DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

sábado, 31 de janeiro de 2015

A CASA DOS HORRORES

21.   A CASA DOS HORRORES
 Com este título li uma notícia na Visão (edição de 15/1/2015), da qual transcrevo parte: «Depois de ter acolhido presos de foro eclesiástico (até 1820), mulheres presidiárias, presos políticos do fascismo, e novamente condenados por delito-comum, a antiga prisão do Aljube, em Lisboa, vai, enfim, receber… visitantes. Tristemente celebrizada… pelas tenebrosas torturas aí perpetuadas, durante os interrogatórios da PIDE, este sinistro edifício histórico pelo menos não vai “para” condomínio de luxo.», como o foi o edifício sede da PIDE na rua António Maria Cardoso, onde não foram cometidas menos atrocidades. A notícia acrescenta: “Será, sim, convertido em espaço de memória, evocação da liberdade e da resistência à ditadura.”
    Após duas décadas sem visitar Portugal por ter emigrado, voltei a Portugal pela primeira vez era Marcelo Caetano Primeiro-Ministro. Claro, o país estava exatamente na mesma, apesar das malogradas esperanças nesse fascista, que eu não entendi porque existiram.
   Voltei de novo depois do 25 de Abril e contava encontrar grandes transformações políticas, sociais e outras. Mas não, não as encontrei, só politiquice. Como antifascista e ex-prisioneiro no Aljube, fiquei admirado por tanto o Aljube como o ignóbil edifício da António Maria Cardoso estarem ‘esquecidos’, ‘arrumados’  no sótão do passado, como tudo o que já não interessa em nossas casas, e como nos antigos romances em que alguém encontrava no sótão embaraçantes cartinhas de amor escaldante e clandestino da querida avozinha.
  Falei com alguns relevantes políticos de então, alguns meus velhos amigos da militância antissalazarista, mas nenhum deles se interessou pela minha proposta de criar nestes dois espaços, ou pelo menos num deles, o Museu da Resistência, ou como quer que se chamasse. Achei ótimo o título que a Visão escolheu: “A Casa dos Horrores”. Enfim, um espaço onde seriam expostas as técnicas e a prática de repressão e de tortura usadas pela PIDE, para permitir às gerações futuras tomarem conhecimento da história do país durante as quatro décadas do salazarismo e evitar o esquecimento dos horrores cometidos. Nada mais do que de semelhante foi concretizado em vários países democráticos.
  Voltei várias vezes a Portugal, para acompanhar os meus pais nos seus últimos anos de vida, e cada vez mais constatava que os crimes do fascismo eram tabu, deles não se falava, deles queriam apagar o acontecido pois ao mexer nisso algo poderia respingar para alguns dos do antigo regime que descaradamente já ocupavam cómodas poltronas administrativas. A classe política do país ‘dos brandos costumes’  decidira branquear o salazarismo e todos os seus crimes contra as pessoas físicas e contra o país, que o atrasaram em quarenta anos em relação aos demais da Europa democrática.
  Eu sei que na Espanha aconteceu o mesmo e com mais determinação, e que de cada vez que apareceu algum movimento no sentido de uma averiguação séria e de uma divulgação pública e de punição criminal, foi de uma forma ou outra podado. Foram encobertos e escamoteados do povo os terríveis crimes do franquismo, ocultados tantos assassinatos de inocentes, tanta crueldade contra os inimigos, afinal os legítimos representantes do povo, tantos roubos de filhos à suas chorosas mães, tantas apropriações de bens indevidas. E quando um juiz espanhol corajoso conseguiu prender Pinochet, quando este visitava Londres, foi aclamado, mas quando o vento mudou e este mesmo juiz Garzon quis averiguar o período franquista, então foi ostracizado pela classe dominante espanhola e afastado das suas funções.
  Num conto que escrevi, “O Prisioneiro”, incluído em O Contador de Estórias (4Estações-Editora), o personagem esteve preso no Aljube tendo depois emigrado e, mais tarde, já após o 25 de Abril, veio visitar Portugal com a mulher e filhos para lhes mostrar as belezas do seu país. Naturalmente não resistiu ao desejo que a família conhecesse a ‘terrível’ prisão de que sempre lhes falara, mas quando se depara com o edifício do Aljube reage assim:
 «Frente ao edifício do Aljube, salta do carro e fica parado a olhar. Não quer acreditar. Está perplexo enquanto, do passeio em frente, fixa as carcomidas e velhas paredes do prédio de que tantas vezes se recorda. Tinham passado algumas décadas e, no seu imaginário, aquele edifício tinha crescido em tamanho e em terror. Agora não é mais do que um prédio feio e degradado.
 O que o espanta é que nada assinala o que nesse edifício se passou durante tantos anos. Não há qualquer indicação de que ali estiveram presos, sem julgamento nem culpa formada, tantos milhares de inocentes e outros tantos corajosos ativistas que lutaram destemidamente contra o regime injusto. Nem uma placa pequena a assinalar. Nada. Para quem passa, é apenas um edifício público anónimo. O prisioneiro pensa que isto representa uma insensível, ou melhor, uma cobarde afronta a tantos que ali sofreram muito.
  Quando ainda no Canadá, imaginava esta visita, estava certo de naquele edifício encontrar um ‘Museu da Repressão’, ou lá como se chamasse, aberto ao público, mostrando as celas terríveis, o ‘parlatório’ em baixo, onde as famílias viam com dificuldade os presos devido a duas paredes de rede que também barravam o contacto, os WC, ou seja, como tudo era quando funcionava como prisão. Ingenuamente, o prisioneiro esperava até ver figuras de cera, de tamanho natural, reproduzindo os carcereiros, os pides e os presos, até os ratinhos e as ratazanas que ali viviam com mais liberdade que os presos.
Não fiques triste, meu querido pai, por as gerações anteriores escamotearem às mais novas períodos negros da história do país, mesmo neste caso em que foi tão longo. Aconteceu o mesmo na Espanha onde branquearam Franco e a cruel Guerra Civil, na França fizeram o mesmo com a rendição e Vichy. E assim foi em tantos outros países.
  A filha, que parecia completamente alheada, coloca a mão no ombro do pai e diz:
Na realidade, só os judeus pugnaram sempre e lutam veementemente até hoje para que o holocausto não caia no olvido, senão seria um episódio esquecido.
  O pai olha para os dois filhos com carinho.»

   Eu não só estive preso lá no Aljube, como muito antes, com 18 anos, ia lá muitas vezes para visitar o meu irmão Rui Moura que foi preso várias vezes, a última por dois anos com mais oito economistas, mas nesta altura eu já não estava em Portugal. Mas naquela a que eu me refiro, em que ele deve ter estado lá mais de seis meses, aconteceu uma situação que vou relatar, apesar de estar ciente de que os leitores não acreditarão. Mas aconteceu, é verdade, e passo a narrar.
  Um dia, ao sair da visita ao meu irmão, um homem de uns trinta anos abordou-me dizendo que queria falar comigo e convidou-me para ir com ele a um café. Estranhei, até porque ele era espanhol e achei-o com ares misteriosos e suspeitos, e decidi não lhe dar conversa. Mas fomos descendo a rua da Sé, a pé e a par, até que para me livrar dele entrei na Igreja da Sé. Estava deserta e eu sentei-me no último banco. O espanhol entrou, sentou-se noutro banco à minha frente e fez-me uma assombrosa proposta: “O seu irmão, é um resistente à ditadura, nós sabemos, e portanto deve cooperar connosco. Bastará  falar com alguns prisioneiros jovens em perigo de serem deportados, conseguir  os  dados pessoais deles, além de outros pormenores documentais, como profissão, se  serviram ao exército, se faziam algum desporto, etc.” Para tal, continuou,  assegurava-lhes que depois da documentação ser examinada e aprovada (na Inglaterra, suponho, mas não foi dito) ‘eles’ tiravam-nos do Aljube com um passaporte britânico. Em contrapartida, esses presos libertados comprometiam-se a alistar-se diretamente no 8º Exército Inglês, que estava a combater no Norte de África, sob as ordens do General Montgomery, contra Rommel, o general alemão apelidado de ‘a raposa do deserto’. Uma batalha feroz!
   O espanhol salientou que a opção era boa para o prisioneiro, pois do Aljube este seria deportado para donde ele viera assim que a PIDE o identificasse com segurança suficiente, e de lá o caminho era o dos campos de concentração, enquanto que se se alistasse no exército inglês poderia morrer, mas talvez não e então viveria livre e com a nacionalidade inglesa. Eu fiquei perplexo e desconfiado, fiquei de lhe dar resposta no dia da visita seguinte, sábado. Era quinta-feira e combinámos o encontro na mesma igreja e à mesma hora.
   Fiquei com medo que fosse uma manobra da PIDE para conseguir os dados que queria dos prisioneiros, mas a minha intuição dizia que o espanhol trabalhava para a resistência dos aliados. Também pensei que podiam querer comprometer o meu irmão e a mim, mas não via a razão, já que o meu irmão tinha sido preso sem qualquer razão, apenas pela suspeita de pertencer ao PCP. Mas, afinal, quem deveria decidir se se arriscava ou não deveriam ser os próprios presos, e não eu. No sábado seguinte, no Parlatório uma sala grande onde as visitas ficavam de pé com os presos em frente delas, mas com uma imensa tela de arame forte e malha grande a separar expus a proposta e os meus medos ao meu irmão e perguntei-lhe o que ele achava. Ele também ficou na dúvida e resolveu falar com alguns dos detidos e expor a proposta, ressaltando-lhes as débeis garantias que nós tínhamos de que fosse um plano decente. Assim, na quinta seguinte dir-me-ia alguma coisa. As visitas só eram possíveis às quintas e sábados.
  Saí, tomei muito cuidado a ver se era seguido, dei umas voltas e contravoltas e entrei na Igreja. O espanhol estava lá, no mesmo banco, e depois de eu lhe dizer a decisão do meu irmão disse que entendia as nossas dúvidas e garantiu que trabalhava para o serviço secreto inglês, que era antifascista e que dois irmãos seus e o pai tinham sido fuzilados pelas tropas de Franco. Marcámos para a quinta seguinte mas não na Igreja, era preferível o miradouro de Santa Luzia.
   Fiquei muito surpreendido quando na visita de quinta-feira ao Rui ele me passou dois rolinhos que disse terem os dados de dois presos que estavam na iminência de serem deportados. Eles sabiam que era prática corrente esse tipo de arregimentação, aliás não só em Portugal como também em Espanha.
     Nem abri os rolos, nem li os nomes. Conforme os recebi entreguei-os ao espanhol, lá no miradouro, falando alto como se estivéssemos a admirar a paisagem. Depois ele marcou um encontro para dali a uma semana, não no miradouro, mas numa esplanada mais acima.
     Por causa de ter ido acampar, só pude visitar o meu irmão na quinta-feira seguinte. O meu irmão estava feliz, na véspera os dois rapazes que tinham dado os nomes tinham sido libertados pela Embaixada Inglesa e já havia muitos mais a quererem candidatar-se ao esquema de alistamento.
  Fui muito eufórico falar com o espanhol na esplanada. Ele estava sentado numa cadeira e pareceu não querer falar comigo. Eu dei umas voltas por ali mas ele nem olhava para mim. Resolvi apanhar o elétrico. Quando subi percebi que ele também subia. Saltei na Rua Augusta e encaminhei-me para o Terreiro do Paço pressentindo que era seguido. O espanhol alcançou-me, ficou um pouco ao meu lado enquanto eu caminhava pelas arcadas e apenas disse: “Já sabes, não é? Apanha mais dados de voluntários e leva-mos à garagem do Parque Mayer na sexta da próxima semana às seis da tarde.
    Na sexta acordada fui ao encontro do espanhol levando comigo três rolinhos que o Rui na véspera me havia passado com cuidado pela tela no Parlatório. Na tal garagem estava o espanhol junto de uma camioneta fechada com altifalantes no tejadilho. Pela propaganda colada na camioneta pareceu-me ser propaganda política ligada ao governo espanhol. Como? Não sei. Apenas sei que repeti esta visita algumas vezes, em todas levando rolinhos, e que muitos dos que haviam entregado os rolinhos ao meu irmão foram libertados, outros não. Dissera-me o meu irmão que os ‘voluntários’ eram principalmente polacos, checoslovacos e austríacos.
  Um dia cheguei à garagem e a camioneta não estava nem o espanhol. Perguntei ao velho que sempre por lá andava, acho que era vigia, pelo espanhol e ele respondeu-me de modo fugidio que o Alonso (até então não sabia o nome do espanhol, e certamente não seria esse) saíra na véspera de madrugada, muito apressadamente. “Para onde?”, perguntei parvamente. “Disse-me que para Espanha”, respondeu encolhendo os ombros.
  Foi com muito desgosto que devolvi ao meu irmão os rolinhos que levara à garagem. O meu irmão olhou-me com lágrimas nos olhos e com voz embargada indagou: “E o que vou eu dizer-lhes?”, “Sei lá, diz que o contacto sumiu, mas que eu vou continuar a tentar, e vou mesmo, talvez o espanhol volte ou venha outro com aquela carripana para fazer o mesmo, ou então o esquema ficou ‘queimado’.” Ficámos os dois calados muito tempo, a olhar um para o outro sem capacidade de falar de tão emocionados. Eu estava muito pesaroso de ir desiludir aqueles três, certamente já confiantes na libertação. Mesmo que fosse para as areias escaldantes do Norte de África, para combater, sempre seria muito melhor do que um campo de concentração.
  A partir daí interessei-me muito em ver filmes e a ler livros sobre essa campanha africana que afinal Montgomery ganhou. Eu tinha participado um pouco, pensava para comigo, conseguira uns 12 ou 15 ‘voluntários’, e salvei a vida a alguns deles. E ficava muito satisfeito comigo pelo que conseguira com perseverança.
   Hoje penso que fui muito temerário, que coloquei o meu irmão em grande risco de a PIDE descobrir. E o esquema poderia ser um logro, mas felizmente não era. Uma cartinha da irmã de um dos presos assegurou de forma enigmática que o amigo estava a salvo. Não tanto, claro, o exército nazi estava muito bem equipado.
  Quem era o espanhol? O que era aquela camioneta? A verdade é que os dados eram transmitidos e recebidos muito rapidamente. Certamente teria um transmissor potente para se comunicar. E porque é que na Embaixada, apesar da minha insistência, ninguém se prontificou a receber esses dados e a conseguir os passaportes para a libertação? Ao contrário, receberam-me como a um lunático. Depois li Graham Greene e aquele comportamento passou a fazer sentido. Mas talvez seja apenas porque a literatura consegue ser para mim mais real do que a realidade.
                                                    * * *
 


4 comentários:

  1. Um tema forte que merece ser divulgado. Parabéns.

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  2. Boa tarde.
    O meu nome é Marina Ferreira e sou licenciada em Línguas e Estudos Editoriais.
    Esta tarde tentei enviar o meu curriculum face a um anúncio da editora Castor de Papel para um posto de assistente editorial, mas o endereço info@castordepapel.pt aparece como incorreto no momento de enviar o email.
    Gostaria de saber como posso enviar o meu curriculum em formato digital para vossa apreciação.
    Cumprimentos, Marina

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