim ou Bruxelas,
Amesterdão ou Oslo, Veneza ou Marselha, Paris ou Porto, Viena ou Genebra, Praga
ou Barcelona, Roma ou Milão, São Petersburgo ou Madrid, falando só na Europa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> No Brasil o leque não
será menos aberto. Mas fixemo-nos apenas no Rio. Para mim, o Rio, enquanto
cidade maravilhosa, mais do que uma cidade é, essencialmente, um estado de
espírito, e por isso mais difícil de captar. É a praia (mas determinada praia,
em determinada hora, em determinado sítio), é a cerveja estupendamente gelada e
gostosa (em determinado boteco de uma esquina de Leblon, onde sei que reúnem os
botafoguenses), é o ensaio de uma escola de samba (mas que seja o da Beija-Flor),
é um jogo no Maracaná (de preferência um Fla-Flu), é uma caipirinha com um
amigo em Santa Teresa (ao final da tarde), é o velejar na baía de Guanabara
(sozinho e quando o vento sopra noroeste), é ouvir uma boa sambista (num bar da
Lapa), é passear descontraidamente a ver as montras (claro, em Ipanema), é
passear de mãos dadas com a namorada (nas áleas do Jardim Botânico). É tudo
isso, mas aceitar também o furto do telemóvel da mesa do café ou um pequeno
assalto na rua por ‘pivetes’, assim como a sujeira e a pobreza, num país tão
rico.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Quando eu vivia no Brasil, um amigo viajou para Portugal e
quando voltou eu perguntei-lhe: “Então, gostaste de Lisboa?” Ele olhou-me com
ar feliz e soltou um “muito” entusiasmado. Voltei ao interrogatório: “E de que
é que gostaste mais?” Ele não hesitou: “Das zebras, das passadeiras. É bestial.
Colocamos o pé na primeira lista e os carros param imediatamente. É
fantástico!”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> De certo modo, o meu
amigo tinha razão, no Rio só os incautos atravessam as faixas de segurança sem
olhar com atenção para os dois lados. Os prevenidos, por precaução, às vezes
ficam quietos até algum carro mais apressado passar sem ligar a mínima ao
transeunte especado. Ainda me lembro de uma ocasião em que eu e um outro amigo
íamos atravessar uma rua pela passadeira, em Botafogo, ele segurar-me o braço e
exclamar: “Não vás, ele já nos viu!” e olhava atento para um carro que ainda
longe vinha disparado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Sei de vários
portugueses que visitaram o Brasil e que ficaram admirados por verem, em especial
à noite, os carros a não pararem nos sinais vermelhos. A explicação é simples,
o motorista confronta a possibilidade de levar uma multa por desrespeitar os
semáforos, contra outra de levar um tiro e lhe roubarem o carro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando eu voltei a
Lisboa, nos finais do século passado, estranhei muito a calma e a descontração
com que tantos pedestres avançam nas faixas, sem olhar para os lados e sem
hesitações. Nem com o passar do tempo consegui habituar-me a ver isso, pois continuo
a achar uma temeridade não tomarem a precaução mínima de olhar para os carros,
pois com ou sem listas o motorista pode (mesmo que não deva) estar distraído,
talvez falando no telemóvel, ou, mesmo tentando, não conseguir travar, por
inoperância sua ou do próprio travão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Hoje acho que esse
atravessar lento e aparentemente descuidado é, realmente, uma ostensiva demonstração
do seu absoluto direito ‘de peão’. Até talvez estejam certos, já que os últimos
governantes se empenharam tanto em abolir muitos dos seus direitos
consolidados, até mesmo os constitucionais. Porque há de um reformado, a quem
‘roubaram’ parte da sua pensão, conquistada com tanto suor e esforço, correr
dos carros quando aquelas listas de zebra lhe garantem o direito de preferência
sobre os veículos. Têm sorte por essa ‘travessia’ não representar cifrões, pelo
que a Troika não se ocupou do assunto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Por acaso</span><span class="MsoCommentReference"><span style="font-size: 8.0pt; line-height: 107%;"><!--[if !supportAnnotations]--><a class="msocomanchor" href="file:///C:/Users/mario_000/Desktop/13,ZEBRAS%20-%20C%C3%B3pia%20-%20C%C3%B3pia-revisto%2011-12-14.docx#_msocom_1" id="_anchor_1" language="JavaScript" name="_msoanchor_1">[29211]</a><!--[endif]--> </span></span><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">, lembrei-me agora de um jovem romeno que, fora do expediente, como biscate,
fazia a limpeza da loja onde funcionava a nossa agência de viagens em Londres.
Uma vez, ele confessou-me que ficava na beira do passeio, frente a alguma
passadeira, meio escondido, e quando conseguia a oportunidade jogava-se à
frente de algum carro, de preferência topo de gama, quando o sinal mudava de
verde para vermelho e o carro avançava um pouco na passadeira. Por vezes, algum
chegava a tocá-lo ou quase, logo ele agilmente deitava-se no chão e ficava a
berrar agarrado às pernas. Rapidamente conseguia um acordo de umas boas libras,
pois os motoristas, mesmo sem se sentirem culpados, temiam a possibilidade de
um processo. Quando lhe perguntei se não tinha medo de ser realmente atropelado
e ficar com as pernas quebradas, ele riu e respondeu: “É isso mesmo que eu
quero. Receberia uma alta indemnização e voltava para a minha cidadezinha na
Roménia, talvez até com uma pensão vitalícia.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> As recordações são
como as cerejas, puxamos uma e logo vem uma enfiada delas. Essa loja em Londres
de que falei atrás, a cinquenta metros da Oxford St., tinha uma ampla fachada
toda envidraçada. Uma vez por semana, invariavelmente, verão ou inverno, com
sol ou chuva, um senhor bem velho, a barba e o cabelo de um branco sujo, o
rosto muito vincado de profundas rugas, vestindo uma roupa modesta e já bem
surrada, parava no lado de fora da loja, com um balde e uma espécie de
esfregona de borracha que pousava no chão, e ficava alguns momentos a olhar
para a loja. Como ninguém saía a dizer-lhe alguma coisa, não hesitava, lavava
com capricho e lentamente toda a vidraça, só a parte externa. Ao acabar puxava
de um cigarrinho, acendia-o meticulosamente e ficava a aguardar. Alguém da loja
então saía e dava-lhe já não me lembro quanto. Ele agradecia com um piparote na
pala do boné, mas sem pronunciar uma palavra, e lá se ia com o seu balde e
esfregona. Nunca entrou na loja, nunca pediu licença para lavar a vidraça,
nunca fixou o preço do seu trabalho. Depois da primeira vez, funcionou
pontualmente como um comboio inglês. Lavava algumas outras montras daquela rua,
com o mesmo ritual. Possivelmente estava ilegal e assim, pensaria, driblava as
leis britânicas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando eu via o
velhinho naquela sua faina, invariavelmente me acudia à mente Thomaz, o
inesquecível personagem de <i>A Insustentável Leveza do Ser</i>, de Milan
Kundera. Certo que neste caso, a falta de juventude, encanto, mistério e charme
afastava qualquer hipótese de ‘avanços’ alvoraçados das jovens das redondezas.
Contudo, desde então, por vezes fico tentando adivinhar a nacionalidade daquele
senhor e a razão de todo aquele ritual e sigilo. Teria ele lido o livro de
Kundera? Era Tcheco?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ainda sobre as passadeiras
de Lisboa. Acho que os génios que decidem de sua implantação nunca conduziram
um carro, nem observaram o trânsito com atenção. Invariavelmente, elas estão
pintadas a uns escassos dois metros das esquinas, o que significa, se é uma rua
onde os carros dobram à direita, em ângulo reto, obrigatoriamente os carros ou
estancam com uma travagem rápida, surpreendidos, ou não conseguem fazê-lo e
avançam na faixa, em risco de atropelar algum pedestre menos ágil. Quando o
motorista consegue parar e é seguido por mais carros, estes atravancam a rua de
onde vêm ao ficarem parados para dobrar, ou para irem em frente, pois no espaço
da esquina à passadeira só cabe, e mal, um carro... e está lá um.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não é pois por
acaso que o maior número de atropelamentos nas cidades acontece exatamente nas ‘faixas
de segurança’, como o demonstram as estatísticas. E apesar destes números, e
apesar da enormidade de batidas nesses pontos, o serviço de trânsito não
acorda. Porque não pintar essas faixas a pelo menos cinco metros das esquinas?
Além do mais, obrigaria os pedestres a andarem um pouco, o que só lhes faria
bem, e por vezes seriam poupados a um atropelamento. Enfim, os mistérios da
administração pública municipal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoListParagraph" style="margin-left: 176.25pt; mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18.0pt;">
<!--[if !supportLists]--><span style="font-family: Symbol; font-size: 14.0pt; line-height: 107%; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;">·<span style="font-family: 'Times New Roman'; font-size: 7pt; font-stretch: normal; line-height: normal;">
</span></span><!--[endif]--><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">*
* *<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div>
<div>
<div class="msocomtxt" id="_com_1" language="JavaScript">
<!--[if !supportAnnotations]--></div>
<!--[endif]--></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-54257453883047157092014-10-29T13:45:00.001-07:002014-12-14T08:30:44.768-08:00FANTASIAS<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> </span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;"> </span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">12.</span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;"> </span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">FANTASIAS</span><br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Numa postagem
anterior, falei da minha paixão à música, tanto bossa nova como jazz e,
especialmente, música chamada clássica ou erudita. Contudo, a música foi, e
talvez ainda seja, a maior frustração da minha vida. Explico porquê.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A minha irmã Isabel
(a mais velha e a única mulher dos cinco irmãos), estudava francês em casa,
piano e não sei o que mais, ou seja, professoras a domicílio, como era a norma
das famílias burguesas dos anos trinta. Pois bem, quando ela chegou ao sexto
ano teve que estudar harmonia, certamente fora das atribuições da gorducha e
simpática senhora que ia lá em casa lecionar piano, acho que duas vezes por
semana. A solução foi a minha irmã matricular-se na Academia dos Amadores de
Música, então na Rua António Maria Cardoso (hoje na Rua da Misericórdia).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas, como uma menina
de boa família na época não podia andar sozinha na rua, pois a vizinhança
torceria o nariz a essa audácia e falta de decoro, lá fui eu escalado para a
acompanhar no trajeto para a Academia. Eu, o terceiro dos irmãos, com apenas
oito anos, como se um frangalhote pudesse ser um respeitável guarda-costas.
Morávamos na Rua Quatro de Infantaria, a um quarteirão da Ferreira Borges e a
dois da Silva Carvalho, onde apanhávamos o elétrico, que nos deixava exatamente
na porta da Academia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Como eu ficava sem
nada que fazer enquanto decorriam as lições da minha irmã, inscrevi-me no
primeiro ano de piano e, em pouco tempo, a professora estava entusiasmada com o
meu progresso e afirmava à minha irmã que eu tinha muita vocação. Um dia, o
diretor da Academia passou casualmente na sala onde eu tocava, interessou-se em
saber quem era eu, perguntou-me se eu tinha linhagem musical, não, não tinha.
Saiu da sala para logo voltar com alguns dos seus alunos de anos mais
adiantados para eles “verem como se colocavam os dedos no piano!”. Até hoje não
sei como era, mas o certo é que ele, mais de uma vez, voltou a exibir a minha
perícia ou habilidade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Por esta razão,
fiquei bastante convencido que a minha vocação e vida futura seria a de
pianista, claro de grande sucesso, e via-me de fraque, em maravilhosos palcos
de todas as grandes cidades culturalmente de renome a ser entusiasticamente
aclamado pelo público. Em casa praticava bastante, primeiro num pianinho
caquético que havia sido da minha irmã, mas depois, atrevido, avancei para o
belo <i>Steinway,</i> a melhor marca de pianos, pelo menos então, que o meu pai
tão benevolentemente comprara para a Isabel.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> De quando em quando,
era necessário afinar o piano, como é da praxe. Aparecia então um afinador,
cego, vindo do Instituto Feliciano de Castilho, mesmo em Campo de Ourique. Ele
vinha sozinho pelos passeios, atravessava as ruas, é certo que havia pouco movimento
de carros. Andava devagar e com cuidado servia-se de uma bengalinha branca,
equipada por uma sineta como a das bicicletas, com a qual ele alertava outros
transeuntes e rompia a espessa escuridão dos seus passos. Angustiava-me vê-lo
assim tão desprotegido, parecia-me um passarinho caído do ninho, tanto que, por
vezes, quando ele saía lá de casa, segui-o para o acompanhar naquele passeio
cego e incauto pelas ruas, em vez de mais inteligentemente lhe dar o braço e
conversar com ele, mas tinha receio que ele se ofendesse.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Lá em casa, ao
afinar o piano, ele premia uma tecla de cada vez, esticava o pescoço e virava a
cabeça para o alto, como que a perseguir no ar a nota emitida. Premia a tecla
mais umas vezes, sempre a perseguir no espaço, para ele apenas densa escuridão,
o som ideal. Ficava muito tempo nesta afinação, o que irritava alguns lá em
casa, mas ao contrário a mim enfeitiçava-me. Eu queria atinar como ele ouvia, a
mim mais parecia que os ‘via’, aqueles sons, e como os adestrava. Um dia, atrevi-me
e perguntei-lhe o que me intrigava há muito, se ele via cores diferentes
conforme as notas. Ele ficou algum tempo calado, o que me levou a pensar que
ficara zangado comigo, mas depois muito delicadamente perguntou-me porque eu
lhe fazia aquela pergunta, “não sendo eu cego”. E continuou, que sim, via cores
conforme as notas, e a tonalidade, conforme soava mais forte ou mais fraca,
ajudava-o a afinar o piano. Não terá sido assim exatamente que ele me falou,
mas foi assim que entendi. Quando lhe falei que também via cores ao ouvir
música de olhos fechados ele manifestou espanto e sorriu, como quem encontra um
parceiro simpático. Pela primeira vi um sorriso naquele rosto tão triste.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na realidade, eu
gostava de ouvir música deitado e de olhos fechados. Não tardava a sinfonia de
sons que ouvia a rivalizar com a de cores que via, o que me divertia muito. Por
isso, naquele momento, senti uma grande identificação com aquele cego, já tão
velhinho, ou o era só aparentemente, penso agora, um senhor tão competente e
tão misterioso que deixava o <i>Steinway</i> afinadíssimo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O que é curioso é
que passados não muitos anos, no início da Segunda Grande Guerra, Disney lançou
nos ecrãs de cinema <i>Fantasia,</i> um filme extraordinário que eu vi mais de
uma dúzia de vezes. Apresentava oito peças musicais de grandes compositores, e
criava histórias com pessoas e animais adequadas à música, em uma ou duas só
com cores. Direção musical da Orquestra de Filadélfia pelo renomado maestro
Leopold Stokowski.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Apenas para
informação, as músicas eram: “Tocata e Fuga em Ré Maior”, de Bach, “Uma Noite
no Monte Calvo”, de Mussorgsky, “Suite Quebra-Nozes”, de Tchaikovsky, “Sinfonia
Pastoral”, de Beethoven, “Sagração da Primavera”, de Stravinsky, “Dança das
Horas”, de Ponchielli, “O Aprendiz de Feiticeiro”, de Dukas e “Ave Maria”, de
Schubert.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Apesar da sua beleza,
teve críticas verdadeiramente idiotas, o filme não fez muito sucesso
inicialmente, e só a partir de 1960 é que passou a ser tão apreciado quanto
merecia. Felizmente em 2000 foi lançado em DVD, para minha alegria e de muitos
milhares de melómanos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas, voltando ao
afinador. Não sei a razão por que, enquanto o mirava na sua persistente busca
dos sons, eu aliava o seu trabalho com o que se contava sobre o genial
Beethoven, surdo, surdíssimo, que para compor tocava nas teclas do piano com a
mão esquerda, enquanto encostava o ouvido no piso, e talvez a mão direita,
para, imaginem só, pelas vibrações das tábuas alcançar a leitura da sua própria
partitura. E eu, miúdo tonto, perguntava-me: “Será que aquele compositor, sem
dúvida um dos maiores de todos os tempos, também via cores quando premia as
teclas?” Quem sabe, talvez o dó em vermelho, quem sabe se o ré em rosa, porque
não o mi em azul?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao escrever estas
linhas resolvi fazer uma experiência. Afundei-me na poltrona enquanto ouvia, de
olhos fechados, durante algum tempo, a magistral interpretação de “The Art of
the Fugue”, de Bach, por Glenn Gould. Adorei, mas não, não vi cores. Há muito
que não fazia esta ‘entrega’. Afirmei que via cores ao ouvir música, quando
jovem, em casa dos meus pais, e lembro bem que ficava estendido num divã junto
das janelas da marquise que continuava a sala de jantar. Era lá que se
encontrava a ‘telefonia’ barata, de marca <i>Pilot,</i> branca, que irradiava a
Emissora Nacional, com programas de música clássica. A marquise era totalmente
envidraçada e o Sol banhava o meu rosto, talvez por isso a razão das nuvens
coloridas que me alegravam. Ou talvez, com a idade e falta de prática, tenha
perdido essa maravilhosa faculdade. Seja como for, foram e serão momentos
inolvidáveis para mim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Fiz o primeiro e o
segundo ano de piano com bom aproveitamento e elogios da professora. No final
do segundo ano, como é habitual, aconteceu um recital especialmente para os
pais dos alunos dos vários anos. A minha professora, que tinha uma filha a
aprender piano paralelamente comigo, teve a ideia luminosa de nos apresentar a
tocar em conjunto, creio que uma valsa de Chopin. Começámos com desenvoltura,
tínhamos ensaiado muito, até que a coleguinha se enganou. Eu, em vez de
continuar a tocar, para dar a oportunidade de ela retomar o acompanhamento,
parei, levantei-me do tamborete furioso e vociferei: “Eu bem sabia que não
devia acreditar em mulheres de olhos verdes!” Foi uma gargalhada geral e,
certamente, o ponto alto e mais divertido da apresentação. Devo dizer que a
professora nos incitou a repetir e, dessa vez, tudo decorreu bem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Passaram-se oitenta
anos, sim oitenta, e até hoje não consigo explicar a razão da minha sanha
contra os olhos verdes, de que eu nem sequer tinha conhecimento. Felizmente que
no decorrer da minha vida adorei e amei alguns olhos dessa bela cor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Comecei este texto a falar
em frustração. Explico. Quando entrei no primeiro ano de Liceu, no Pedro Nunes,
tinha então dez anos, inscrevi-me também no terceiro de piano na Academia. No
final das aulas, à tarde, quando eu dizia que ia ter lições de piano, a chacota
era geral, chamavam-me de maricas e outros nomes pouco simpáticos. A verdade é
que naqueles anos os jovens não tinham a idolatria do rock, pois nem existia,
os meus colegas desconheciam os grandes intérpretes de jazz, e para eles o
piano era apenas para meninas. Os ‘machões’ não tocavam piano. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Fui dizer à minha professora que queria desistir do curso e
expliquei-lhe as razões. Ela levou-me ao diretor que tentou convencer-me a
continuar, mas eu estava inflexível, o meu prestígio masculino estava em jogo.
O diretor sugeriu o violino, e lá fomos conversar com o professor deste lindo
instrumento, que tanto apreciava e que continuo a adorar. A desilusão foi
grande quando ele falou que, naquela idade, apesar de apenas dez anos, segundo
ele, eu nunca conseguiria a flexibilidade necessária dos pulsos para ser um bom
violinista. Desta forma, nem piano, nem violino, tão pouco tambores ou flauta
lisa para encantar incautas, como na Mitologia. Desisti.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A partir daí fui
apenas ouvinte, um entusiasta e perseverante ouvinte, com muita alegria e uma
boa coleção de CDs. Mas, lá no mais profundo do meu coração, quando ouço um
Horowitz, um Glenn Gould ou um Pollini, Ashkenazy ou Argerich, sinto uma
dorzinha no peito. Mas logo me conformo e grito para mim mesmo: “Não sejas
parvo, aproveita enquanto podes ouvir com deleite estes maravilhosos
intérpretes ou outros. Tu nunca serias um bom pianista, acredita!”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Então, serenamente,
coloco Maria João Pires a interpretar magistralmente os “Noturnos” de Chopin e
o mundo volta a sorrir-me. Sou um felizardo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoListParagraph" style="margin-left: 129pt; text-indent: -18pt;">
<!--[if !supportLists]--><span style="font-family: Symbol; font-size: 14.0pt; line-height: 107%; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;">·<span style="font-family: 'Times New Roman'; font-size: 7pt; font-stretch: normal; line-height: normal;">
</span></span><!--[endif]--><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">*
* *<o:p></o:p></span></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-11473096640739763702014-10-26T11:21:00.000-07:002014-12-14T08:33:04.462-08:00ROMANCE DE AMOR?<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
</div>
<div>
<br /></div>
<div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">11.ROMANCE DE AMOR?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na última quinta-feira
(23/10) fizemos um novo lançamento dos meus dois livros recém-publicados, no
simpático espaço ‘Âmbito Cultural’, do El Corte Inglés, em Lisboa, uma sala
ampla e com uma vista estupenda que o El Corte Inglés disponibiliza,
gentilmente, para lançamentos de livros e outros eventos culturais. Além de ter
adorado essa sala, apreciei muito a competência e amabilidade dos funcionários
que se ocupam desta área, Ana Neves e João Faria. É maravilhoso colaborar com
pessoas como eles.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Tinha pedido ao meu
amigo e excelente editor Carlos Veiga Ferreira, que, como é sabido, há alguns
anos criou a conceituada Teorema, e que em 2008 a vendeu para a Leya, mas que,
apesar disso, continuou à frente dessa editora. Porém desiludiu-se com a
situação geral e resolveu sair e criar a Teodolito, para alegria dos bons
leitores, pois continua a editar muitos dos seus anteriores autores e outros
igualmente bons.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Veiga evocou as boas relações que mantinha com os meus irmãos
Rogério e Rui, também editores, e lembrou que me conheceu na Feira de
Frankfurt, onde eu e os meus irmãos éramos conhecidos por ‘Os Três
Mosqueteiros’, quando lá nos encontrávamos, eles vindos de Lisboa e eu do Rio,
pois então não podia visitar Portugal, por em tempos idos ter cometido o crime
de… ser antissalazarista.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Há um ano atrás,
enviei ao Veiga um exemplar, em edição digital, de <i>O Contador de Estórias</i>,
que ele nesse dia elogiou no seu conjunto e depois comentou conto a conto, com
a inteligência e o humor que lhe são peculiares. O que, claro, me agradou
imenso, já que ele não é um homem de pronunciar palavras não sentidas e é, sem
dúvida, um rigoroso crítico literário. Haverá alguma benevolência graças à
nossa amizade, mas foram para mim um estímulo, e por isso lhe agradeço.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Desta forma, quando
me coube falar, tentei explicar que sempre escrevi, mas apenas mentalmente,
raras vezes fiz um rascunho, e os que porventura fiz, evaporou-os a voragem do
tempo. A minha vida muito ocupada com as editoras que tive, em certos períodos
com muitas dificuldades que me tiravam o ânimo, em outros, de situação folgada,
que me proporcionavam ocupar o tempo em viagens e outros prazeres, como as
amizades e eventos culturais, afastavam-me da escrita. Por outro lado, tinha
que cuidar de quatro filhos e, ainda, de uma fazenda grande, em Teresópolis, a
que me dediquei muito.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Uma outra razão de
peso, como editor achei sempre que não deveria publicar livros de minha
autoria, pelo menos em editoras minhas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Depois destas
‘desculpas’, talvez esfarrapadas, acabei por revelar a Verdade, a verdade nua e
crua. Apesar de pensar em escrever contos, de que gosto mais do que de romances,
leitor voraz desde muito jovem, de milhares de obras, perguntava-me: “Para quê escrever
se nunca poderei ombrear com contistas como Gogol, Tchecov, Cortázar, Thomas Mann, Fitzgerald, O’Henry,
Jack London, Mark Twain, Stefan Sweig,
Alice Munro, Virginia Woolf, Nabocov, para citar apenas alguns?” Como
atrever-me a escrever um conto depois de ler <i>Boneca de Luxo</i> (<i>Breakfast
at Tifany’s</i>), de Truman Capote?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Então, perguntarão “porquê
escrever e publicar, agora aos noventa anos?”
Bom, acho que nesta idade posso permitir-me muitas coisas e contar com a
benevolência dos leitores. Sinceramente, hoje preciso de escrever para viver
ilusões ou para relembrar cenas do passado, e modificá-las ao meu gosto, como
eu gostaria que tivessem acontecido e não como aconteceram. Quase poderia citar
aquele poema de Pessoa: “Poema em Linha Reta”, e cito apenas alguns versos:
“Nunca conheci ninguém que tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos
têm sido campeões em tudo.” “Eu, que quando a hora do soco surgiu me tenho
agachado / para fora da possibilidade do soco;” “Toda a gente que eu conheço e
que fala comigo / nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho. / Nunca
foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Por fim resolvi falar
um pouco de <i>O Escultor de Almas</i>, romance escrito deliberadamente como
tal e não, diria que acidentalmente, como <i>O Roxo dos Jacarandás</i>. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> ‘O Escultor’ foi o
último livro que publiquei em edição digital (junho de 2014) e que em setembro
lancei nas livrarias, em edição comercial. Como sempre, distribuí os cinquenta
exemplares da edição digital exclusivamente para amigos e familiares. O retorno
deixou-me perplexo, vários desses meus escassos leitores disseram: “mas, é um
romance de amor!” Mas porque não? Deveria ser sobre <i>zombies,</i> fantasmas,
monstros, gorilas, extraterrestres, erótico e mal escrito por uma mal amada,
biografia de algum vulto histórico absolutamente inócuo, policial, de branqueamento do nosso ditadorzinho…?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> E porque não sobre o
amor? Eu acredito no amor, indiscutivelmente é o sentimento mais importante na
vida humana. Eu amei muito e, estou seguro, fui também muito amado. Amar e ser
amado é uma bênção, um privilégio. Mas mais que sobre o amor, ‘O Escultor’ é
sobre uma relação amorosa, o que é muito diferente do amor propriamente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O amor é um mistério e
um milagre. A relação amorosa é uma arte e o exercício de compreender o outro e
aceitá-lo de ânimo aberto, assim como o de entregar-se abertamente. Caso
contrário, essa relação é corroída como que pelo ácido sulfúrico.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na relação amorosa há
sempre uma bomba-relógio de permeio: os filhos, ter ou não, criar assim ou
assado, poucos ou muitos. Além de que o homem e a mulher vivem ‘os filhos’ de
maneira diferente. O homem deseja ter filhos de forma mais intelectual, mais
pragmática, por razões sociais, para a continuidade do seu nome e da sua
personalidade, até da sua profissão. A mulher vive a gravidez e a maternidade
visceralmente, com o coração, com todo o seu corpo e mente, com esperança, com
altruísmo. De um modo que o homem não entende, não pode entender. A mulher tem
absoluto direito a essa maternidade, a lutar por ela, mesmo em prejuízo de uma
relação amorosa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Numa relação, há
ainda uma outra bomba, e mais potente: a interrupção da gravidez, voluntária ou
não, decidida pelos dois ou apenas por um deles. De qualquer forma, é sempre
muito difícil e traumático para a mulher, deixa-lhe sempre angústias, mágoas,
remorsos e frustrações. O homem aceita muito melhor essa situação, afinal nem a
vive fisiologicamente. É possível que isso faça toda a diferença.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Foi todo este quadro
que tentei criar ao escrever <i>O Escultor de Almas, </i>mas não sei se com a
arte e o engenho suficientes para transmitir a mensagem<i>. </i>Sim, o
personagem masculino é um homem de sucesso, sim, ele ama muito a jovem que
arrancou da favela, sim, ele moldou-a, esculpiu-a, por amor e para que a
relação deles fosse equilibrada. Sim, o personagem feminino amava muito o seu
amante, sim, ela desejava viver com ele, sim, ela queria ter um filho, custasse
o que custasse. E quanto a isto não se entenderam. É isto um romance de amor? E
se for?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Foi tudo isto que tentei explicar para os que tiveram a
gentileza e paciência de me ouvir naquela sala do El Corte Inglés, enquanto lá
fora o crepúsculo crescia. Presença que agradeço com sinceridade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Tentei ainda
responder à pergunta no ar: “porque voltei a ser editor, quatro anos depois de
deixar de o ser?” Mas porque não, se o fui durante seis décadas? Como respondi
a um livreiro que me enviou um <i>mail</i> de boas vindas ao setor: “Estive
internado nos ‘editores anónimos’ quatro anos, mas saí, não consigo livrar-me
do vício.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Enfim, aqui estou, a
aguardar a ressonância das minhas mensagens escritas, por um lado, e, por outro,
disposto ao diálogo, como sempre franco e amigável, com os autores que me
procurarem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoListParagraph" style="margin-left: 179.25pt; mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18.0pt;">
<span style="font-family: Symbol; font-size: 14.0pt; line-height: 107%; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="font-family: 'Times New Roman'; font-size: 7pt; font-stretch: normal; line-height: normal;"> </span></span><!--[endif]--><i><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">* * *<o:p></o:p></span></i></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-20552590259630152812014-10-21T09:13:00.001-07:002014-12-14T08:35:01.294-08:00Páginas de Prazer<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">10. PÁGINAS DE PRAZER<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Como escrevi
anteriormente, no início de 1955, estava eu sem trabalho e sem qualquer
negócio, pois havia saído deliberadamente da Editorial Andes. Por uma questão
de ética, achei que não deveria criar, pelo menos de imediato, uma outra
editora e publicar títulos de autores que publicara na Andes.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Contudo, havia um
autor, não da Andes, Hugo Schesinger, com o qual mantinha uma boa amizade,
independentemente da área editorial. Ele organizava livros de referência, sobre
indústrias e produtos de todo o Brasil, muito úteis naquela época e naquele
imenso país em rápido desenvolvimento, que apareciam como edições de autor, e
eram. Ele sugeriu que os editasse e distribuísse, pois o esquema de vendas dele
era fraco e tinha pouco tempo para se ocupar da produção. Passei a editá-los,
já nem me lembro com que chancela, e a distribuí-los. Publicava edições
pequenas, que eram atualizadas constantemente, apesar de infelizmente não
haver, então, o recurso a edições digitais. Estamos a falar de obras com
informações atualizadas, indispensáveis num país imenso e em constante
transformação e crescimento. Na realidade, esses livros vendiam bem, por serem
únicos no género, e a venda era quase exclusivamente pelo correio, pelo que
geravam uma boa margem de lucro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Pensar nessas edições, hoje, dá-me até vontade de rir, pois
qualquer dessas informações que esses guias prestavam, atualmente, em segundos,
na net, cá estão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Esse meu amigo e
autor dirigia uma grande fábrica de móveis de aço, em São Paulo, e insistiu
para eu representar essa linha de modernos móveis para escritórios no Rio. Não
era uma proposta sedutora para mim, mas entretanto nascera o meu terceiro
filho. Topei!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não foi fácil, a
concorrência era grande e desleal, principalmente nos fornecimentos para o
governo, que era onde se ganhava. Consegui penetrar em alguns ministérios e
secretarias, mas as concorrências eram publicadas de forma a respeitar acordos
anteriormente estabelecidos entre os habituais fornecedores e os compradores.
Era, é, o Brasil.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Em toda a minha vida
comercial sempre tentei seguir caminhos diferentes dos outros concorrentes,
pois invariavelmente comecei independente de ricos e dos grandes grupos,
portanto, com dificuldades. Foi assim
que achei por bem sugerir à fábrica que criassem um cofre sólido e pesado, mas
pequeno, oitenta centímetros de altura e cinquenta por cinquenta de lados.
Estes cofres pequenos são normais atualmente, mas na época, modelos deste tipo
não eram produzidos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Consegui uma reunião
com a direção geral dos Correios (então ainda no Rio, sede do governo, Brasília
nem ainda era um sonho), e propus-lhes o tal modelo com um argumento de peso: nas
agências, quando o(s) funcionário(s) durante o expediente, ou de um dia para o
outro, eram revezados, como só havia um cofre, parava tudo para a conferência
de existências. Ora, isso resolvia-se -- afirmava eu à Direção dos Correios --
se cada funcionário tivesse o ‘seu’ cofre, que fecharia e abriria com
exclusividade. Vendi bem a ideia, em breve saiu o edital para a venda de
quatrocentos e tal cofres com estas especificações. Ganhei facilmente pois a
concorrência não poderia fabricar cofres com essas características rapidamente,
enquanto nós já estávamos a produzir, no prazo estabelecido no Edital da
Concorrência. Aquando da entrega, os outros fornecedores, por despeito,
obrigaram o funcionário recebedor a serrar um dos cofres, para conferir se entre
as paredes duplas havia amianto, como era exigido, e tinha. Foi uma boa venda.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Entretanto eu
organizara uma equipe de meia dúzia de senhoras para vender estes cofres para
as madames. Argumento: lá podiam guardar as joias e os perfumes franceses, muito
caros, e que estando à vista ‘evaporavam-se’ rapidamente. Três ou quatro
vidrinhos pagavam o cofre. As vendedoras levavam uma lista de preços desses
perfumes para exercerem essa aritmética.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Contudo, apesar de,
no ‘lavar dos cestos’, conseguir manter-me razoavelmente, queria sair deste
tipo de negócio. Não me agradavam as relações que era obrigado a manter nesta área.
Tratei de conseguir alguém de confiança para continuar essa representação, não
queria deixar mal o meu amigo, enchi-me de coragem e… voltei ao livro, que era
para mim o chamamento do oásis na travessia do deserto de aço.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Com pouco dinheiro,
teria que limitar as edições e concentrar-me a publicar somente em temas
determinados, para poder ter maior poder
de oferta. Fundei a EDITORA PÁGINAS, só com duas coleções: Páginas de Cinema e
Páginas de Teatro, temas absolutamente descurados pelos outros editores
brasileiros. Fui o editor brasileiro que mais editou nesta área, e em língua
portuguesa. O meu irmão Rogério Moura, na Livros Horizonte, publicou muitos dos
livros publicados pela Páginas e editou muitos outros de sua seleção. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A Páginas vendia bem
em livrarias, porém o forte das vendas era pelo correio para os associados dos
cineclubes, que nessa época proliferavam como cogumelos. E naqueles tempos de
livrarias fracas nas cidades não muito grandes, no Brasil os transportes eram
demorados e caros, os livros demoravam a chegar às pequenas livrarias, pelo que
era uma vaidade receber um livro em primeiro lugar, antes de chegar às
livrarias, pelo correio, para poder ler primeiro mas, também, para poder exibir
aos amigos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Adorei esta editora,
tanto pelos livros que publicava, pois sempre adorei cinema e teatro, como
porque a sede era uma sala no 18º andar num edifício novo, no Largo da Carioca,
nesses tempos o centro nevrálgico do Rio. Dela desfrutava-se de uma linda vista
para o Convento de Santo António e para o casario velho construído pelos
portugueses, nas ruas em continuação desse morro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Além de sede, a sala
também era livraria, só de livros de cinema e teatro em diversos idiomas, e
praticamente todos os publicados no Brasil. Falta mencionar algo de muito
importante: num canto, funcionava um barzinho onde rolava o uísque e
caipirinhas, na companhia de alguns salgadinhos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A frequência desta
livraria era maioritariamente de quem trabalhava em cinema, TV e teatro. As
conversas eram muito ricas e, por vezes, acaloradas. De realizadores posso
citar Alex Viana, Nélson Pereira dos Santos, Lima Barreto, Alberto Cavalcanti,
Glauber Rocha e outros. De artistas, uma longa lista que nem cito. De
escritores para teatro e cinema: Augusto Boal, meu bom e saudoso amigo,
fundador do Teatro de Arena também em Portugal, Vinícius de Moraes, Salviano de
Paiva, Abdias do Nascimento, fundador e diretor do Teatro do Negro do Brasil, e
outros. De alguns destes editei os seus livros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ocorre-me relatar um
evento interessante promovido pela Páginas.
Como o cineasta Alex Viana estava interessado em adaptar ao cinema <i>Orfeu
da Conceição</i>, uma peça teatral de Vinícius de Moraes, resolvemos promover uma leitura pelo próprio
autor, para um público de empresários,
no excelente auditório da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Uma
tentativa de encontrar um produtor ou patrocinador para o filme, que não
conseguimos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mais tarde, o
realizador francês Marcel Camus interessou-se pela peça e realizou <i>Orfeu do
Carnaval</i>, filme esse que ganhou a Palma de Ouro em Canes (1959) e o Óscar
do melhor filme estrangeiro (1960). Trilha sonora de Tom Jobim e outros
compositores brasileiros, não mencionados nos créditos. Essencialmente com intérpretes
brasileiros, negros, é uma produção franco/italo/brasileira. Inspirado na
Mitologia grega, de Orfeu e Eurídice, em que Eurídice (Marpessa Dawn) se
apaixona por Orfeu (Bruno Melo), que tem uma noiva, a bela Mira (Léa Garcia),
que se enfurece de ciúmes. O filme é lindíssimo e o seu ponto alto são as cenas
do Carnaval, em que a Morte (belo desempenho do tricampeão olímpico de salto triplo
Ademar Ferreira dos Santos) persegue Eurídice até que ela na fuga morre
eletrocutada. Numa sessão espírita, Orfeu recupera o corpo de Eurídice, o que
enraivece Mira e acaba por provocar a queda de Orfeu num precipício com
Eurídice nos braços.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Revi com muito
prazer este filme há dias.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Foi talvez a editora
que me deu maior satisfação, mas que não durou tanto quanto desejaria. A razão
foi que tive que largá-la para enfrentar um desafio maior, um voo muito alto
que afoitamente resolvi enfrentar. Fui convidado para criar uma grande editora
de Ciências Sociais pelo Prof. Bilac Pinto (deputado, senador, embaixador do
Brasil em Paris), proprietário da maior editora de livros de Direito do Brasil,
a Revista dos Tribunais. Era um homem de uma família muito rica, ligada à área
bancária, mas principalmente muito culto, inteligente e correto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Deste convite nasceu
a Editora Fundo de Cultura, da qual qualquer dia falarei. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoListParagraph" style="margin-left: 173.25pt; text-indent: -18pt;">
<span style="font-family: Symbol; font-size: 14.0pt; line-height: 107%; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="font-family: 'Times New Roman'; font-size: 7pt; font-stretch: normal; line-height: normal;"> </span></span><!--[endif]--><span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">*
* *<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-70295421745505415272014-10-17T13:30:00.000-07:002014-12-14T08:36:11.903-08:00O FUTURO DO LIVRO<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> </span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;"> </span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">9.</span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;"> </span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">O FUTURO DO LIVRO</span><br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ontem (16/10), tive o
prazer de apresentar os meu livros no espaço cultural da FNAC de Cascais: <i>O Contador de Estórias</i> e <i>O
Escultor de Almas</i>. Presentes muitos amigos, assim como autores que editei
em tempos, um encontro que muito me agradou. Quero aqui agradecer a todos os
que me honraram com a sua presença, e à FNAC pela oportunidade desse
evento. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Após a apresentação da nova editora (a 4Estações)
e do autor pela sua diretora, Ione França, coube a mim fazer uma pequena
intervenção sobre o que me levou a escrever e a editar estes títulos, já com
noventa anos, e não antes, no decorrer da minha vida editorial de seis décadas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Curiosamente, enquanto o fazia, surgiu-me uma
pergunta tola: e se fossem livros digitais, como seria o lançamento? Julgo que
não haveria! Ou os leitores sentavam frente a um ecrã gigantesco? Ou todos em
volta de um <i>iPad</i>?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Os lançamentos de
livros já tiveram em Portugal a sua
força comercial e promocional. Comercialmente, hoje para as pequenas tiragens,
as pequenas vendas que proporcionam podem significar algo. Mas para grandes
tiragens (em Portugal isso significa mais de três mil exemplares), mesmo a
extraordinária venda de duzentos exemplares não é importante. Têm algum valor
promocional, mas já lá vai o tempo em que os jornais e as rádios divulgavam razoavelmente
bem todos os lançamentos. Hoje são tantos que os jornais já não consideram como
notícia, a menos que seja de um figurão, como é típico desta cultura de
subserviência portuguesa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Contudo, estas
sessões de autógrafos são ainda uma gostosa festa de amigos, uma oportunidade
para os leitores fiéis conhecerem o seu ‘adorado’ autor, e aproveitarem para
lhe pedirem um autógrafo e trocarem umas palavrinhas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> É curioso como em
mercados livreiros muitíssimo mais pujantes do que o nosso, como por exemplo o
da Inglaterra e dos Estados Unidos, as apresentações pessoais ao público pelos
autores sejam tão frequentes, apesar da gigantesca força da televisão. E como é
sabido nos Estados Unidos, por pressão dos editores e até contratualmente, os
autores prestam-se às célebres ‘leituras’, em livrarias e clubes de leitura,
frequentes e cansativas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Eu, que anteriormente
como editor tantas vezes apresentei os meus autores na FNAC e em outras
livrarias e espaços, fiquei feliz por o ter feito agora das minhas próprias
obras, principalmente pela oportunidade de esclarecer alguns pontos da minha
serôdia trajetória de escritor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Voltando aos livros
de edição apenas digital. Sabemos que muitos, apesar de algum sucesso neste
suporte, não o ultrapassam, nunca são editados em papel. Que outros, pelo seu
sucesso nesse mesmo suporte, ganharam a edição como livros em papel, para venda
no mercado livreiro. Também sabemos que muitos arautos do futuro bramam que o
livro de papel não tem qualquer hipótese
em anos vindouros. Ouvimos até de um dos escritores que mais vende no mundo,
Paulo Coelho, 150 milhões de livros em
papel, e não sei quantos digitais, falar
na última Feira de Frankfurt que editores e livreiros não se atualizaram aos
novos tempos do livro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Com a minha idade, e
se isso acontecer mesmo rápido, isso não me preocupa nem me assusta. No
decorrer da minha vida ouvi que o cinema iria matar o teatro, também que a
televisão eliminaria a rádio e o cinema, que a fotografia tiraria todo o
sentido à pintura, e por aí fora. De facto, a fotografia tem hoje status de uma
apreciada arte e as exposições fotográficas vêm ombreando com as de pintura.
Mas levou um século. A televisão usa o cinema e
fortalece a produção de filmes, pois precisa deles. O teatro não terá o
fascínio dos áureos tempos de Shakspeare, mas está vivo, muito vivo, em todo o
mundo, nos países ricos e nos mais pobres, nos de boa estrutura de teatros,
como nos de menos, como Portugal. Os bons livros são adaptados para o teatro,
para o cinema e para a televisão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Na realidade o que me
assusta não é os jovens lerem apenas <i>e-books</i>
nos seus computadores, <i>iPads, iPhones</i>,
etc. O que me pasma e entristece são os que têm um peixinho num aquário
virtual, que têm de alimentá-lo virtualmente e, não o fazendo, o peixinho
morre. O que me preocupa, e muito, é esses jovens buscarem as namoradas nas
redes sociais. Dispensam o perfume, o
acarinhar de uma pele suave, o magnetismo, os modos, o sorriso e a
lágrima de uma jovem de carne e osso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Lembro de, há mais de vinte e cinco anos, ver um belo,
muito belo, filme <i>(Barbarela</i>) com
Jane Fonda. Ela interpretava, neste filme, com o charme privilégio dos Fonda e
a exuberância e beleza de Jane. O tema era o amor num futuro próximo, em que
‘fazer amor’ consistia em encostar a palma da mão na palma do parceiro, com
direito a orgasmo mútuo, imediato e pleno. Assustei-me muito, temi que esse
futuro acontecesse rápido. Felizmente nunca vi sinais da sua chegada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> É por isso que não
acredito no desaparecimento do livro em papel, com o seu caraterístico cheiro,
seu toque gostoso, sua presença sólida, como quando pegava num livro de Emílio
Salgari ou de Júlio Verne, quando tinha os meus dez anos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Tenho fé de ainda
assistir a muitos, muitos mesmo, lançamentos e de lá sair com algum ou alguns
dos assistentes para beber ou comer algo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">
***<o:p></o:p></span></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-50495278195051347262014-10-15T13:10:00.000-07:002014-12-14T08:38:09.957-08:00A ESCALADA... 'DA ANDES'<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">8. A ESCALADA… DA
‘ANDES’<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Entre o que um jovem
de dezanove anos sonha que será a sua vida futura e, depois, com noventa anos,
relembra da sua vida, há uma diferença abissal. A diferença de um livro de Nora
Roberts para <i>Camorra.<o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Em março de 1948, eu estava preso no Forte de Caxias,
incomunicável, e estava muito longe de imaginar que em março de 1953, apenas
cinco anos depois, estaria no Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa, dirigindo
uma editora, de que era sócio. E muito menos poderia pensar que, nesse
entretempo, tivesse vivido na Venezuela e no Canadá, onde, na primeira, dirigi
uma carpintaria e uma fábrica de tijolos, fui vendedor de perfumes e batons,
dono de uma fábrica de caramelos e, por fim,
de uma boa agência de viagens em Caracas e, também, em Montreal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Também poderá parecer estranho a alguns leitores que eu sem
qualquer prática no ramo da edição, sem especialização nas artes gráficas ou em
<i>marketing </i>(que na altura se dizia vendas), sem dominar uma dúzia de
idiomas, sem sequer ter um curso mais afim com a edição do que a Silvicultura,
dizer que criei uma editora a partir do zero, pouco depois de chegar ao Brasil,
como diz o povo “com uma mão atrás e outra à frente”. Será, portanto, natural que
me perguntem: Teve o apoio de algum partido político? De alguma religião? De
algum movimento com este ou aquele programa? De algum mecenas? Casou com mulher
rica? Tinha um bolão de dinheiro guardado?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não, nenhum apoio
institucional. Tão pouco capital próprio. Tinha chegado há pouco mais de um ano
ao Rio… com a quantia “exata” para pagar apenas a renda de um mês de um quarto
de estudante. E posteriormente não ganhei no ‘bicho’ (a lotaria clandestina
brasileira).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Acho que não foi
estranho, apenas miraculoso, apenas o que eu chamo de a ‘força da vida’. Talvez,
sim, muito de ousadia, determinação e perseverança. Passo a contar como
sucedeu.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Poucos meses depois de ter chegado ao Brasil, fui contratado
para dirigir a primeira pesquisa de ‘padrão de vida’ no Brasil, durante muitos
meses. Pesquisa que serviria para determinar os ‘pesos’ dos gastos da população
das classes mais baixas, para determinar o valor do primeiro salário mínimo e
dos seguintes. Uma pesquisa nacional em cujo diretório participavam as dez
principais instituições afins à matéria, como a Fundação Getúlio Vargas (a
principal promotora e a que cedia a logística), o Banco do Brasil, o IBGE, etc.
Os resultados desta pesquisa foram muito elogiados, em livro sobre essa
experiência num país tão grande, pelo Padre Lebret, o notável sociólogo francês,
que concebera essa pesquisa em geral e que elaborou os resultados finais. Nessa
publicação final elogiou o meu trabalho.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Conseguira esse
trabalho por indicação de um amigo da minha infância e juventude, Luís de
Vasconcelos, que era da equipe da revista <i>Conjuntura Económic</i>a, da
Fundação Getúlio Vargas, de quem eu me aproximei de novo ao chegar ao Brasil.
Quando acabou a pesquisa, eu fiquei a trabalhar, como contratado, na <i>Conjuntura
Económica</i>, sem dúvida a melhor e mais respeitada revista dessa matéria no
Brasil.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A certa altura, Luís,
que tinha pegado de um editor um livro para traduzir, mas andava muito sem
tempo para o fazer, pediu-me para me encarregar dessa tradução. Interessou-me
pois era sobre demografia, área de meu interesse, e de autoria de um renomado
demógrafo, Alfred Sauvy (um pequeno livro da coleção <i>Que Sais-je?).</i>
Quando terminei a tradução, o Luís pediu-me para ser eu a ir à editora para
entregá-la. Fui.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A editora era um
departamento editorial da Casa do Estudante do Brasil. Uma instituição
politicamente muito forte, de apoio aos estudantes universitários de todo o
Brasil (carente de universidades nos estados mais pobres). Contudo, essa
editora publicava sem qualquer critério: poesia, discursos académicos, romances
de novatos, enfim, o que entrava pela porta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando o editor, um
homem bastante inteligente, me perguntou o que achava da editora, foi isso
exatamente o que lhe disse, e acrescentei que com a responsabilidade e a imagem
da C.E.B. teria que editar a nível universitário, exatamente como a Presse Universitaire
de France. Um bom exemplo era o livro dessa editora que eu acabava de lhe
entregar, sugestão editorial do meu amigo Luís. Após a primeira exaltação veio
o diálogo que, aliás, se prolongou até à meia-noite, quando fechou a leitaria
onde acabámos por ir para continuar o diálogo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Conversa vai, conversa
vem, ele desafiou-me para eu o ajudar como empregado na direção da editora.
Repliquei que sim, que poderia dirigir totalmente a editora da C.E.B., sem salário
(não havia propriamente um salário, mas uma gratificação anual para o diretor,
da qual também abdiquei). Contudo, coloquei três condições: lº - Ele continuava
‘oficialmente’ como diretor, mas na prática como conselheiro; 2º - Eu teria
liberdade total para dirigir aquela editora; 3º - Nós criávamos uma editora
comercial, paralela, usando as fracas estruturas existentes.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Tive coragem para
fazer esta proposta porque percebi que ele poderia interessar-se por ela, pois
tinha ido para São Paulo, por razão da filha ser surda-muda e necessitar de frequentar
o Instituto Helen Keller, e lá ter montado uma gráfica para viver, apesar de
ser advogado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ele propôs um outro
sócio, amigo dele, um renomado cirurgião diretor de um hospital, mas com muito
trânsito na área bancária, pois era mineiro (de Minas Gerais) e, então, todos
os bancos fortes que operavam no Rio eram mineiros. Acordado: três sócios com
quotas em partes iguais… e a realizar. Assim nasceu, no início de 1953, a
Editorial Andes. A parte editorial e comercial ficava a meu cargo, a
administrativa do outro sócio, o Dr. Lavigne, uma das melhores pessoas que
conheci.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Nesse tempo eu também
trabalhava, à noite, na redação de um jornal vespertino, tabloide, e a minha
função era preparar a página de política internacional, política essa que não
interessava muito aos brasileiros, na época. Eu apanhava as longas fitas de
papel que saíam continuamente do Telex e serpenteavam pelo chão, selecionava o
noticiário a publicar, traduzia e enchia a página que me cabia. E ganhava uns
trocados. Era uma ocupação muito agradável pela boa camaradagem, tanto na
redação como nos ‘botecos’ da Lapa, onde
se localizava o jornal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Estávamos em plena
Guerra da Coreia e eram as notícias que enchiam as manchetes e que despertavam
a atenção. Julgando-me já um grande editor, não tive dúvidas, o primeiro livro
lançado pela na nova editora (a Andes) foi <i>A Verdade sobre a Guerra da
Coreia</i>. Neste eu juntara dois grandes artigos publicados numa revista da
especialidade, norte-americana, que cedeu <i>fre</i>e os direitos, e antecedi
com uma longa introdução minha, citando bastante o nosso querido Eça de
Queiroz, que tinha sido embaixador na Coreia. Vali-me da farta correspondência
dele sobre o país, que explicava muito bem as razões do conflito.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O livro saiu em abril
de 1953… pelos caprichos da sorte exatamente na semana do armistício e, claro,
ninguém mais queria saber a tal <i>Verdade</i> e a edição foi um fracasso.
Primeiro round, K-O, para mim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Contudo, aprendi que,
no futuro, não deveria editar livros ‘datados’, e fui em frente. Durante dois
anos construí um catálogo generalista para a Andes, mais forte em três
vertentes: pedagogia, relacionamento humano, cinema. Também aprendi quanto pude
de artes gráficas, na oficina do meu sócio, em São Paulo, e palmilhei, ou seja,
voei, por todo o Brasil para garantir uma distribuição nacional e conhecer a
rede livreira do país, onde consegui muitos bons amigos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> É verdade que viajava
com muito pouco dinheiro e em condições que hoje acho incríveis. Mas conheci
aquele fantástico Brasil, na época uma economia fraca e uma democracia
incipiente. Que importavam as condições para aquele jovem idealista, se ele
conheceu tantas cidades míticas, outras bem menos e atrasadas, mas um Brasil
castiço, que ainda não via televisão e por isso cada região tinha uma
identidade própria. Comi as refeições mais estranhas para mim, dormi em redes
em hoteizinhos para viajantes, voei em aviões quase sucata, de companhias que
faliram mais tarde. Visitava faculdades e livrarias, para conseguir autores e
vendas, fiz amizades que duraram décadas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Paralelamente,
renovei por completo a programação da editora da C.E.B., onde lancei Josué de
Castro (<i>Geografia da Fome, Geopolítica da Fome, </i>etc.),<i> </i>com grande
sucesso; Manuel Bandeira<i> (Guia de Ouro Preto</i>, <i>Apresentaçã</i>o <i>da
Poesia Brasileira</i> e outros); Artur Ramos, o mais renomado antropólogo
brasileiro (trabalhei com a viúva, doente de cama, na preparação da 2ª edição
da sua <a href="https://www.blogger.com/null">obra
mestre</a></span><span class="MsoCommentReference"><span style="font-size: 8.0pt; line-height: 107%;"> </span></span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">, <i>Antropologia Brasileira</i>); Sadoul (<i>A Vida de Carlitos</i>, o
Charlot em Portugal); Adolfo Casais Monteiro, o meu bom amigo, etc. e tal.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Entretanto a relação
comercial Andes-Gráfica (do meu sócio) não ia bem, pois ele sacava letras em
cima de obras ainda a imprimir, o que era ruim. Mas, pior ainda, também em cima
da editora da C.E.B., o que para mim era inadmissível. Assim resolvi
desligar-me da sociedade, numa boa. Recebi a minha parte em livros, que enviei
para Portugal, para os meus irmãos distribuírem. E que foi uma boa experiência
para eles, talvez não financeiramente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Fim de linha para o meu primeiro e esforçado projeto
editorial. O ano de 1955 estava a acabar e eu perguntava-me o que iria fazer.Tinha-me divorciado amigavelmente da minha primeira mulher, ficara com a guarda
dos filhos, ainda muito pequenos, e aguardava um terceiro da minha segunda
companheira.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> ***<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div>
<div>
<div class="msocomtxt" id="_com_1" language="JavaScript">
<!--[if !supportAnnotations]--></div>
<!--[endif]--></div>
</div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-36553976370673341492014-10-12T11:02:00.000-07:002014-12-14T08:39:52.708-08:00O CONTADOR DE ESTÓRIAS<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">7-O CONTADOR DE ESTÓRIAS</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A vaidade é terrível!
Contudo, é um poderoso motor para movimentar os indivíduos. É curioso como os
sentimentos negativos (o ciúme, a vaidade, o despeito, a raiva, o ódio, a
inveja e outros semelhantes) impulsionam mais as pessoas a agir do que os
sentimentos positivos (a bondade, o amor, a compreensão, a amizade, etc.), que
tendem acomodar as pessoas nas suas posições conquistadas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A verdade é que então
(estamos a falar de abril do ano passado), animado pelos elogios de muitos dos
leitores a <i>O Roxo dos Jacarandás</i>, resolvi voltar à minha ideia inicial
de escrever alguns contos. Espremi o meu cansado cérebro e imaginei umas duas
ou três estórias, escrevi as suas sinopses e parti para desenvolvê-las.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Ao longo da minha
vida, de quando em quando, em especial nas noites mal dormidas ou nas
madrugadas preguiçosas, imaginava um conto, um artigo, um guião para um filme,
e, às vezes, não muitas, escrevia uma breve sinopse, a que chamava de
‘esqueleto’ e que guardava numa gaveta, na ilusão ou esperança de que o dia a
aproveitaria. Mas as gavetas mudaram muito, não gosto de guardar papéis, aliás
tenho horror a papéis do passado, e com o tempo tudo foi deitado fora, tantas
foram as mudanças (de países, cidades, casas) que fiz pela vida fora. Gostaria
de ter preservado alguns desses esqueletos, mas talvez de pouco servissem, pois
eram apenas um resumo, em letra ruim, criptografado, que já não daria a ideia
global do que imaginara nalguma madrugada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> É certo que nas
minhas leituras, ao contrário da maioria dos leitores, sempre privilegiei os
contistas, li e reli Tchekov, Gogol, O. Henry, Jack London, Nabokov, Cortázar,
Stefan Zweig, Fuentes, Sepúlveda, Mark Twain, Borges, Fitzgerald, Capote,
etc., etc.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Voltando à minha decisão de escrever contos. Peguei numa dessas
sinopses agora escritas, e era muito pobre, realmente apenas um ‘esqueleto’, e
ao buscar nela o fio da meada achei-me mais perdido do que num labirinto
mitológico. Não dava para me lembrar bem como imaginara a estória completa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O processo passou a
ser sempre o mesmo. Ao pegar na sinopse para iniciar o conto não conseguia
imaginar como desenvolvê-la. Mas, à medida que ia escrevendo e criando ação, os
personagens iam aparecendo, como que convidados para um <i>cocktail,</i>
sentavam ou não, e logo dominavam a cena. Eu ficava feliz, pois era o primeiro
leitor desse meu próprio conto, antes não concebido desta forma, e que a maior
parte das vezes, ao estar terminado, resultava totalmente diferente da proposta
inicial.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Em três meses (abril,
maio e junho) escrevi dez pequenos contos, com os enredos e os personagens mais
diversos. Comecei por inventar um tio, excelente contador de estórias nos
nossos serões familiares, para justificar que eu, agora, tantas décadas depois,
ao recordá-las, me abalançasse a tentar reproduzi-las. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Pensei inicialmente
afirmar ter ganho, do meu pai, uma prenda nos meus quinze anos de um gravador e
que, passados setenta anos, descobri num sótão esse gravador e assim ter conseguido
ouvir as gravações e reproduzir as estórias do meu tio. Mas então perguntei-me:
Havia gravadores portáteis em 1940? Se havia, setenta anos depois teriam alguma
possibilidade de funcionarem ainda? E se sim, as fitas não estariam
irrecuperavelmente deterioradas?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Tive então a noção de
que um escritor tem que ter cuidado com as datas, ou seja, o que elas permitem
ou não. Lembrei-me como para produzir filmes e novelas há sempre uma competente
equipe de pesquisadores e historiadores. E eu, ainda não escritor, não dispunha
de uma equipe de 25 elementos (historiadores, técnicos, advogados,
pesquisadores, especialistas em arte, etc. e tal), como Ken Follett. Como não
estava disposto a perder tempo com averiguações, pura e simplesmente, mudei
para o facto de ter descoberto, nesse tal sótão, um diário da minha juventude e
que nele, obviamente, não figuravam as estórias do meu tio, mas apenas
referências a algumas delas. Assumi, assim, que as estórias eram de minha
autoria.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Comecei com um conto
sobre um touro, ou melhor, sobre touradas (“Miúra”), depois um outro (“ O
Ciúme”), a estória de um ciumento que imagina o que não acontece… e perde a
mulher que ama. A seguir, um conto (“O Velho Marinheiro”) que apresenta um
pintor frustrado que, na busca de pintar um quadro bom como nunca conseguira,
não hesita em sacrificar o seu modelo. O
quarto conto (“O Plágio”) é sobre um outro pintor que, estranhamente, escreve
uma novela… mas que já fora escrita
quarenta anos antes por um escritor estoniano. Passo depois para a estranha
aventura de dois rapazes (“Tia Rosa”) na qual, numa viagem com eles, a sua tia
morre num hotel onde ficaram, e as peripécias deles para levar a defunta para
casa. Mais dois contos pequenos: num (“Professor Napoleão”) um professor
desmemoriado aceita uma intervenção cirúrgica de implante de um <i>chip </i>para
recuperar a memória, e noutro (“Zuluaga”), passado na Venezuela, um careca
total recupera a cabeleira com um elixir doado por um índio, mas não recupera o
índio. No oitavo (“Una Birra Presto”), de que gosto especialmente, onde o
personagem é um rico e empreendedor executivo brasileiro, vindo do nada, que se
acompanha de um sagui, que a certa altura foge para a floresta para copiar o
estilo de vida do seu dono. Apresento então “O Pesadelo”, o encontro de dois amantes nos dias de hoje…
que tinham sido amantes há um século e a descoberta, pelo homem, de algo horrível nesse passado. Acabo com a descrição dos tormentos e
angústia de um preso político (o título é exatamente “O Prisioneiro”), na
prisão do Aljube, no período salazarista, claro. Experiência por mim mesmo
sofrida, numa das vezes em que fui detido pela PIDE.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O volume saiu em julho,
sob o título de <i>O Contador de Estórias</i>,
também em edição digital, não comercial, desta vez de cem exemplares,
pois entretanto tivera que reeditar mais trinta exemplares do “Roxo”. Saiu sob a marca de 4Estações, na realidade
uma edição de autor, não de uma editora, aliás como o primeiro romance.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Sinceramente, acho,
de uma maneira geral, estes contos de boa leitura e interessantes, mas claro
que é uma opinião para lá de suspeita. Ao relembrar alguns autores que li,
pergunto-me “porque escrevo?”, quando a comparação é abissal. Todavia, posso
dizer que foi para mim muito bom, muito estimulante, exercitar a minha
criatividade ao escrevê-los, e que tenciono continuar, publicando ou não.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Apesar do que acima
afirmo, resolvi inaugurar a editora que acabo de criar (4Estações-Editora) com
a publicação destes contos, sem qualquer ilusão de que venha a ser um sucesso
de vendas, conheço bem o mercado. Foi como que uma comemoração dos meus noventa
anos, na intenção de partilhar com desconhecidos aquilo que escrevi com tanto
empenho. Assim, posso ter a veleidade de pensar que, neste exato momento,
alguém esteja a ler essas estórias e a
agradar-se da sua leitura...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Lembram-se como comecei: “A vaidade é terrível!”?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-28697427735896246032014-10-09T09:30:00.003-07:002014-12-14T08:52:18.495-08:00JAZZ E LITERATURA<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">6. JAZZ E LITERATURA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Adoro jazz, como
também a Bossa Nova. Contudo, antes e mais ainda, a música erudita. Enfim, sou
um admirador e um consumidor de música, em geral, desde garoto. Tenho centenas
de CDs de música clássica, de jazz e de bossa nova. Ainda não aderi às novas tecnologias,
meio piratas, mas não por razões éticas,apenas porque deliberadamente não quero saber o como.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando leio livros
escuto música instrumental, e deixo a cantada para leitura de imprensa e outras
ocasiões. Mas hoje quero falar só de jazz. É longa a lista dos meus preferidos,
e variada, mas não <i>up to date</i>, talvez Wynton Marsalis seja o
mais moderno. Os outros são por demais conhecidos: Miles Davis, Dizzy Gillespie,
Count<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:09"> </ins></span>Basie,
B.<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:09"> </ins></span>B.
King, Gill Evans, Duke Ellington, Louis Armstrong, Chet Baker, Charlie Parker
(Bird),Stan Getz,Oscar Peterson, não
na ordem de preferência, como instrumentistas, mas não só. No jazz sinfónico, o extraordinário e
melódico George Gershwin, maravilhoso. Cantores masculinos: Ray Charles, Cole
Porter, mas quase todos os instrumentistas também cantam, como o Gillespie e o
Armstrong. As três melhores cantoras: Mahalia<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:12"> </ins></span>Jackson
(que eu, agnóstico, ao ouvi-la, vejo nitidamente o Deus poderoso ao qual
ela dirige as suas súplicas e agradecimentos),
Dinah Washington e Bessie Smith. A<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:13"> </ins></span>seguir, claro,<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:13"> </ins></span>as mais
celebradas: Ella Fitzgerald,<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:13"> </ins></span>Billie<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:13"> </ins></span>Holiday
e Sarah Vaughan, a que devo acrescentar Aretha Franklin, Hel<strike>e</strike>n<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:14"> </ins></span>Merril, Nina
Simone, Carla Bley e Shirley Horn.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Há algumas semanas,
de volta do Brasil, para enfrentar aquelas longas horas noturnas naquela lata
de sardinhas gigantesca, tão espetacular quanto preocupante, peguei um livro de
bolso de edição brasileira (L&PM) de Julio Cortázar,
uma antologia de contos intitulada <i>A autoestrada do Sul</i>, que como sabem
é um dos seus contos mais emblemáticos, e dos mais loucos, ali incluído.
Um relato de um enorme engarrafamento numa autoestrada para Paris, no qual os
personagens não são tratados pelos seus nomes mas sim pelas marcas dos seus
carros. Reli-o com prazer.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> A agradável surpresa:
um conto dele que eu desconhecia, “O Perseguidor”, onde, apesar de não o citar
pelo nome, mas sim por Johnny Carter,<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:16"> </ins></span>com mestria Cortázar escreve sobre a vida e o génio de Charlie Parker, mais conhecido por <i>Bird</i>. Uma
maravilhosa e extensa análise (é mais uma novela do que um conto) do processo
de criação do referido ‘monstro’ do jazz, da sua obsessão pelo tempo e dos
seus, não poucos, tormentos privados. Passo a citar alguns textos (respeitando
exatamente o estilo e grafia), para vosso deleite:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Diz Bruno, o
narrador, jornalista residente em Paris, onde também se encontra Parker:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">“Ninguém mais sabe quantos instrumentos ele já perdeu, empenhou
ou destruiu. E em todos tocava como acredito que um deus é capaz de tocar sax
alto, supondo-se que os deuses tenham renunciado às liras e flautas.” <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> <span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:23">“</ins></span><span class="msoDel"><del cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:23">”</del></span>Porque
depois da passagem de Johnny pelo sax alto não é mais possível continuar
ouvindo os músicos anteriores e acreditar que são um não plus ultra;<span class="msoDel"><del cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:24"> </del></span>…
Johnny passou pelo jazz como uma mão que vira a página e fim de papo.” <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> “Mas só ele pode fazer
o inventário do que colheu enquanto tocava, e provavelmente já terá passado a
outra coisa, perdendo-se numa nova conje<span class="msoDel"><del cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:24">c</del></span>tura ou numa nova
suspeita. Suas conquistas são como um sonho, ele as esquece ao despertar,
quando os aplausos o trazem de volta, a ele, que está tão longe vivendo o seu
quarto de hora de um minuto e meio.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> “Mas nesse momento,
dono de uma música que não facilita os orgasmos nem a nostalgia, de uma música
que eu gostaria de poder chamar de metafísica, Johnny parece contar com ela
para explorar-se, para morder a realidade que todos os dias se esquiva a ele.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> E as palavras de
Johnny/Charlie: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> “A música me tirava
do tempo. Sei muito bem que isso é só maneira de dizer. Se você quer saber o
que eu verdadeiramente sinto…<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:25"> </ins></span>acho que a música me fazia entrar no
tempo. Só que aí é preciso acreditar que este tempo não tem nada a ver com…
bom, connosco, por assim dizer.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">“…<span class="msoIns"><ins cite="mailto:2921" datetime="2014-12-10T14:25"> </ins></span>se eu conseguisse viver apenas como
nestes momentos, ou como quando estou tocando e o tempo também se altera. Você
dá conta de quantas coisas podem acontecer em um minuto e meio? E aí um
sujeito, não só eu, mas também aquela dali e você e todas as pessoas, poderiam
viver centenas de anos.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">“É um sax incrível, ontem fiquei com a sensação de estar
fazendo amor enquanto tocava. Se você visse a cara da Tica quando acabei. Era
ciúme, Tica?”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Enquanto o ronco das
turbinas ecoava forte lá fora, eu aprofundava-me na leitura e ouvia
nitidamente, de memória, um espetacular solo do <i>Bird,</i> maravilhoso,
envolvente, que me ajudou a ultrapassar o aborrecimento da viagem. Não pude,
claro, deixar de me lembrar do excelente filme <i>Bird</i>, no qual Clint Eastwood
nos apresenta magistralmente, como lhe é habitual, a trajetória de glória e
derrota deste tão infeliz, quanto ímpar, saxofonista.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Vem tudo isto a
propósito de eu querer assinalar, aqui, o poder da escrita e o deleite da
leitura, quando o autor é bom, muito bom como Cortázar. Na realidade ele oferece-nos uma história de vida de Parker, romanceada e
informal mas muito séria, com profundidade e humanidade, desse músico que se
destruía compulsivamente pelas drogas e álcool, enquanto os amantes da sua
música o ouviam bebericando alegremente. Texto que nos permite um melhor
conhecimento desse saxofonista, mas também genericamente do jazz, como música
renovadora e desafiadora, visceral e telúrica, que emanou da revolta e da
esperança, da segregação social e da dor da negritude sofrida através dos
tempos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Sorte para nós, leitores, podermos, com a maior facilidade,
ter acesso a estes textos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
</div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">
***<o:p></o:p></span></div>
</div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-59751147521332633012014-10-05T11:20:00.001-07:002014-12-14T08:53:54.956-08:00O Roxo dos Jacarandás<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">5-</span><span style="font-size: 14pt; line-height: 107%;">O ROXO DOS
JACARANDÁS</span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando em abril do
ano passado enviei a edição digital da minha primeira novela, <i>O Roxo dos
Jacarandás</i>, para os meus amigos e familiares, tive algumas surpresas e
muita indecisão. Surpreendi-me porque muitos dos que o receberam, leram
realmente o livro e, bastantes, declararam ter gostado e lido com prazer. Ao
enviar alguns desses exemplares não esperava que fossem lidos, mas não podia
deixar de os remeter por uma questão de cortesia. Quanto ao elogiarem,
evidentemente que era uma opinião ‘suspeita’ para mim, devido aos laços que nos unem, claro, não que
estivessem deliberadamente a mentir, mas porque, sendo um texto escrito por mim, era lido com benevolência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Escrevi esse romance
em dois meses, não o deixei amadurecer, nem o revi cuidadosamente, portanto não
esperava tão calorosa recetividade. Não, não tem a profundidade de um Joyce, e
talvez isso tenha ajudado ao agrado. Em geral, também agradou muito o facto de
a novela acabar com quatro finais diferentes, pois como durante a leitura o
final era previsto com facilidade, decidi trocar as voltas ao leitor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Nunca mais reli essa
novela e agora, mais de um ano depois, lembro pouco dela e tenho dificuldade em
avaliá-la. Talvez um dia a releia, a amplie, a modifique, ou seja, tente
melhorá-la. Só então decidirei se a publico e a coloco nas livrarias.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Também me surpreendeu
muito descobrir que a maior parte dos lisboetas não sabem o nome dos jacarandás
que tanto embelezam Lisboa, na primavera. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas acabada essa novela, escrita sem muita
determinação, eu perguntava a mim mesmo: porque é que em vez de continuar, como
sempre, a leitura de tantos autores que adoro, e outros que ainda penso
conhecer, deveria continuar a escrever? Sabendo, como muito bem sei, que já não
tenho tempo de vida suficiente para criar leitores. Um escritor leva o seu
tempo, maior ou menor, a conquistar o seu público.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Claro não estamos a
falar dos autores lançados com uma gigantesca operação de <i>marketing</i> e,
que muitas vezes, nem são escritos pelo que aparece como autor. Hoje é muito
mais difícil para um escritor português conseguir emergir no mercado nacional,
perante a enxurrada de lançamentos de títulos que chegam todos os dias às
nossas livrarias, impulsionados por sucesso em outros mercados, de autores de
todos os idiomas, países, religiões e raças.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Antes de me decidir a continuar a escrever, cultivei as
minhas dúvidas hamletianas, até que me decidi a experimentar de novo.
Ocasionalmente, há dias, li em Tabucchi (<i>Viagens e outras Viagens</i>) um
texto muito interessante: “Ao escrever imaginamos ser outro e viver uma vida
diferente. E estar noutro lugar.” E, ainda: “A literatura – disse um poeta – é a prova de que a vida não basta.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Encontrei nestes
textos uma explicação porque desde aí, em treze meses, escrevi mais três
livros, dois livros de contos e um romance. Tempo roubado à leitura e à
exibição de filmes em casa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Mas, voltando a Tabucchi,
sim, acho que quando escrevo viajo dentro de mim, ao meu passado, vivido ou
desejado, ao encontro dos meus amigos e, especialmente, das mulheres que amei,
das pessoas que estimei.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não que eu não viaje
mais geograficamente, não que eu não continue a cultivar a amizade de alguns
bons amigos, não que eu não mais ame intensamente, mas a recordação de uma vida
já tão longa e tão cheia, como da que felizmente beneficiei, inunda-me e dá-me
vontade de mergulhar de novo em mundos já longe, no tempo, no espaço, na
realidade. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Não tenho a veleidade
de escrever, como Neruda, <i>Confesso que Vivi</i>, mas vivi também intensa e
entusiasticamente. E amei muito, muito mesmo, mulheres, crianças, escritores,
poetas, atores, atrizes e realizadores, cidades, pintores, músicos e
compositores e, com persistência, os livros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Além de amar os livros
passivamente, como leitor, amei-os e amo como editor. Abracei entusiasticamente
a arte de editar, a faculdade de levar as mensagens, as ideias, o verbo e o
verso, de outros autores até aos seus leitores. Posso garantir que sempre em
obras bem cuidadas, no texto e na estética, como sempre foi o meu desígnio, o
que, modéstia à parte, consegui.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Recordá-lo faz-me feliz, tentar agora continuar com uma nova
editora será um bálsamo. Esta é a razão
de ter criado agora a «4 Estações-Editora», quatro anos depois de vender a «Vogais &
Companhia». <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Parafraseando Pessoa:
“Editar é preciso.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> ***<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-57095266290428053662014-10-03T09:54:00.004-07:002014-12-14T09:03:48.618-08:00O sedimento das minhas leituras.<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">4. O SEDIMENTO DAS MINHAS LEITURAS<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Ao reler o que escrevi atrás, pareceu-me que dou a entender
que comecei a escrever porque aprendi a trabalhar num computador, e porque este
facilita mais a escrita. Mas não era o que eu queria dizer, é exatamente o
contrário, pois eu comecei a escrever porque, durante décadas, em vez de
navegar na net, li livros, milhares de livros, muitos milhares. Foram essas
leituras que me deram o embasamento para escrever e, talvez, para imaginar
estórias. Li, mal ou bem, os melhores e, talvez, os piores autores, textos
deste ou daquele género, neste ou naquele idioma, que domino bem ou menos bem,
isso não importa. Li os clássicos consagrados e os de sucesso recente,
românticos, policiais, de intriga internacional, humorísticos,ensaios, divulgação
científica, de aventuras, épicos, políticos, de viagens. Não ficção científica
nem biografias, que abomino, pouco de história mundial ou de Portugal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Muitos americanos, possivelmente
tantos como europeus, bastantes espanhóis e sul-americanos, muitíssimos
brasileiros e, razoavelmente, os portugueses. Terei lido mais de seis mil
títulos, o que pode parecer muito, mas afinal leio desde os dez anos, o que até
aos noventa são oitenta anos, bem mais do que quatro mil semanas. Rara a semana
em que não leio um livro, sem contar os fins de semana, em especial os
chuvosos, em que posso ler dois ou três.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O que ficou? Muito?
Pouco? Não sei! A verdade é que hoje ao escrever temo plagiar inconscientemente
um escritor que tenha lido há décadas, um conto, uma ideia, um personagem, um
diálogo, que me tenham marcado bastante, sem sequer conseguir identificar ou
disso ter a noção.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> No meu primeiro livro
de contos, <i>O Contador de Estórias</i>, agora com uma edição comercial, mas
do qual antes encomendei uma pequena edição digital para amigos e familiares,
incluí um conto sobre touradas: “Miúra”. Ao lê-lo, uma amiga alertou-me que
Torga escrevera um conto com título idêntico. Fiquei preocupado, já que fui um
leitor assíduo desse notável escritor português, em especial dos <i>Contos da
Montanha</i>, mas não me lembrava de ter lido algum com este tema e título,
apesar de recordar vários. Corri a comprar uma antologia que incluía esse
texto, e li-o, mas felizmente não há qualquer semelhança. E se eu tivesse
repetido frases ou situações desse conto, 75 anos depois de o ter lido, como
reagiria?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Eu creio que de
cada romance, conto, poema, filme, conferência ou simples conversa, fica sempre
em nós qualquer coisa que se incorpora a um ‘sedimento’ onde se aglutina toda
essa poeira de vagas recordações, sedimento esse que se aloja não sei onde e
que não é estático. Dizia Neruda, em <i>Confesso que Vivi: “</i>Estas memórias
ou recordações são intermitentes e por vezes fugidias na memória. Muitas das
minhas recordações desvaneceram-se ao evocá-las em pó…”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Claro, lembro-me
perfeitamente de frases, personagens e ideias de livros que li há muito, ou
filmes que vi, contudo esqueci (será?) o que li ou ouvi há semanas ou há muitos
anos. Oiço agora, e nas horas e locais mais inesperados, “Mi compañero se murió
a las cinco de la mañana”, declamado por Maria Barroso, ou, pela voz do saudoso
Villaret: “Vou-me embora pra Pasárgada”. E tudo o mais de Llorca e de Bandeira, que ouvi e li, e gostei, onde
estão?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Também não esqueço,
enternecido, a cena final da mulher dando de mamar ao velho esfomeado, em <i>Vinhas
da Ira</i>, de Steinbeck, nem tão pouco, quase na íntegra, <i>O Capote,</i> de
Tchecov. Fecho os olhos e relembro nitidamente o tenso embarque de Ingrid
Bergman para Lisboa, em <i>Casablanca, </i>assim como vejo o carrinho de bebé
rolar escadaria abaixo em <i>Couraçado Potemkin.</i> Mas onde está tudo o mais
dos filmes que vi ou dos livros que li?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Por vezes, o que eu
já não recordava há muito surge inopinadamente e mistura-se com o que estou a
pensar, ler ou escrever, não por associação de ideias, mas de súbito e sem nexo
algum. Talvez seja o que, na pintura, se chama de ‘Pentimento’, ou seja, por
vezes os pintores pintam um quadro mas, mais tarde, ou porque não gostam dele ou
por não terem tela disponível, pintam outro por cima. Acontece que, com o
tempo, algumas imagens ou cores do
primeiro quadro sobem e invadem a pintura do mais recente, criando imagens
estranhas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Lembro-me agora da
belíssima novela de Lillian Hellman (que deveria ter incluído na relação dos
meus autores preferidos) com o título de <i>Pentimento, </i>um livro de
memórias ficcional. Recordo pouco do texto, tenho que relê-lo, lembro melhor o
filme <i>Júlia</i>, baseado num capítulo desta novela e em uma outra da autora,
e da espantosa interpretação de Vanessa Redgrave e Jane Fonda. Um filme
extraordinário e corajoso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Hellman nesse livro
usa o ‘pentimento’ para explicar a mistura de sentimentos de épocas diferentes,
um texto sublime como toda a prosa dela. Ela foi casada durante trinta anos com
Dashiel Hammett, considerado como o pai do romance policial americano, de que a
obra mais conhecida é <i>O Falcão Maltês</i>, que mereceu várias adaptações ao
cinema, das quais a melhor e mais célebre é a do realizador John Huston e na
qual Bogart desempenha o papel do detetive durão Sam Spade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> ***</span></div>
</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11581660962427872168noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4548782822253776619.post-49841508183336260242014-09-30T14:31:00.001-07:002014-12-14T08:56:50.012-08:00Os Jacarandás de Lisboa<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">3. OS JACARANDÁS DE
LISBOA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Acabadas as listas,
senti-me um potencial usuário de computador. Muito limitado, é certo, pois não
viajo na net nem busco os outros quadradinhos desafiantes e aliciadores do ecrã. Limito-me ao <i>Word</i> e ao <i>Excel</i> e,
claro, a fazer e receber <i>mails</i>. Para mim é uma máquina de escrever
sofisticada, graças à minha ignorância. Mas mesmo assim um mundo novo e amplo
para quem só usava a caneta <i>Bic</i>. Dirão que há manuais, mas esta é o tipo
de leitura que abomino. Além de chatos são mal escritos, pois o são por
especialistas que, por saberem muito, não sabem explicar o simples e não sabem
escrever. Deveriam ser elaborados por um técnico e um literato, claro não um
escritor premiado. Tenho uma coleção de manuais que nunca li, nunca consultei,
da máquina de filmar, da de fotografar, do <i>iPhone,</i> de aparelhos de
televisão, da máquina de barbear, dos carros, etc. Talvez venha a tirar uma
semana de férias só para ler esses manuais, e se quiser estender os meus
conhecimentos aos segredos das máquinas domésticas (de lavar roupa e louça, do
micro-ondas, do aspirador e de muitas outras), necessito de mais outra semana
de férias.<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Certo dia, li num
jornal que um <i>hacker</i> tinha entrado no sistema informático do Ministério
da Marinha Norte-Americana, por certo muito blindado, e que tinha feito o
diabo. Achei engraçado o feito deste David moderno contra um Golias ainda mais
forte do que o bíblico, e daí surgiu-me a ideia de um conto muito simples: um
escritor está a escrever um romance e um <i>hacker</i> entra de quando em
quando no computador dele e muda o texto, piora ou melhora, não interessa.
Claro que o escritor fica intrigado e indignado, mas uma noite tropeça num jarrão que a mulher deixara no meio do
corredor, acorda e constata que é sonâmbulo e que era ele próprio que se
levantava e emendava os seus textos escritos de dia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Em janeiro de 2013, sentei frente ao meu Toshiba e comecei a
escrever o que tinha imaginado. Pouco depois, entra de roldão uma cena de uma
senhora num leito de um hospital, nos momentos finais, rodeada daquela
parafernália de aparelhos, médicos e enfermeiras, hoje habitual e muitas vezes
absolutamente inútil e, até, um esquema mal-intencionado. Descrevi o quadro
como o estava a ver até que percebi, surpreendido, que era a cena que tinha
vivido pouco tempo antes, ao acompanhar o caso do meu irmão Rogério
hospitalizado, nas mesmas condições, que terminou pelo seu falecimento à minha
frente, rosto com rosto, angustiante. O que eu tinha escrito era idêntico ao
que eu tinha assistido e sofrido. Hesitei se continuava ou não, até que
desisti, deixei a estória parada. Não me sentia bem em colocar no papel aqueles
momentos tão traumáticos e tão íntimos. Parecia-me um desrespeito à memória do
irmão que amei muito.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Algum tempo depois
(fevereiro), venci a minha indecisão e voltei ao teclado. Melhorei o texto e
transformei-o num filho que assiste à morte da mãe nessas condições, sendo que
o filho cursava numa universidade inglesa. Continuei com o velório e a
cremação, nas condições a que eu assistira, com bastante perplexidade pelo
atual ritual do culto dos mortos. A seguir apresento o filho na sua dor e desconforto
e, ao mesmo tempo, na sua tentativa de entender a vida do pai, também já
falecido, e da mãe, dos quais ele se afastara tanto, em razão dos estudos, mas
que amara, e com os quais se sentia como que em dívida pelo afastamento. Ao
mesmo tempo, a descoberta paulatina do seu passado e o reencontro com uma
vizinha e amiga de infância, parcialmente incapacitada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Enquanto permanece em
Lisboa, o estudante começa a escrever um romance e também acontecia que alguém
entrava e corrigia o texto dele, ele percebia que melhorava, mas queria
descobrir. (Claro, não vou aqui revelar o mistério.)<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Usei Campo de Ourique
como palco de tudo isto, pois é o bairro onde eu nasci e me criei, onde mora
toda a minha família, e era para eles que eu estava a escrever. Em dois meses
tinha um romance de 160 páginas, do qual mandei fazer uma edição digital de 50
exemplares, para distribuir pelos meus familiares, que são muitos. Decorria
abril de 2013. Assim nasceu <i>O Roxo dos Jacarandás</i>, escolhi este título
porque amo essa árvore, porque acho a sua floração linda e fico muito contente
por, nos anos trinta ou quarenta do século passado, um silvicultor ao serviço
da Câmara ter espalhado pelas avenidas desta Lisboa milhares de Jacarandás, que
em maio florescem e alegram as avenidas ditas novas e o Parque Eduardo VII, e a
Feira do Livro, que lá ocorre por essa data.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Quando peguei no
primeiro exemplar, achei-o bonito e gostoso, mas principalmente senti que
nascera o escritor serôdio DeMoura.
Tinha eu 89 anos. Pouco me importava se o texto era piegas ou menos bem
escrito, que expressões brasileiras ferissem os ouvidos sensíveis dos leitores,
afinal todos amigos ou familiares.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> Tinha consciência que
a minha novela estava a anos-luz de dezenas de grandes escritores preferidos
que toda a vida li desde novo: Zola, Fitzgerald, Tolstoi, Tchecov, Hemingway,
O’Henry, Dickens, Durrel, Victor Hugo, Zola, Gogol, Jack London, Dos Passos,
Steinbeck, Dostoievski, Martin du Gard, Conrad, Remarque, Mark Twain, Moravia, Óscar
Wilde, Stefan Zweig, Thomas Mann, Faulkner, Axel Munthe, Saint-Exupéry e
outros. Sem falar nos mais recentes, como Kundera, Yourcenar, Auster, Amis, Capote, Duras, De Lillo, Henry Miller,
Nabokov, Anaïs Nin, Virginia Wolf, etc. Nem citei os sul-americanos, de que
bastaria nomear Garcia Marquez, Vargas Llosa, Sepúlveda, Borges, Bolaño, Cortázar,
Carpenter, Neruda, Rulfo, Fuentes e Paz. Não, não esqueci os portugueses e
brasileiros, Lídia Jorge, Cardoso Pires, Jorge de Sena, Eça, Torga, Namora, Redol, Aquilino Ribeiro, Pereira
Gomes, Ferreira de Castro, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Machado de Assis,
Jorge Amado, Ruben Fonseca, Saramago, Ubaldo Ribeiro e, obviamente, Clarice
Lispector, Érico Veríssimo, Dalton Trevisan, e o múltiplo Pessoa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> O que eu quero dizer
é que tinha a consciência do absurdo que seria pensar em publicar normalmente
essa novela, perante a lembrança muito forte da leitura desses excelentes
autores que li e reli por décadas. Bastaria a recordação de meia dúzia de
obras, como <i>Morte em Veneza, Ana Karenina, O Livro de San Michele, A Oeste Nada
de Novo, Cem Anos de Solidão, Olhai os Lírios do Campo</i> ou <i>Brekfast at Tyfany’s,</i>
para ter a noção do abismo entre essas obras e a minha modesta novela e, desde
logo, decidir que não a publicaria para o público em geral.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;">Mas, a verdade é que gostei muito de escrever, de criar
personagens, manejá-los como se eu fosse um Deus da Mitologia Grega, com
poderes de decidir a vida das criaturas, fazê-las amar ou odiar, viver ou
morrer, rir ou chorar. Só imaginar… e teclar. Foi gostoso imaginar cena a cena,
diálogo a diálogo, e no meio da noite, mentalmente, alterar tudo, e ficar com
vontade de me levantar para escrever. Envolvi-me muito, e foi um lenitivo
magnífico, até porque nesse tempo estava enfrentando uma ação judicial, por mim
iniciada, mas que me tumultuava bastante devido à delonga e injustiça.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 14.0pt; line-height: 107%;"> ***<o:p></o:p></span></div>
</div>
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