21. A CASA DOS
HORRORES
Com este título li uma
notícia na Visão (edição de
15/1/2015), da qual transcrevo parte: «Depois de ter acolhido presos de foro
eclesiástico (até 1820), mulheres presidiárias, presos políticos do fascismo, e
novamente condenados por delito-comum, a antiga prisão do Aljube, em Lisboa,
vai, enfim, receber… visitantes. Tristemente celebrizada… pelas tenebrosas
torturas aí perpetuadas, durante os interrogatórios da PIDE, este sinistro
edifício histórico pelo menos não vai “para” condomínio de luxo.», como o foi o
edifício sede da PIDE na rua António Maria Cardoso, onde não foram cometidas
menos atrocidades. A notícia acrescenta: “Será, sim, convertido em espaço de
memória, evocação da liberdade e da resistência à ditadura.”
Após duas décadas
sem visitar Portugal por ter emigrado, voltei a Portugal pela primeira vez era
Marcelo Caetano Primeiro-Ministro. Claro, o país estava exatamente na mesma,
apesar das malogradas esperanças nesse fascista, que eu não entendi porque
existiram.
Voltei de novo depois do 25 de Abril e contava
encontrar grandes transformações políticas, sociais e outras. Mas não, não as
encontrei, só politiquice. Como antifascista e ex-prisioneiro no Aljube, fiquei
admirado por tanto o Aljube como o ignóbil edifício da António Maria Cardoso
estarem ‘esquecidos’, ‘arrumados’ no
sótão do passado, como tudo o que já não interessa em nossas casas, e como nos
antigos romances em que alguém encontrava no sótão embaraçantes cartinhas de
amor escaldante e clandestino da querida avozinha.
Falei com alguns relevantes políticos de então, alguns meus velhos
amigos da militância antissalazarista, mas nenhum deles se interessou pela
minha proposta de criar nestes dois espaços, ou pelo menos num deles, o Museu
da Resistência, ou como quer que se chamasse. Achei ótimo o título que a Visão escolheu: “A Casa dos Horrores”.
Enfim, um espaço onde seriam expostas as técnicas e a prática de repressão e de
tortura usadas pela PIDE, para permitir às gerações futuras tomarem
conhecimento da história do país durante as quatro décadas do salazarismo e
evitar o esquecimento dos horrores cometidos. Nada mais do que de semelhante
foi concretizado em vários países democráticos.
Voltei várias vezes a Portugal, para acompanhar os meus pais nos seus
últimos anos de vida, e cada vez mais constatava que os crimes do fascismo eram
tabu, deles não se falava, deles queriam apagar o acontecido pois ao mexer
nisso algo poderia respingar para alguns dos do antigo regime que
descaradamente já ocupavam cómodas poltronas administrativas. A classe política
do país ‘dos brandos costumes’ decidira
branquear o salazarismo e todos os seus crimes contra as pessoas físicas e
contra o país, que o atrasaram em quarenta anos em relação aos demais da Europa
democrática.
Eu sei que na Espanha aconteceu o mesmo e com mais determinação, e que
de cada vez que apareceu algum movimento no sentido de uma averiguação séria e
de uma divulgação pública e de punição criminal, foi de uma forma ou outra
podado. Foram encobertos e escamoteados do povo os terríveis crimes do
franquismo, ocultados tantos assassinatos de inocentes, tanta crueldade contra
os inimigos, afinal os legítimos representantes do povo, tantos roubos de
filhos à suas chorosas mães, tantas apropriações de bens indevidas. E quando um
juiz espanhol corajoso conseguiu prender Pinochet, quando este visitava
Londres, foi aclamado, mas quando o vento mudou e este mesmo juiz Garzon quis
averiguar o período franquista, então foi ostracizado pela classe dominante
espanhola e afastado das suas funções.
Num conto que escrevi, “O Prisioneiro”, incluído em O Contador de Estórias (4Estações-Editora), o personagem esteve
preso no Aljube tendo depois emigrado e, mais tarde, já após o 25 de Abril,
veio visitar Portugal com a mulher e filhos para lhes mostrar as belezas do seu
país. Naturalmente não resistiu ao desejo que a família conhecesse a ‘terrível’
prisão de que sempre lhes falara, mas quando se depara com o edifício do Aljube
reage assim:
«Frente ao edifício do Aljube, salta do carro
e fica parado a olhar. Não quer acreditar. Está perplexo enquanto, do passeio
em frente, fixa as carcomidas e velhas paredes do prédio de que tantas vezes se
recorda. Tinham passado algumas décadas e, no seu imaginário, aquele edifício
tinha crescido em tamanho e em terror. Agora não é mais do que um prédio feio e
degradado.
O que o espanta é que nada assinala o que
nesse edifício se passou durante tantos anos. Não há qualquer indicação de que
ali estiveram presos, sem julgamento nem culpa formada, tantos milhares de
inocentes e outros tantos corajosos ativistas que lutaram destemidamente contra
o regime injusto. Nem uma placa pequena a assinalar. Nada. Para quem passa, é
apenas um edifício público anónimo. O prisioneiro pensa que isto representa uma
insensível, ou melhor, uma cobarde afronta a tantos que ali sofreram muito.
Quando ainda no Canadá, imaginava esta visita, estava certo de naquele
edifício encontrar um ‘Museu da Repressão’, ou lá como se chamasse, aberto ao
público, mostrando as celas terríveis, o ‘parlatório’ em baixo, onde as
famílias viam com dificuldade os presos devido a duas paredes de rede que
também barravam o contacto, os WC, ou seja, como tudo era quando funcionava
como prisão. Ingenuamente, o prisioneiro esperava até ver figuras de cera, de
tamanho natural, reproduzindo os carcereiros, os pides e os presos, até os
ratinhos e as ratazanas que ali viviam com mais liberdade que os presos.
— Não fiques triste, meu querido pai,
por as gerações anteriores escamotearem às mais novas períodos negros da
história do país, mesmo neste caso em que foi tão longo. Aconteceu o mesmo na
Espanha onde branquearam Franco e a cruel Guerra Civil, na França fizeram o
mesmo com a rendição e Vichy. E assim foi em tantos outros países.
A filha, que parecia completamente alheada, coloca a mão no ombro do pai
e diz:
— Na realidade, só os judeus pugnaram
sempre e lutam veementemente até hoje para que o holocausto não caia no olvido,
senão seria um episódio esquecido.
O pai olha para os dois filhos com carinho.»
Eu não só estive preso lá no Aljube, como muito antes, com 18 anos, ia
lá muitas vezes para visitar o meu irmão Rui Moura que foi preso várias vezes,
a última por dois anos com mais oito economistas, mas nesta altura eu já não
estava em Portugal. Mas naquela a que eu me refiro, em que ele deve ter estado
lá mais de seis meses, aconteceu uma situação que vou relatar, apesar de estar
ciente de que os leitores não acreditarão. Mas aconteceu, é verdade, e passo a
narrar.
Um dia, ao sair da visita ao meu irmão, um homem de uns trinta anos
abordou-me dizendo que queria falar comigo e convidou-me para ir com ele a um
café. Estranhei, até porque ele era espanhol e achei-o com ares misteriosos e
suspeitos, e decidi não lhe dar conversa. Mas fomos descendo a rua da Sé, a pé
e a par, até que para me livrar dele entrei na Igreja da Sé. Estava deserta e
eu sentei-me no último banco. O espanhol entrou, sentou-se noutro banco à minha
frente e fez-me uma assombrosa proposta: “O seu irmão, é um resistente à
ditadura, nós sabemos, e portanto deve cooperar connosco. Bastará falar com alguns prisioneiros jovens em
perigo de serem deportados, conseguir os dados pessoais deles, além de outros
pormenores documentais, como profissão, se
serviram ao exército, se faziam algum desporto, etc.” Para tal,
continuou, assegurava-lhes que depois da
documentação ser examinada e aprovada (na Inglaterra, suponho, mas não foi
dito) ‘eles’ tiravam-nos do Aljube com um passaporte britânico. Em
contrapartida, esses presos libertados comprometiam-se a alistar-se diretamente
no 8º Exército Inglês, que estava a combater no Norte de África, sob as ordens
do General Montgomery, contra Rommel, o general alemão apelidado de ‘a raposa
do deserto’. Uma batalha feroz!
O espanhol salientou que a opção era boa para o prisioneiro, pois do
Aljube este seria deportado para donde ele viera assim que a PIDE o
identificasse com segurança suficiente, e de lá o caminho era o dos campos de
concentração, enquanto que se se alistasse no exército inglês poderia morrer,
mas talvez não e então viveria livre e com a nacionalidade inglesa. Eu fiquei
perplexo e desconfiado, fiquei de lhe dar resposta no dia da visita seguinte,
sábado. Era quinta-feira e combinámos o encontro na mesma igreja e à mesma hora.
Fiquei com medo que fosse uma manobra da PIDE para conseguir os dados
que queria dos prisioneiros, mas a minha intuição dizia que o espanhol
trabalhava para a resistência dos aliados. Também pensei que podiam querer
comprometer o meu irmão e a mim, mas não via a razão, já que o meu irmão tinha
sido preso sem qualquer razão, apenas pela suspeita de pertencer ao PCP. Mas,
afinal, quem deveria decidir se se arriscava ou não deveriam ser os próprios
presos, e não eu. No sábado seguinte, no Parlatório — uma sala grande onde as visitas
ficavam de pé com os presos em frente delas, mas com uma imensa tela de arame
forte e malha grande a separar — expus a proposta e os meus medos ao meu irmão e
perguntei-lhe o que ele achava. Ele também ficou na dúvida e resolveu falar com
alguns dos detidos e expor a proposta, ressaltando-lhes as débeis garantias que
nós tínhamos de que fosse um plano decente. Assim, na quinta seguinte dir-me-ia
alguma coisa. As visitas só eram possíveis às quintas e sábados.
Saí, tomei muito cuidado a ver se era seguido, dei umas voltas e
contravoltas e entrei na Igreja. O espanhol estava lá, no mesmo banco, e depois
de eu lhe dizer a decisão do meu irmão disse que entendia as nossas dúvidas e
garantiu que trabalhava para o serviço secreto inglês, que era antifascista e
que dois irmãos seus e o pai tinham sido fuzilados pelas tropas de Franco.
Marcámos para a quinta seguinte mas não na Igreja, era preferível o miradouro
de Santa Luzia.
Fiquei muito surpreendido quando na visita de quinta-feira ao Rui ele me
passou dois rolinhos que disse terem os dados de dois presos que estavam na
iminência de serem deportados. Eles sabiam que era prática corrente esse tipo
de arregimentação, aliás não só em Portugal como também em Espanha.
Nem abri os rolos, nem li os nomes. Conforme os recebi entreguei-os ao
espanhol, lá no miradouro, falando alto como se estivéssemos a admirar a
paisagem. Depois ele marcou um encontro para dali a uma semana, não no
miradouro, mas numa esplanada mais acima.
Por causa de ter ido acampar, só pude visitar o meu irmão na
quinta-feira seguinte. O meu irmão estava feliz, na véspera os dois rapazes que
tinham dado os nomes tinham sido libertados pela Embaixada Inglesa e já havia
muitos mais a quererem candidatar-se ao esquema de alistamento.
Fui muito eufórico falar com o espanhol na esplanada. Ele estava sentado
numa cadeira e pareceu não querer falar comigo. Eu dei umas voltas por ali mas
ele nem olhava para mim. Resolvi apanhar o elétrico. Quando subi percebi que ele
também subia. Saltei na Rua Augusta e encaminhei-me para o Terreiro do Paço
pressentindo que era seguido. O espanhol alcançou-me, ficou um pouco ao meu
lado enquanto eu caminhava pelas arcadas e apenas disse: “Já sabes, não é?
Apanha mais dados de voluntários e leva-mos à garagem do Parque Mayer na sexta
da próxima semana às seis da tarde.
Na sexta acordada fui ao encontro do espanhol levando comigo três
rolinhos que o Rui na véspera me havia passado com cuidado pela tela no
Parlatório. Na tal garagem estava o espanhol junto de uma camioneta fechada com
altifalantes no tejadilho. Pela propaganda colada na camioneta pareceu-me ser
propaganda política ligada ao governo espanhol. Como? Não sei. Apenas sei que
repeti esta visita algumas vezes, em todas levando rolinhos, e que muitos dos
que haviam entregado os rolinhos ao meu irmão foram libertados, outros não.
Dissera-me o meu irmão que os ‘voluntários’ eram principalmente polacos,
checoslovacos e austríacos.
Um dia cheguei à garagem e a camioneta não estava nem o espanhol.
Perguntei ao velho que sempre por lá andava, acho que era vigia, pelo espanhol
e ele respondeu-me de modo fugidio que o Alonso (até então não sabia o nome do
espanhol, e certamente não seria esse) saíra na véspera de madrugada, muito apressadamente.
“Para onde?”, perguntei parvamente. “Disse-me que para Espanha”, respondeu
encolhendo os ombros.
Foi com muito desgosto que devolvi ao meu irmão os rolinhos que levara à
garagem. O meu irmão olhou-me com lágrimas nos olhos e com voz embargada
indagou: “E o que vou eu dizer-lhes?”, “Sei lá, diz que o contacto sumiu, mas
que eu vou continuar a tentar, e vou mesmo, talvez o espanhol volte ou venha
outro com aquela carripana para fazer o mesmo, ou então o esquema ficou
‘queimado’.” Ficámos os dois calados muito tempo, a olhar um para o outro sem
capacidade de falar de tão emocionados. Eu estava muito pesaroso de ir
desiludir aqueles três, certamente já confiantes na libertação. Mesmo que fosse
para as areias escaldantes do Norte de África, para combater, sempre seria
muito melhor do que um campo de concentração.
A partir daí interessei-me muito em ver filmes e a ler livros sobre essa
campanha africana que afinal Montgomery ganhou. Eu tinha participado um pouco,
pensava para comigo, conseguira uns 12 ou 15 ‘voluntários’, e salvei a vida a
alguns deles. E ficava muito satisfeito comigo pelo que conseguira com
perseverança.
Hoje penso que fui muito temerário, que coloquei o meu irmão em grande
risco de a PIDE descobrir. E o esquema poderia ser um logro, mas felizmente não
era. Uma cartinha da irmã de um dos presos assegurou de forma enigmática que o
amigo estava a salvo. Não tanto, claro, o exército nazi estava muito bem
equipado.
Quem era o espanhol? O que era aquela camioneta? A verdade é que os
dados eram transmitidos e recebidos muito rapidamente. Certamente teria um
transmissor potente para se comunicar. E porque é que na Embaixada, apesar da
minha insistência, ninguém se prontificou a receber esses dados e a conseguir
os passaportes para a libertação? Ao contrário, receberam-me como a um
lunático. Depois li Graham Greene e aquele comportamento passou a fazer
sentido. Mas talvez seja apenas porque a literatura consegue ser para mim mais
real do que a realidade.
* * *
Um tema forte que merece ser divulgado. Parabéns.
ResponderEliminarMuitos parabéns.
ResponderEliminarTema interessante
ResponderEliminarBoa tarde.
ResponderEliminarO meu nome é Marina Ferreira e sou licenciada em Línguas e Estudos Editoriais.
Esta tarde tentei enviar o meu curriculum face a um anúncio da editora Castor de Papel para um posto de assistente editorial, mas o endereço info@castordepapel.pt aparece como incorreto no momento de enviar o email.
Gostaria de saber como posso enviar o meu curriculum em formato digital para vossa apreciação.
Cumprimentos, Marina