19. PARTIDA. A
GRANDE AVENTURA
Naquele tempo (1949),
uma viagem de avião internacional era inusitada, pelo que foi natural que toda a família fosse ao aeroporto dizer
adeus ao jovem que embarcava já depois da meia noite para Nova York, para um
futuro completamente desconhecido. Hoje,
para mim, uma rematada loucura, mas, então, uma fantástica aventura.
Quando os altifalantes
berraram: “Senhor Mário Mendes Moura, favor dirigir-se ao balcão da Polícia de
Vigilância e Defesa Internacional”, gelei. Contudo, não podia mostrar que ficara preocupado,
principalmente perante a minha mãe e o meu pai,
fiz um sorriso de tranquilidade e
lá fui, com o coração apertado.
No guiché da PVDI, lá
estavam dois pides com a indisfarçável cara de pides. Com um falso sorriso de ingénuo perguntei
porque me chamavam.
— O senhor não vai poder viajar, acho que conheço a sua cara, e este passaporte não me
parece em ordem, preciso de averiguar a
sua ficha lá na sede.
— Mas que ficha? Sou estudante, vou fazer uma viagem de
negócios na Venezuela, para o meu pai que não consegue viajar. Volto antes de
um mês, veja na minha passagem. Tenho visto de trânsito nos Estados Unidos e de
turista na Venezuela, estão aí confirmados e carimbados no passaporte. Está
tudo em ordem.
— Conheço a sua cara, não me engano. Faço plantões lá na sede a
vigiar os que fazem ‘estátua’. Lembro-me bem que, quando foi a sua vez, foi muito engraçadinho ao dizer-me que mais
tarde os meus filhos me iriam ver enforcado nos candeeiros da Avenida da
Liberdade, e se eu não ficava preocupado com isso.
Entrei em pânico,
mas felizmente acho que não o demonstrei. Claro, estive em várias sessões do
que eles chamavam ‘estátua’, nas quais um pide se sentava e nos vigiava para
não nos sentarmos no chão, tínhamos que ficar de pé, andar o mínimo. De duas em
duas horas o pide era revezado e o que chegava vinha sempre com ameaças e
grosserias para nos desmoralizar. O truque era dizer coisas do género das que o
pide agora me acusava.
Se não embarcasse,
adeus à viagem. A António Maria Cardoso informaria que eu estava com residência
fixada em Lisboa e que o meu pedido de passaporte não tinha passado por lá.
Realmente, tinha conseguido o meu passaporte diretamente no Registo Civil
Central, com ordem direta do Capitão Matos, Tesoureiro Geral, nosso vizinho e
que me conhecia desde garoto. Por isso não houvera o trâmite da passagem do
processo pela PVDI.
‘Perdido por cem,
perdido por mil’, pensei. Com a maior naturalidade disse ao polícia:
— Olhe, senhor, pode telefonar para o Capitão José Catela, ou
pedir que a sede o faça, para dizer que o filho do senhor Gil Mendes de Moura
está aqui para embarcar com a documentação em ordem e vocês querem impedir.
— Acha que
vamos telefonar para o Capitão a esta hora?
— É melhor
do que ele amanhã cair em cima de vocês os dois! Telefonem, por favor.
A minha insistência e
a cobardia deles acabou por convencê-los. Com muitas hesitações, troca de
palavras entre os dois, resolveram liberar-me. Eu sabia, por experiência, que
eles tinham mais medo do ‘esquema pidesco’ do que nós, os detidos. Claro está
que o Capitão Catela nem imaginava a existência do meu pai, um pacato
importador/exportador autónomo. Também não sei porque pelo menos não
telefonaram para a sede, talvez por ser tarde, ou por insegurança.
O numeroso grupo
familiar, umas vinte pessoas, sem suspeitar sequer do susto por que eu passara, acolheu-me em
clima de festa e de antecipada saudade,
que afinal duraria duas décadas. Entretanto eu contava angustiado os minutos
para a partida. Claro, não foi sem
emoção que me despedi de todos, rumo a Caracas, via Nova York, voo TWA, com não
muito mais do que cem dólares no bolso.
Fora o meu amigo
António Pedro, de quem eu era padrinho do casamento dele com a minha boa amiga
Glicínia Quartin, que trabalhava na
TWA, a aconselhar-me esse voo, às quintas-feiras e que deveria fazer conexão
na sexta de Nova York para Caracas, pela
AVE. Mas, segundo António Pedro, essa conexão numa acontecia como era prevista
no horário e, neste caso, eu entretanto ficaria por conta da companhia até
acontecer o tal voo semanal para Caracas, provavelmente dois ou três dias mais
tarde.
Quando me sentei na
poltrona do avião senti a alegria de estar em liberdade. Alegria que durou
apenas umas três horas, pois logo anunciaram a descida para o aeroporto de
Santa Maria, aeroporto açoriano construído pelos americanos durante a guerra
para abastecimento dos seus voos intercontinentais, e que passou ao serviço da
aviação civil portuguesa em 1946.
‘Não muito longe da
terrível ilha que albergava a prisão do Tarrafal’, pensava eu aterrorizado. ‘E
se os pides depois comunicaram com a sede e esta contactara com o aeroporto
para onde estávamos a descer, ordenando a minha detenção?’, interrogava-me.
Quando o avião aterrou
fingi estar a dormir para não sair, mas sem resultado, a hospedeira informou-me
de que todos os passageiros, todos, tinham mesmo que sair. Desci do avião e percorri a
pé e preocupado o piso do aeroporto até à gare, nessa época nem se sonhava com
‘mangas. No portão da gare estava um
tipo da Polícia de Vigilância pedindo os passaportes aos viajantes. Entreguei o
meu, claro, e fiquei vagueando pelo salão na certeza de que, ao voltar para o
avião, o pide não me devolveria o passaporte e nem me deixaria embarcar. Um
sofrimento.
Mas felizmente as
minhas preocupações eram infundadas. Era apenas uma rotina e Lisboa dormia. Ao
voltar à minha poltrona jurei para mim mesmo não mais voltar a Portugal
enquanto o regime fosse fascista, com ou sem Salazar.
Nevava à chegada a
Nova York. Era fevereiro. Não tive quaisquer problemas com a Polícia de Imigração
Americana, para minha surpresa. Também não foi surpresa o representante da AVE,
a companhia de aviação venezuelana que garantia a ida para Caracas, informar-me
que não havia voo previsto para Caracas para
aquele dia, nem sequer para sábado. Possivelmente o voo seria no domingo. Confirmariam
o voo diretamente para o hotel, para onde me recambiaram com um voucher para
pagar a estadia, julgo que se chamava ou White Elephant, ou Big Elephant, em Manhattan.
Um hotel do tipo de três estrelas de hoje, não mais de quinze andares, não
longe do Empire Building. Nunca consegui localizá-lo das muitas vezes que
depois visitei aquela cidade. Inexperiente na época nem reclamei da AVE o
pagamento do transporte para a cidade.
Mal acabei o meu diálogo
ao balcão da AVE, uma confusão imensa em razão de muitos outros passageiros na
mesma situação do que eu, afastei-me um pouco do balcão e logo um pretão me disse
algo que não entendi, estava aparentemente de uniforme, e afastou-se arrastando
pelo chão a minha mala (não haviam inventado ainda as malas com rodinhas).
Felizmente deixou-me na fila de táxis e cobrou-me três dólares.
O trajeto para a
cidade maravilhava-me, exultei ao atravessar a ponte que tão bem conhecia de
filmes, mas não achei graça nenhuma quando o táxi estacionou frente ao hotel e
me arrancou uma enormidade de dólares. Considerando os meus recursos, deveria
ter usado ónibus até à Grande Central e só depois usar táxi.
Assim que me
instalei no quarto e usei a casa de banho, vesti os agasalhos de que dispunha e
a gabardine, e saí para me meter na neve. Era puro entusiasmo, Estados Unidos,
neve, Nova York, Manhattan, uma nova vida, julgava que promissora. Quase
rebentava pelas costuras. Num atrelado tomei um chocolate quente com donuts, a delícia das delícias, enquanto
admirava os flocos de neve a flutuarem,
uma novidade para mim.
Independente, rumo a
um país rico de oportunidades, longe de um regime castrador, estava confiante
de que não demoraria a estar ‘muito bem’ e a poder chamar a minha mulher e o
meu filho, com pouco mais de um ano.
No Consulado da Venezuela, em Lisboa, quando
pedi o visto e apresentei o certificado do curso de silvicultura, apesar de
faltar uma cadeira e o estágio, garantiram-me que o governo me doaria terras e
maquinaria e faria empréstimos para eu montar uma exploração agrícola. ‘Como
nos filmes americanos’, pensei, e acreditei, pois estava tudo por fazer na
agricultura da Venezuela. Pobre de mim, não conhecia ainda a descarada mentira
da burocracia sul-americana.
Por dois dias
vagueei pela notável ‘maçã’ e tudo me maravilhava. Tinha direito ao pequeno-almoço
no hotel e nele tratava de fazer as minhas ‘reservas’, como um camelo antes de
enfrentar o deserto. Não era o deserto que eu ia enfrentar mas sim uma
gigantesca, soberba e assustadora cidade. Durante o dia, os muffins, os hot
dogs e os meat balls garantiam-me
a energia a preço módico.
Para quem sempre
vivera em Lisboa, especialmente em Campo de Ourique, com os seus modestos
prédios de quatro andares, a diferença era abissal. A cidade impressionou-me
muito, com os seus arranha-céus, alguns interessantes, o imenso movimento de
pessoas a todas as horas do dia e da noite, a variedade de raças cruzando-se nessas
multidões, o néon das lojas e dos gigantescos anúncios publicitários. Contudo,
o cinema tem o condão de mistificar as cidades, como também de desvirginá-las.
Tantos e tantos filmes haviam criado em mim um forte desejo de conhecer esta
cidade, mas vira tantas e tantas vezes aquelas ruas, prédios e anúncios luminosos,
que estes não me eram desconhecidos.
Estranhamento, eu
que sou friorento enfrentava bem o frio, que este sim, desconhecia. Percorria
as ruas como um andarilho, ou um desesperado vagabundo, lembrava-me de alguns
contos de O’Henry e de Tchecov, entrava o mais possível nos espaços fechados e
olhava tudo como menino frente à montra de uma loja de doces. Lia com atenção
os menus dos restaurantes, o quadro com os preços das entradas nos cinemas (que
variavam de sessão para sessão), espiava o custo das entradas nos museus, e os
meus não-dólares obrigavam-me a sorrir e continuar em frente.
Otimista, prometia a mim mesmo voltar àquela
cidade com dinheiro suficiente para não ter todos aqueles acessos impedidos.
Não sabia ainda que tão poucos anos depois voltaria muitas vezes, mais de uma
dúzia, em condições de usufruir a múltipla e plurifacetada oferta desta babel,
que nunca sossega, nunca dorme, sempre tem algo de novo a oferecer.
Domingo finalmente o
carro da companhia, como tinham avisado, apanhou-me no hotel para me levar ao
aeroporto. O avião com as cores venezuelanas era bem menor do que o da TWA e
não me inspirou muita confiança. Mas o que fazer? Contudo foi um voo tranquilo,
talvez de seis ou sete horas.
Na chegada à Venezuela,
quando me despachei da Imigração em Maquetia, contei os meus dólares, treze.
Perguntei quanto era um táxi para Caracas e após longa discussão a ‘corrida’ ficou
estabelecida em doze dólares. E lá começámos a escalada, do nível do mar até à
cota mil, onde os espanhóis encarrapitaram Caracas. Apenas vinte quilómetros,
mas curvas em declive assustador, uma estrada estreita, realmente empolgante.
Só muito depois foi construída uma autoestrada com arrojados viadutos que
tornam hoje esta viagem um passeio.
O táxi largou-me no centro
da cidade, rodeado de arcadas, uma bela solução para um clima tropical e de
inspiração francesa, copiando a Rue Royal de Paris. Fora nesta praça que tinha combinado
com o meu amigo Daniel Morais o encontro, antes por carta e depois de Nova York
por telegrama, do próprio aeroporto, avisando da hora provável da chegada.
Enquanto esperava
entrei numa ‘Fuente de Soda’, que deduzi tratar-se de uma pastelaria mais moderna,
tomei um delicioso sumo de pera e uma sanduíche de queijo, e lá se foi o meu último
dólar. Mas senti-me feliz, imensamente feliz. Vim a saber depois que parvamente
feliz.
Foi com alegria que
abracei o Daniel, que não demorou a chegar, o meu querido e leal amigo,
companheiro presente mas invisível no Aljube, e depois partilhando a mesma cela
em Caxias. Éramos ambos da Comissão Central do MUD Juvenil e ambos tínhamos
sido presos em 31.1.48 sob o pretexto do MUDJ ter convocado uma manifestação
para esse dia, comemorando uma esquecida data de uma revolução portuense. Ficámos
dois meses em celas distintas no Aljube e depois de muitos interrogatórios, em
que tentaram sempre que um denunciasse o outro, com artifícios e mentiras,
fomos transferidos para Caxias. Apenas os dois numa grande cela, felizmente com
janela, mas suspeitávamos que estávamos sob escuta, pois não encontrávamos
explicação para esta transferência se não fosse esse o objectivo: escutar as
nossas conversas. E foi um martírio, pois os nossos diálogos eram censurados
por nós mesmos, alguma coisa mais confidencial era escrita e depois queimada.
Mas naquele momento,
sob aquele sol radioso e céu azulíssimo, o que importava é que eu tinha uma
vida pela frente em liberdade e, acreditava, cheia de possibilidades.
Naquele país comi o
pão que o Diabo amassou, e não é gostoso, mas foi lá que fiquei adulto. Deixei
de ser ingénuo e sonhador, tornei-me mais pragmático e realista, mas não
canalha, para poder enfrentar a difícil
vida de emigrante e de homem de negócios.
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