DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

sábado, 24 de janeiro de 2015

NA POEIRA DO TEMPO

  20.   NA POEIRA DO TEMPO
  Não sei porque me lembrei agora da viagem (Lisboa/Nova York/ Caracas), de que falei no blogue anterior, feita há já sessenta e seis anos. As recordações são como as nuvens, aparecem subitamente num céu límpido, avolumam-se, por vezes desfazem-se em chuvas, outras somem na profundeza azul do céu. Nem umas nem outras respeitam previsões antecipadas, aparecem e desaparecem a seu belo prazer.
   Imaginem, eu lembrar agora, com noventa anos, essa viagem que fiz com vinte e quatro anos. Certo que foi muito importante, uma virada total na minha vida, mas porque me lembro agora dela, com tanta nitidez e detalhes, tantos anos decorridos?
  Quando olho para o meu passado, e faço-o pouco, as recordações não obedecem nem a uma ordem cronológica, nem à importância emotiva, familiar ou profissional. Vêm porque vêm, e como vêm, vão quando vão.
  Quando comecei a escrever estes blogues o tema a que me propunha era o que os intitulava:  “Encantos e desencantos de um editor”.  Na realidade eu pensava escrever exclusivamente sobre os episódios bons e maus, curiosos ou divertidos, importantes e marcantes da minha  longa  vida de editor (sessenta anos). Mas com o tempo saltaram à minha memória,  e aos meus dedos, algumas cenas que nada têm a ver com a minha vida de editor mas sim com ela em geral. Ou seja na sua sequência alguns blogues revelam a minha trajetória editorial, outros apenas  algo da minha vidinha.
   A realidade é que não é fácil separar essas recordações pois umas interferem nas outras, por vezes são concomitantes no tempo e no espaço, algumas são puramente consequências de anteriores. O meu percurso foi moldado pela minha paixão por livros e viagens e pela vida, num emaranhado do qual emergem hoje cenas marcantes para mim.
Há dias revi mais uma vez o filme  Fany e Alexander,  de Bergman, em que Helena, a matriarca, e que havia sido atriz, diz que na vida representou os mais variados papéis, mas  que sempre continuou igual  a si mesma. Já a nora, Emilie Ekdahl, afirma que durante a sua vida teve que mudar tanto de máscaras que já não sabia quem era.

  Também eu, no decorrer da minha vida, fui forçado a desempenhar diversos papéis mas não mudei nem a minha maneira de ser,  nem a de pensar e agir. Máscaras, não, não usei nunca. Minto, usei sim,  mas só no Carnaval brasileiro onde não conseguimos ser nós, é uma loucura. Mas na vida, mesmo nas piores condições, nunca usei máscaras.
  Desta forma, resolvi não policiar a estrita pureza  em relação ao título do que aqui escrevo, com as antecipadas desculpas para quem não gostar.
 Mas a verdade é que este episódio que agora escrevi, mais do que os anteriores, despertou em mim a vontade de colocar no papel algumas dessas recordações do meu passado, não, claro, porque tenham interesse para os outros, ou valor literário, mas porque vai ser curioso, gratificante, ou não, para mim recordá-las. É óbvio que possivelmente estão diferentes, partes esquecidas e outras adulteradas, involuntariamente ou não, pela ação mágica do filtro do nosso ego e da nossa consciência.
  As lembranças são como o pentimento na pintura, uma paisagem pintada sobre uma outra (porque ao pintor não lhe interessa mais o quadro anterior, talvez por não o achar bom) arrisca a que as imagens inferiores, antigas, subam e alterem as recentes, com resultados extravagantes.
  Para colmatar esses erros e deturpações poderia, claro, deveria até, pesquisar, informar-me com parceiros desses momentos, para evitar muitos dos erros ou omissões, trocas de datas e nomes, até de personagens. Mas decidi que isso não interessa porque não será um livro de memórias, autobiográfico ou histórico. Não é sequer um livro, nem um Diário. Será, sim, como que um filme sem guião, com realizador e atores não profissionais, um filme experimental e neorrealista.
   Não posso dizer se a minha trajetória de vida foi, ou não, prejudicada por ter eu sido um contestatário político, ou por ter sido emigrante   (na Venezuela, no Canadá, no Brasil e, de certo modo,  até em Portugal, no regresso), ou por o meu curso universitário, em termos práticos, ter sido um erro em todos os aspetos, nunca o tendo aproveitado profissionalmente, dele retirei para a vida  a matemática que aprendi e de que tanto gostei. Apesar de tudo isso, considero que fui muito feliz.
   Primeiro, porque os meus pais me proporcionaram uma boa infância e uma família grande e muito unida, e, também, por me terem permitido uma adolescência com muita liberdade e rica em experiências.
  Segundo, porque quando adulto, com esforço e perseverança, e bastante sorte, consegui um rumo profissional muito gratificante, o da edição, no qual tive razoável sucesso. Também porque aproveitei este para viver bem, criar quatro filhos, viajar muito e desfrutar sempre de muita oferta cultural.
  Terceiro, porque a natureza me concedeu o privilégio de uma velhice saudável e lúcida.
   Porém rolei como um seixo no leito de um rio de caudal forte. Mas talvez tenha sido isso que alisou a minha alma e a mente, de tal forma que agora revejo todos esses anos vividos, um a um, mês a mês, semana a semana, hora a hora, e acho que valeu a pena, que posso dizer, sem falsa modéstia, que plantei sonhos dos quais colhi os frutos.
  Conseguirei eu, através destas linhas, escritas sem ordem e sem formalidade, construir um painel variado do que foi essa minha vida, para eu mesmo ver e apreciar. Talvez alguns leitores, que de qualquer forma tenham sido mais chegados a mim, tenham curiosidade de espreitar também para estes textos descontinuados e identifiquem episódios e épocas de que participaram ou que, pelo seu teor, lhes interesse particularmente. Ficaria muito satisfeito.
   Essa probabilidade será possível agora que as redes sociais desfizeram fronteiras geográficas e até pulverizaram as do tempo-memória, transformando o planeta Terra antes compartimentado em países e nacionalidades  agora numa imensa comunidade global.
                                                       * * *


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