13. AS ZEBRAS DE LISBOA
O Rio é chamada de ‘cidade
maravilhosa’, era-o realmente, talvez ainda hoje o seja, mas não tanto como
quando Ary Barroso, na década dos sessenta do século passado, criou o seu hino,
uma linda alegoria à alegria carioca.
Acho que os turistas
que vão pela primeira vez ao Rio deveriam preparar-se cuidadosamente para essa
aventura, como os que vão para certas regiões e têm que se sujeitar a vacinas. Quando
digo ‘preparado’ entenda-se apenas para se arriscar menos e poupar aborrecimentos.
Uma orientação, mínima que seja, sobre táxis, metro, águas, contas de
restaurantes, horários adequados ou, ao contrário, não, não mesmo, para aqui ou
para ali, pontos dos carteiristas, uso de joias, trombadinhas, etc. e tal. O
que serve também para qualquer outra cidade a visitar.
A ‘viagem’ é
atualmente um artigo de consumo obrigatório, diria quase que mais socialmente
(família, amigos, vizinhos) do que de interesse individual. Os que fazem
viagens curtas, conforme as ofertas das agências de viagens, em geral apenas
levam consigo algum pequeno guia ou brochura com informação reduzida de
restaurantes, hotéis e lojas para compras especiais, e breves notas sobre os
lugares interessantes a visitar. Bastará, pois afinal o principal objetivo é o
de fotografar, fotografar tudo, fotografar todos. De máquina fotográfica em
punho, ou iPhone ou iPad, fotografam desde a escada do avião ao
quarto do hotel, sim, também monumentos em passagem rápida, do alto de um
autocarro city seeing, e o grupinho frente a qualquer outro local tido como obrigatório. Mais do que ver, sentir, cheirar e admirar…
fotografar, para depois exibir essas fotos aos vizinhos e, talvez, quando mais
velhos, para que lhes devolvam esfumaçadas recordações da Torre Eiffel ou do
Coliseo de Roma.
Mas há os que planeiam
cuidadosamente as suas viagens para conhecer minimamente um país ou uma região,
as suas belezas naturais e as construídas pelo homem, e o seu povo e a sua
cultura. Para estes as viagens serão cuidadosamente antecipadas com leitura de
bons guias de viagens e livros de arte, quando possível, de romances ou filmes
em que a ação se ambienta nessa cidade. Mesmo assim, e mesmo que a visita seja
mais longa, não será fácil captar totalmente o espírito da cidade. Bairros
modernos e elegantes, onde de dia circulam milhares de pessoas e carros, às
compras ou a caminho dos seus escritórios e lojas, ou de um cinema ou
restaurante, às dez da noite podem estar assustadoramente desertos. Em
compensação, velhos bairros degradados, com pouco movimento e quase só de pessoas
de idade, às onze da manhã, doze horas depois surpreenderá pelas centenas de
negócios iluminados pelos néones publicitários e incrível movimentação dessas
lojas onde se vendem livros, discos, sandes, recordações, artigos esotéricos e
de medicina alternativa, talvez drogas mais ou menos camufladas. Haverá,
também, restaurantes (não faltarão os japoneses, chineses e tailandeses), bares,
sex shops, barbearias… Possivelmente, em algumas ruas, infelizes de vários
sexos e idades oferecem os seus serviços em roupas provocadoras, assim como nalguma
esquina um velho tocará melancolicamente o seu acordéon ou um jovem andrógino
sopra flauta lisa.
Obviamente que as
perspetivas do viajante serão diferentes se vai para Berlim ou Bruxelas,
Amesterdão ou Oslo, Veneza ou Marselha, Paris ou Porto, Viena ou Genebra, Praga
ou Barcelona, Roma ou Milão, São Petersburgo ou Madrid, falando só na Europa.
No Brasil o leque não
será menos aberto. Mas fixemo-nos apenas no Rio. Para mim, o Rio, enquanto
cidade maravilhosa, mais do que uma cidade é, essencialmente, um estado de
espírito, e por isso mais difícil de captar. É a praia (mas determinada praia,
em determinada hora, em determinado sítio), é a cerveja estupendamente gelada e
gostosa (em determinado boteco de uma esquina de Leblon, onde sei que reúnem os
botafoguenses), é o ensaio de uma escola de samba (mas que seja o da Beija-Flor),
é um jogo no Maracaná (de preferência um Fla-Flu), é uma caipirinha com um
amigo em Santa Teresa (ao final da tarde), é o velejar na baía de Guanabara
(sozinho e quando o vento sopra noroeste), é ouvir uma boa sambista (num bar da
Lapa), é passear descontraidamente a ver as montras (claro, em Ipanema), é
passear de mãos dadas com a namorada (nas áleas do Jardim Botânico). É tudo
isso, mas aceitar também o furto do telemóvel da mesa do café ou um pequeno
assalto na rua por ‘pivetes’, assim como a sujeira e a pobreza, num país tão
rico.
Quando eu vivia no Brasil, um amigo viajou para Portugal e
quando voltou eu perguntei-lhe: “Então, gostaste de Lisboa?” Ele olhou-me com
ar feliz e soltou um “muito” entusiasmado. Voltei ao interrogatório: “E de que
é que gostaste mais?” Ele não hesitou: “Das zebras, das passadeiras. É bestial.
Colocamos o pé na primeira lista e os carros param imediatamente. É
fantástico!”
De certo modo, o meu
amigo tinha razão, no Rio só os incautos atravessam as faixas de segurança sem
olhar com atenção para os dois lados. Os prevenidos, por precaução, às vezes
ficam quietos até algum carro mais apressado passar sem ligar a mínima ao
transeunte especado. Ainda me lembro de uma ocasião em que eu e um outro amigo
íamos atravessar uma rua pela passadeira, em Botafogo, ele segurar-me o braço e
exclamar: “Não vás, ele já nos viu!” e olhava atento para um carro que ainda
longe vinha disparado.
Sei de vários
portugueses que visitaram o Brasil e que ficaram admirados por verem, em especial
à noite, os carros a não pararem nos sinais vermelhos. A explicação é simples,
o motorista confronta a possibilidade de levar uma multa por desrespeitar os
semáforos, contra outra de levar um tiro e lhe roubarem o carro.
Quando eu voltei a
Lisboa, nos finais do século passado, estranhei muito a calma e a descontração
com que tantos pedestres avançam nas faixas, sem olhar para os lados e sem
hesitações. Nem com o passar do tempo consegui habituar-me a ver isso, pois continuo
a achar uma temeridade não tomarem a precaução mínima de olhar para os carros,
pois com ou sem listas o motorista pode (mesmo que não deva) estar distraído,
talvez falando no telemóvel, ou, mesmo tentando, não conseguir travar, por
inoperância sua ou do próprio travão.
Hoje acho que esse
atravessar lento e aparentemente descuidado é, realmente, uma ostensiva demonstração
do seu absoluto direito ‘de peão’. Até talvez estejam certos, já que os últimos
governantes se empenharam tanto em abolir muitos dos seus direitos
consolidados, até mesmo os constitucionais. Porque há de um reformado, a quem
‘roubaram’ parte da sua pensão, conquistada com tanto suor e esforço, correr
dos carros quando aquelas listas de zebra lhe garantem o direito de preferência
sobre os veículos. Têm sorte por essa ‘travessia’ não representar cifrões, pelo
que a Troika não se ocupou do assunto.
Por acaso[29211] , lembrei-me agora de um jovem romeno que, fora do expediente, como biscate,
fazia a limpeza da loja onde funcionava a nossa agência de viagens em Londres.
Uma vez, ele confessou-me que ficava na beira do passeio, frente a alguma
passadeira, meio escondido, e quando conseguia a oportunidade jogava-se à
frente de algum carro, de preferência topo de gama, quando o sinal mudava de
verde para vermelho e o carro avançava um pouco na passadeira. Por vezes, algum
chegava a tocá-lo ou quase, logo ele agilmente deitava-se no chão e ficava a
berrar agarrado às pernas. Rapidamente conseguia um acordo de umas boas libras,
pois os motoristas, mesmo sem se sentirem culpados, temiam a possibilidade de
um processo. Quando lhe perguntei se não tinha medo de ser realmente atropelado
e ficar com as pernas quebradas, ele riu e respondeu: “É isso mesmo que eu
quero. Receberia uma alta indemnização e voltava para a minha cidadezinha na
Roménia, talvez até com uma pensão vitalícia.”
As recordações são
como as cerejas, puxamos uma e logo vem uma enfiada delas. Essa loja em Londres
de que falei atrás, a cinquenta metros da Oxford St., tinha uma ampla fachada
toda envidraçada. Uma vez por semana, invariavelmente, verão ou inverno, com
sol ou chuva, um senhor bem velho, a barba e o cabelo de um branco sujo, o
rosto muito vincado de profundas rugas, vestindo uma roupa modesta e já bem
surrada, parava no lado de fora da loja, com um balde e uma espécie de
esfregona de borracha que pousava no chão, e ficava alguns momentos a olhar
para a loja. Como ninguém saía a dizer-lhe alguma coisa, não hesitava, lavava
com capricho e lentamente toda a vidraça, só a parte externa. Ao acabar puxava
de um cigarrinho, acendia-o meticulosamente e ficava a aguardar. Alguém da loja
então saía e dava-lhe já não me lembro quanto. Ele agradecia com um piparote na
pala do boné, mas sem pronunciar uma palavra, e lá se ia com o seu balde e
esfregona. Nunca entrou na loja, nunca pediu licença para lavar a vidraça,
nunca fixou o preço do seu trabalho. Depois da primeira vez, funcionou
pontualmente como um comboio inglês. Lavava algumas outras montras daquela rua,
com o mesmo ritual. Possivelmente estava ilegal e assim, pensaria, driblava as
leis britânicas.
Quando eu via o
velhinho naquela sua faina, invariavelmente me acudia à mente Thomaz, o
inesquecível personagem de A Insustentável Leveza do Ser, de Milan
Kundera. Certo que neste caso, a falta de juventude, encanto, mistério e charme
afastava qualquer hipótese de ‘avanços’ alvoraçados das jovens das redondezas.
Contudo, desde então, por vezes fico tentando adivinhar a nacionalidade daquele
senhor e a razão de todo aquele ritual e sigilo. Teria ele lido o livro de
Kundera? Era Tcheco?
Ainda sobre as passadeiras
de Lisboa. Acho que os génios que decidem de sua implantação nunca conduziram
um carro, nem observaram o trânsito com atenção. Invariavelmente, elas estão
pintadas a uns escassos dois metros das esquinas, o que significa, se é uma rua
onde os carros dobram à direita, em ângulo reto, obrigatoriamente os carros ou
estancam com uma travagem rápida, surpreendidos, ou não conseguem fazê-lo e
avançam na faixa, em risco de atropelar algum pedestre menos ágil. Quando o
motorista consegue parar e é seguido por mais carros, estes atravancam a rua de
onde vêm ao ficarem parados para dobrar, ou para irem em frente, pois no espaço
da esquina à passadeira só cabe, e mal, um carro... e está lá um.
Não é pois por
acaso que o maior número de atropelamentos nas cidades acontece exatamente nas ‘faixas
de segurança’, como o demonstram as estatísticas. E apesar destes números, e
apesar da enormidade de batidas nesses pontos, o serviço de trânsito não
acorda. Porque não pintar essas faixas a pelo menos cinco metros das esquinas?
Além do mais, obrigaria os pedestres a andarem um pouco, o que só lhes faria
bem, e por vezes seriam poupados a um atropelamento. Enfim, os mistérios da
administração pública municipal.
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