20. NA
POEIRA DO TEMPO
Não sei porque me
lembrei agora da viagem (Lisboa/Nova York/ Caracas), de que falei no blogue
anterior, feita há já sessenta e seis anos. As recordações são como as nuvens,
aparecem subitamente num céu límpido, avolumam-se, por vezes desfazem-se em
chuvas, outras somem na profundeza azul do céu. Nem umas nem outras respeitam
previsões antecipadas, aparecem e desaparecem a seu belo prazer.
Imaginem, eu lembrar
agora, com noventa anos, essa viagem que fiz com vinte e quatro anos. Certo que
foi muito importante, uma virada total na minha vida, mas porque me lembro
agora dela, com tanta nitidez e detalhes, tantos anos decorridos?
Quando olho para o
meu passado, e faço-o pouco, as recordações não obedecem nem a uma ordem
cronológica, nem à importância emotiva, familiar ou profissional. Vêm porque
vêm, e como vêm, vão quando vão.
Quando comecei a
escrever estes blogues o tema a que me propunha era o que os intitulava: “Encantos e desencantos de um editor”. Na realidade eu pensava escrever
exclusivamente sobre os episódios bons e maus, curiosos ou divertidos,
importantes e marcantes da minha
longa vida de editor (sessenta
anos). Mas com o tempo saltaram à minha memória, e aos meus dedos, algumas cenas que nada têm a
ver com a minha vida de editor mas sim com ela em geral. Ou seja na sua
sequência alguns blogues revelam a minha trajetória editorial, outros apenas algo da minha vidinha.
A realidade é que
não é fácil separar essas recordações pois umas interferem nas outras, por
vezes são concomitantes no tempo e no espaço, algumas são puramente
consequências de anteriores. O meu percurso foi moldado pela minha paixão por
livros e viagens e pela vida, num emaranhado do qual emergem hoje cenas
marcantes para mim.
Há dias revi mais uma vez o filme Fany e
Alexander, de Bergman, em que
Helena, a matriarca, e que havia sido atriz, diz que na vida representou os
mais variados papéis, mas que sempre
continuou igual a si mesma. Já a nora,
Emilie Ekdahl, afirma que durante a sua vida teve que mudar tanto de máscaras
que já não sabia quem era.
Também eu, no
decorrer da minha vida, fui forçado a desempenhar diversos papéis mas não mudei
nem a minha maneira de ser, nem a de pensar e agir. Máscaras, não, não usei nunca.
Minto, usei sim, mas só no Carnaval
brasileiro onde não conseguimos ser nós, é uma loucura. Mas na vida, mesmo nas
piores condições, nunca usei máscaras.
Desta forma, resolvi
não policiar a estrita pureza em relação
ao título do que aqui escrevo, com as antecipadas desculpas para quem não
gostar.
Mas a verdade é que
este episódio que agora escrevi, mais do que os anteriores, despertou em mim a
vontade de colocar no papel algumas dessas recordações do meu passado, não,
claro, porque tenham interesse para os outros, ou valor literário, mas porque
vai ser curioso, gratificante, ou não, para mim recordá-las. É óbvio que
possivelmente estão diferentes, partes esquecidas e outras adulteradas,
involuntariamente ou não, pela ação mágica do filtro do nosso ego e da nossa
consciência.
As lembranças são como o pentimento na
pintura, uma paisagem pintada sobre uma outra (porque ao pintor não lhe
interessa mais o quadro anterior, talvez por não o achar bom) arrisca a que as
imagens inferiores, antigas, subam e alterem as recentes, com resultados
extravagantes.
Para colmatar esses erros e deturpações poderia,
claro, deveria até, pesquisar, informar-me com parceiros desses momentos, para
evitar muitos dos erros ou omissões, trocas de datas e nomes, até de
personagens. Mas decidi que isso não interessa porque não será um livro de
memórias, autobiográfico ou histórico. Não é sequer um livro, nem um Diário.
Será, sim, como que um filme sem guião, com realizador e atores não
profissionais, um filme experimental e neorrealista.
Não posso dizer se a minha trajetória de vida
foi, ou não, prejudicada por ter eu sido um contestatário político, ou por ter
sido emigrante (na Venezuela, no
Canadá, no Brasil e, de certo modo, até
em Portugal, no regresso), ou por o meu curso universitário, em termos
práticos, ter sido um erro em todos os aspetos, nunca o tendo aproveitado
profissionalmente, dele retirei para a vida
a matemática que aprendi e de que tanto gostei. Apesar de tudo isso,
considero que fui muito feliz.
Primeiro, porque os meus pais me proporcionaram
uma boa infância e uma família grande e muito unida, e, também, por me terem
permitido uma adolescência com muita liberdade e rica em experiências.
Segundo, porque quando adulto, com esforço e
perseverança, e bastante sorte, consegui um rumo profissional muito
gratificante, o da edição, no qual tive razoável sucesso. Também porque
aproveitei este para viver bem, criar quatro filhos, viajar muito e desfrutar
sempre de muita oferta cultural.
Terceiro, porque a natureza me concedeu o
privilégio de uma velhice saudável e lúcida.
Porém rolei como um
seixo no leito de um rio de caudal forte. Mas talvez tenha sido isso que alisou
a minha alma e a mente, de tal forma que agora revejo todos esses anos vividos,
um a um, mês a mês, semana a semana, hora a hora, e acho que valeu a pena, que
posso dizer, sem falsa modéstia, que plantei sonhos dos quais colhi os frutos.
Conseguirei eu,
através destas linhas, escritas sem ordem e sem formalidade, construir um painel
variado do que foi essa minha vida, para eu mesmo ver e apreciar. Talvez alguns
leitores, que de qualquer forma tenham sido mais chegados a mim, tenham
curiosidade de espreitar também para estes textos descontinuados e identifiquem
episódios e épocas de que participaram ou que, pelo seu teor, lhes interesse particularmente.
Ficaria muito satisfeito.
Essa probabilidade
será possível agora que as redes sociais desfizeram fronteiras geográficas e
até pulverizaram as do tempo-memória, transformando o planeta Terra antes
compartimentado em países e nacionalidades
agora numa imensa comunidade global.
* * *
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