DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

27. A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO

 27. A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO
 Quando Marcelo Caetano assumiu o cargo de Presidente do Conselho do Estado Novo, estando ainda Salazar meio-vivo e pensando que ainda era ele quem ocupava esse cargo, houve muitas esperanças na melhoria da situação geral (política, económica e social) de Portugal. Eu fui um dos que me iludi. Ou não, apenas quis justificar para mim mesmo uma visita a Lisboa, apesar da minha jura (quando pisei o avião que me levava para Nova Iorque) de que não voltaria enquanto Salazar fosse vivo.
 Abril de 1970, já haviam passado vinte e dois anos que eu vivia fora de Portugal sem nunca ter voltado, sequer em visita. Vivia, então, no Brasil, mais propriamente no Rio de Janeiro. Convenci-me que seria uma boa ocasião para visitar a família, em especial o meu pai e a minha mãe, felizmente ainda vivos. E ainda os meus irmãos Rogério e Rui, com os quais tinha muita afinidade, assim como a minha irmã Isabel, a mais velha e de quem sempre gostara muito. E ainda havia ‘gente’ a conhecer, sobrinhos e outros familiares por afinidade. Claro que tinha muita curiosidade em rever a cidade em que vivi 24 anos e da qual guardava infinitas recordações com as mais diversas variantes.
 Resolvi viajar sem telefonar ou escrever a anunciar a vinda, pois não estava muito seguro de que a PIDE não me chatearia, o que provocaria preocupações aos meus familiares. Não foi sem alegria que passei pelos controlos da chegada (policiais e alfandegários), como se diz no Brasil, “numa boa”.
 Ao chegar aos táxis e apanhar um, falei com o condutor: “Por favor, Rua da Madalena (onde o Rogério instalava a Livros Horizonte), mas no caminho se não o transtorna dê uma paradinha na Versalhes.” Quando ele lá parou, entrei e pedi ‘uma bica e um queque’. Ao terminar gritei para mim mesmo “Estou em Lisboa!”.
 Para minha surpresa, o prédio da editora não tinha elevador e esta era num terceiro andar. Para mim era quase inconcebível aquela escada íngreme, de degraus pequenos, pelos quais arrastei uma mala de viagem estupidamente grande (até hoje, apesar das centenas de viagens internacionais, não sei viajar com malas pequenas, como manda o bom senso). Finalmente, arfando, toco na porta da editora e uma jovem atende e olha para mim perplexa, pelas roupas e pela mala, possivelmente até pela semelhança com o meu irmão. Quando perguntei por ele, destemidamente ela tentou impedir-me clamando “O Sr. Doutor Moura está em reunião.”. Entrei por ali adentro arrastando a mala e dirigindo-me para de onde ouvia a voz do Rogério. Indelicadamente, abri a porta e não sei o que soou primeiro, se foi um Rogério! ou um Mário! Abraçámo-nos sob o olhar espantado do Padre Felicidade Alves, que só para o conhecer teria justificado a viagem, vim a saber depois, ao conviver com ele.
 Alertado pelo telefone, chegou esbaforido o Rui, verdadeiramente comovido. Verdade que tanto um como o outro me visitaram no Rio, mais do que uma vez. De imediato instala-se uma ‘conferência’ para estabelecer a estratégia do ‘como’ aparecer em casa dos meus pais, sem o perigo de isso causar emoções perigosas, dada a surpresa e a idade deles. O Rui decidiu: “Vamos direto, não acontece nada!” E lá fomos os três e a incrível mala no carro italiano desportivo de que ele tanto se orgulhava.
 Felizmente, tanto a minha mãe como o meu pai não se emocionaram para além de ‘que surpresa’, ‘meu querido filho’, beijos, abraços, lágrimas e risos. Em breve, como que pela magia de um toque de clarim ‘a reunir’, vieram muitos outros parentes (que moravam maioritariamente em Campo de Ourique) e não tardou a ser uma balbúrdia geral. Alguém encomendou ou apanhou salgadinhos e bolos da tradicional ‘Tentadoura’ e a confraternização foi ampla e comovente.
 A folhas tantas, a minha mãe perguntou-me, com aquele tom mais perentório do que interrogativo que as mães sabem tão bem pronunciar: “Então, Mário, amanhã vais visitar os teus tios e tias?” “Não, mãezinha, não é isso que penso fazer, vou querer visitar Cabeda, quero ver como está, vou alugar um carro para ir lá!” A admiração da minha mãe não podia ser maior e logo: “Credo, que pressa em ires lá, se nem o teu tio António lá está há tanto tempo.” Logo os meus irmãos se prontificaram para irmos todos juntos, pois também não iam lá há mais de trinta anos, como eu. Para surpresa deles, e certamente pesar, falei que queria ir só. Logo o Rui me garantiu o carro dele para o dia seguinte (um Alpha, ele sempre teve a mania de carros desportivos). A festa prolongou-se, pois continuam a aparecer autoconvidados que queriam ver o ‘brasileiro’, como já me apelidavam.
 A minha família era muito numerosa e muito unida, boa parte vivendo em Campo de Ourique, outros noutros bairros, mas estavam sempre em contacto uns com os outros. Era uma espécie de tribo e quase todos viviam em Portugal. Assim, eu que me tresmalhara e vivia tão longe e durante tanto tempo fiquei quase como uma figura mítica, ausente, do qual sabiam uma ou outra coisa esporadicamente, e bem estranhas, pois tão depressa estava num país como noutro, estava casado com A ou com B, tinha mais filhos, aqui e ali apareciam notícias sobre as minhas edições e editoras, que também mudavam muito, os livros por mim editados com alguma presença nas livrarias portuguesas, vinham amigos meus do Brasil falar-lhes de mim, relatos contraditórios, etc., etc. Portanto,  era  inesperado e extraordinário eu estar ali, de carne e osso, cabeleira abundante, quase black power, bem bronzeado, roupas informais, espantando tantos sobrinhos que tinham nascido enquanto estava fora e não me conheciam.
Eu não era um extraterrestre, mas vinha de longe, de muito longe, de um país mítico, alguns nem me conheciam, outros tentavam encontrar as diferenças com a imagem do Mário da sua memória de há muito.
Na manhã seguinte não peguei o Alpha, aluguei um carocha (Volsksvagem 1300) amarelão e antes de partir estudei o roteiro num mapa que encontrei no porta-luvas do carro. Lá me orientei para apanhar a estrada nacional, e não esperava grandes alterações nela, pois pelo que vira Campo de Ourique era quase igual a quando lá morava. Nem a cor dos prédios mudara.
 Adoro conduzir, quanto maiores as distâncias, melhor, e quando ao volante sinto-me muito bem e consigo pensar muito. Naquele momento recordava como durante tantos anos imaginei esta tão simples viagem das mais variadas formas. Assim como quando a vida começou a sorrir-me no Brasil, e até mesmo antes, na Venezuela e no Canadá, quando irrealisticamente sonhava que iria enriquecer e realizar o meu sonho: chegar inopinadamente a Cabeda, dirigir-me ao filho do proprietário que se assenhorara da quinta formada pelo meu tio, ou mesmo ao pai dele, o verdadeiro proprietário (seria ainda?) e, como um novo-rico insolente, perguntar-lhe quanto queria pela quinta. E força-lo a vender-ma,  comprá-la por qualquer que fosse preço, e rápido.
 Sonho recorrente e com as mais diversificadas variantes, mas o certo é que me ajudavam a suportar a dura vida de emigrante que suportei nos primeiros cinco anos na Venezuela e no Canadá.
 O que ia fazer com a quinta? Bom, isso não era relevante, o importante era comprá-la, percorre-la devagar e saber que, finalmente, era minha. Lembro de na escola primária ler (no livro de leitura adotado) uma passagem de um romance de Júlio Dinis, creio, na qual um lavrador compra umas terras e quando, logo em seguida, as visita, teatralmente ajoelha-se para beijar a terra finalmente sua. Não era minha ideia imitar o tal lavrador, mas tecia os mais fantasiosos cenários, inclusive o de voltar de vez a Portugal (hipótese que nunca minimamente me atraiu depois de ter emigrado) e dedicar-me à exploração agrícola ou turística da saudosa quinta.
 Por vezes (tantas!), imaginava-me a passear por aqueles campos da quinta de Cabeda, a admirar os jogos da luz do Sol a varrer os trigais e as nuvens em constante transformação; a respirar cheiros tão diversos e tão conhecidos, como o das urtigas ou das azedinhas pisadas ou da seiva do trigo ao se lhe quebrar o caule e, ainda, da mordida num pêssego maduro; a ouvir sons familiares como o coaxar das rãs ou o arrolhar das rolas, ou da enxada a entrar fundo na dura terra, um ruído seco e cadenciado ou o longínquo chiar de um carro de bois; de recordar algum fantástico pôr-do-sol a afundar-se numa imensa e esplendorosa mancha vermelha e amarela, cores que pareciam entrar dentro de mim de tão vibrantes.
 Também, sem qualquer razão, inopinadamente, lembrava-me de cenas fugazes mas que revia com nitidez: o levantar do voo de algumas perdizes quase debaixo dos meus pés, a corrida rápida de uma lebre assustada com a minha presença, uma cobra desovando e de imediato os ovos a se abrirem para deles saírem pequenas cobras, que logo ondulavam fugindo para as suas vidas, borboletas multicolores volteando perante os meus olhos como que a se exibirem, as formigas em seus carreiros carregando enormes pedaços de folhas para a horta dos seus formigueiros, um casal de pintassilgos a carregar pequenos ramos para construir cuidadosamente o seu ninho, ou mais tarde o pai a trazer minhocas para colocar na boca dos filhotes de bico aberto e ávido.
 Os meus olhos com frequência inundavam-se do vermelho das papoulas atrevidas ou do verde das alfaces, do castanho das terras recém-lavradas, das searas de trigo puro ouro, do rosado das peras e do vermelho vivo das cerejas, do roxo das amoras silvestres, como do azul do céu cambiante consoante as horas e até do prateado do luar a pintar árvores e caminhos estreitos.
 Tudo isto estava entranhado em mim, no fundo do meu cérebro ou do meu coração, guardados como num disco rígido que involuntariamente surgiam no ecrã da minha saudade, uma viagem à minha infância. Adorava esses momentos que usufruí ao longo da vida. Agora imaginava revê-los e corria o possível por aquela estrada.
Claro, estes flashs, que nem sei como e porque acontecem, também eram, e são, de paisagens visitadas, quadros de algum museu, rostos de pessoas com quem conversei e habituais ou que apenas vi de relance e me impressionaram, momentos de amor e intimidade, situações chocantes que tenha visto ou nas quais tenho participado, de ninharias e de momentos importantes, que a minha retina fotografou e o meu cérebro arquivou.
 Já estava há bastantes quilómetros correndo pela estrada nacional quando um raio atravessou fulminantemente a minha mente e interrompeu o meu doce sonho de chegar rapidamente a Cabeda. Nesse momento ouvi aquela voz que conheço tão bem, apesar de não saber se é do meu anjo da guarda, do meu alter-ego, de algum familiar no Além ou, simplesmente, da metade  racional, do meu cérebro. Certo é que, desta vez, a voz ressoava furiosa. Parei com dificuldade na berma da estrada (que nessa época era um luxo no que generosamente chamavam de estradas) e ouvi gritar:
“Mário, tu és parvo? Cretino? Ingénuo? Vais à procura de quê? De Cabeda? Qual Cabeda? Aquela onde há mais de três décadas percorrias os campos com a tua cadela Lisboa no teu encalço? És tonto! Achas que isso ainda existe como era? Não percebes que essa Cabeda só existiu, e só existe, na tua cabeça e no teu coração? Não te dás conta do quanto sublimaste essas recordações dessa quinta? O que vais fazer? Dás-te conta que vais destruir as mais belas imagens e recordações do tempo em que eras menino, um menino sonhador e contemplativo? Saberás ou não que quando cavalgavas o Ginga, ou  te deitavas nas colinas de papo para o ar a apreciar o voo dos milhafres, ou ainda quando colhias as melhores e mais doces frutas da tua recordação, esses foram os mais genuinamente felizes momentos da tua vida? Nem as maravilhosas frutas brasileiras, nem as impressionantes paisagens do Canadá e do Brasil ganham, para ti, na comparação. E, contudo, delas também usufruíste bem.”
 Estava parado e sentado no banco do condutor, esmagado por aquele discurso. Saí do carro e olhei em volta. Umas terras não cultivadas, algumas casitas pobres, mal conservadas, muita tralha em volta. Num cercado quatro cabritas olhavam-me como que a troçar de mim. Estavam magras e o pasto era ralo. Uma velha vestida de preto saiu de uma das casas e espalhou algum milho para as galinhas que por ali ciscavam. Quando estas se aproximaram para comer o milho, a velha, com uma agilidade surpreendente, apanhou uma das frangas pelo pescoço e entrou em casa com a bichinha a espernear. Imaginei-a depenada a ferver na panela fumegante, enquanto a velha sorria antecipando o seu filho à mesa.
 Uma fumaça escura chamou a minha atenção para mais longe. Uma fábrica, de quê?, pintada de vermelho escuro, hostil, era a razão. Não muito distantes da fábrica, vários armazéns alinhados faziam supor capoeiras para galinhas poedeiras.
 Não eram campos bonitos, não uma paisagem de postal. A estrada tirara-lhe a imagem singela e a beleza. Agora aquelas terras, por ventura outrora verdejantes, inspiravam apenas amargura e tristeza. Até as árvores que ladeavam a estrada (eu lembrava-me tão bem da sua imponência, sombra e beleza), agora estavam pintadas de branco e com cartazes toscamente  escritos à mão a tinta vermelha pregados nos troncos, a anunciar qualquer coisa. Nalgumas percebi cartazes de touradas em Torres Vedras.
 Perguntei-me apreensivo: “Será que Cabeda também se encheu de casas tristes, galinheiros imensos, fábricas fumarentas? Estarão as suas terras  ao abandono? Talvez nos seus vastos campos o trigo já não ondule dourado? Quem sabe se a horta, agora não trabalhada, foi invadida pelas ervas daninhas? E se cultivam trigo, é debulhado na eira ou naquela máquina infernal? Os carros de bois ainda chiam dolentemente pelos caminhos ladeados de silvas, ou agora são camionetas velhas e ruidosas a correr por eles? Quem trabalha na quinta, permanentemente os habitantes da aldeia ou uns quantos guineenses contratados para tarefas ocasionais, a dormir em tendas improvisadas? E as moças ainda vestem roupas garridas, e entoam canções maliciosas, ou foram trabalhar paras as fábricas do Barreiro?”
 Estas perguntas que me fazia, as imagens que me assaltavam e que via com nitidez, acabaram por me deprimir e acabrunhar.
 Um jeep da GNR parou ao meu lado e inquiriu se o meu carro estava avariado. Não era para ajudar, era evidente a desconfiança e o autoritarismo. A auréola fascista era mais brilhante do que os botões dos seus uniformes.
  Respondi: “Não, sargento, combinei com um amigo encontrar-me aqui com ele, para irmos almoçar em Torres, mas ele não apareceu. Vou-me embora!” “Oiça, não sou sargento, sou tenente, não vê as minhas divisas? É brasileiro?” “Senhor Capitão, estou a visitar o meu país, não entendo nada de patentes, desculpe. Se me dá licença, vou indo!” O Capitão, de tão espantado com a minha desfaçatez, não me impediu de entrar no carro e nem perguntou pela minha carta de condução. Na realidade eu tinha comigo nada menos do que três cartas (do Brasil, do Canadá e da Venezuela), mas não sabia bem se me habilitavam a conduzir aqui.
 Entrei no carro e decididamente segui em frente. Pelo retrovisor vejo que o tal Tenente apontava a chapa do carro. Estranhei que um Tenente se ocupasse destas tarefas de perseguição aos condutores, mas ainda iria ver muito mais para estranhar. Mais adiante parei num café na expetativa da chegada da GNR… que passou acelerada. Quando eles se afastaram entrei no carro, manobrei de volta para Lisboa, pensando almoçar com os meus irmãos um bacalhau com grão.
 Os meus irmãos admiraram-se por ter voltado tão rápido. “Então, não foste a Cabeda, não achaste o caminho?”, perguntaram. Com algum mau humor, respondi: “Não, não fui, e nunca irei, e nem quero falar mais da quinta.”
 E não voltei. Cabeda ainda é para mim, passados que são setenta e cinco anos, o meu shangri-lá. No Brasil tive uma bela fazenda, não sei quantas vezes maior do que a quinta do meu tio. Ao voltar a viver em Portugal, comprei um moinho em ruínas (é o que aparece com outros dois nas pinturas da Batalha do Vimieiro), recuperei-o a preceito, plantei um maravilhoso jardim (mas eram apenas dois mil metros quadrados).
   Quanto de Cabeda no moinho ou na fazenda? Os grilos, os coelhos bravos, o arrulhar das rolinhas, o trovão frente a frente, o cheiro da terra depois das chuvadas, os voos parabólicos das andorinhas? A alegria de ver as árvores a cobrirem-se de folhas, mais tarde de flores e por fim de frutos, ou de ver nos canteiros, onde pouco antes lançámos sementes,  surgirem plantinhas verde-claro e triunfantes? Colher frutas em árvores que antes plantámos esperançosamente, ou apanhar uma rosa no nosso jardim para entregá-la à mulher que amamos?
 Sim, algumas semelhanças. Foi bom? Foi ótimo! A fazenda não era suficientemente lucrativa para os meus gastos. Deixei-a sem a cultivar, ainda é minha, não a visito há décadas, o meu filho cria lá cavalos de trote. O moinho foi uma maravilha durantes dez anos. Depois de alguns roubos e assaltos, vendi-o. Tive pena? Sim! Ponto final.
 Há um poema de Manuel Bandeira que diz: “Vou-me embora para Pasárgada/Lá sou amigo do rei/ Lá terei a mulher que eu quero/Na cama que escolherei/Vou-me embora para Pasárgada.”
 Talvez esteja na hora de eu cantar: “Vou-me embora para o meu sonho/Lá tenho a minha cadela Lisboa/Vou fartar-me de rir à toa/ Vou-me embora para o meu sonho/Lá cavalgarei o burro Ginga/Vou-me embora para o meu sonho!”
                                                       ***




quarta-feira, 18 de março de 2015

26-ROSEBUD

26. ROSEBUD
 As novas gerações na sua maioria não conhecerão O Mundo a seus Pés (1941), em alguns países intitulado Cidadão Kane, do jovem realizador e ator Orson Welles, um filme corajoso, inovador, que desrespeitava a narrativa cronológica e as técnicas cinematográficas de então, um marco na história do cinema, hoje considerado um filme de culto. Se não viram, ou não se lembram, permitam-me recordar o enredo.
 Na hora da morte, o magnata da imprensa norte-americano Charles Foster Kane (um magnífico desempenho de Welles) pronuncia uma última e enigmática palavra: Rosebud. Um jovem jornalista resolve pesquisar no passado obscuro de Kane o que ela poderá significar. Na realidade, o filme retrata o real dono de uma grande cadeia de jornais muito contestado, William Randolf Hearst, que tentou impugnar a exibição, felizmente que sem êxito. Finalmente, Rosebud é apenas um trenó pertença de Kane quando garoto e que nos seus momentos derradeiros recorda-o a ser consumido pelas chamas.
 Se eu tivesse sido um mediático, influente e contestado editor, e ao morrer proferisse uma só palavra, também enigmática, seria: Cabeda. E se por acaso algum jovem e esforçado jornalista tentasse descobrir o que significava, ficaria espantado ao saber que é uma pequena e insignificante aldeia da Estremadura, a meia dúzia de quilómetros de Sobral de Monte Agraço, a cerca de cem de Lisboa.
 Cabeda foi o meu shangri-lá quando era um miúdo, entre os sete e os treze anos. Meu tio António (casado com uma irmã da minha mãe) era meeiro há muitos anos de uma quinta de boa extensão (talvez uns 50 hectares, imagino eu agora) e de boa terra mas com muita pedra. Era sobranceira à aldeia e a água da fonte e do bebedouro, e do lavadouro público, emanava da nascente que alimentava a grande horta do meu tio, a sua principal receita regular, e da qual saíam semanalmente alguns camiões totalmente carregados de legumes dos mais variados, desde o feijão-verde ao agrião, da cebolinha à couve portuguesa, rabanetes, favas e ervilhas.
 Não, não era esta atividade hortícola que me encantava, mas não deixava de ir por lá para arrancar alguma cenoura da terra e comê-la, ou mirar com curiosidade as moças na sua tarefa, e para ouvir o seu canto aberto e alegre, de que gostava. Tão pouco deixava de apurar os ouvidos para as conversas entre elas que eu achava algo ‘picantes’.
 O que me encantava eram os campos de trigo, em especial depois de ceifado, por onde corriam coelhos e lebres, as muitas árvores de fruta das quais colhia as madurinhas, os vastos vinhedos, os muros de pedra solta, a vastidão, os pássaros e borboletas, sapos, rãs e lagartixas que eu perseguia de brincadeira. Nascido e criado em Campo de Ourique, aquele ‘mundo’, aquela vastidão, aquele isolamento, dava-me uma sensação de liberdade. Descobertas e aventuras até então inimagináveis para mim, eram um grande atrativo.
 Os meus pais tinham uma casa arrendada ao ano, na Parede, durante uns 4 ou 5 anos, dos meus 7 aos 11. Contudo, a família toda viajava nas férias grandes, todinha, com gato, canários, papagaio, empregada, no dia 1 de julho para regressar no dia 31 de agosto, impreterivelmente. Durante o resto do ano só lá ia alguém fazer vistoria e limpeza. Apesar de a linha de comboios ser a mesma de hoje, sem muita diferença, e da estação à casa serem poucos minutos, nesse tempo a Parede eram poucas casas em volta da estação e campos, onde eu e os meus três irmãos diabolávamos. Fora do período ‘oficial’ de férias na Parede, no resto do verão e nas mini-férias, como o Carnaval e Páscoa, eu gostava de ir para a ‘quinta’, muitas vezes sozinho, nem com algum dos meus irmãos. O meu pai ou alguém deixava-me na ‘camioneta de carreira’ (era assim mesmo que se dizia) que ia pela Nacional 115 e me largava perto de Cabeda, não sei avaliar a distância, talvez um ou dois quilómetros, sei que uma parte era de ladeira, que enfrentava bem. Por vezes ia por um caminho entre muros de pedras, chão com bastantes lajes, que a lenda popular dizia ser romano.
 A minha felicidade começava ali. À minha espera, rabo a abanar com alegria, a ‘minha’ cadela Lisboa lá estava. Fielmente, nunca falhava. Como? Ninguém sabia explicar, mas quando ela desaparecia à hora da ‘carreira’, a minha tia proferia: “O Mário vem aí!” Eu subia a tal ladeira, passava ao lado da aldeia e alcançava o casarão, que apesar de rente ao caminho não tinha janelas para este e era construída a um nível pouco mais abaixo.
 Ao passar o portão entrávamos numa varanda larga, em pedra, que ladeada os três lados da casa, toda coberta de uma parreira densa de uva de mesa. Dela avistava-se uma paisagem ampla, donde se via boa parte da quinta e, a perder de vista, colinas graciosamente onduladas, com pastos, campos de cultura e pinheirais e, claro, muros de pedra solta demarcando áreas ou propriedades ou caminhos. Ainda hoje consigo fechar os olhos e revê-la, com os seus verdes e castanhos fortes, pequenos fiapos de neblinas mas, predominante, o azul do céu e o manto prata da luz solar. Por vezes, aqui ou acolá, discretas fumaças de alguma chaminé de casa isolada.
 Como disse, da varanda avistavam-se grandes pinheirais nas colinas distantes. Num final de tarde abrasadora aconteceu um pavoroso incêndio num desses pinheirais. Correram homens e mulheres de todas as aldeias em volta para atacar o fogo durante muitas e muitas horas. Já a noite chegara e o fogo ainda não fora dominado. O problema é que não havia água nas proximidades (eu conhecia bem o pinheiral) e o combate era com machados, pás, enxadas… e ramos de árvores. Julgo que o carro-tanque dos Bombeiros Voluntários (de Monte Agraço) não tinha condições de se aproximar muito.
 Da varanda eu olhava abismado como tantos não conseguiam debelar o incêndio e, ao mesmo tempo, surpreendia-me com o espetáculo dantesco, feérico e maravilhoso que admirava confrangido, à distância, sem poder aquilatar o desastre que representava para os donos do pinheiral e o perigo para quem lá estava, naquela luta insana contra as chamas. Além do mais, a minha preocupação era grande porque o meu tio evidentemente que para lá tinha corrido, seguido pelo seu fiel perdigueiro que além das caçadas sempre o acompanhava. Eu gostava muito de ambos e temia o que lhes poderia acontecer. Ao longe só se viam os vultos a correr desesperadamente de um lado para o outro, não se distinguiam os rostos. À noite eram sombras opacas que lembrariam um Teatro de Sombras se não fossem as labaredas por vezes a agigantarem-se afastando para longe os atacantes.
 Há bem pouco tempo tive a oportunidade e o prazer de ler uma obra de António Manuel Venda, Uma Noite com o Fogo, em que ele descreve, com o rigor e a beleza que lhe são peculiares, um incêndio em que ele e o irmão lutam para dominar num pinheiral próprio, na Serra de Monchique. Ao ler aquele belo texto, o pinheiral em chamas que vi em miúdo daquela varanda voltou avassaladoramente à minha memória, com toda a nitidez e grandiosidade. Só então pude realmente aquilatar a tragédia humana, além de ecológica e económica, que representa uma floresta em chamas, que por vezes vemos tão distraidamente nos ecrãs.
 Na casa não havia água canalizada, ela era transportada em grandes recipientes de latão para a cozinha e os banhos. Como eu recordo os banhos numa imensa bacia de latão, e o cheiro da água do banho ao ser despejada sobre a terra fora da varanda! Tão pouco havia eletricidade, além das velas, as candeias a petróleo ou uns candeeiros alimentados por uma pedra que, colocada na água, alimentava a chama, mas soltava um cheiro estranho. Na cozinha dominava uma espécie de lareira em pedra, majestosa, que albergava o fogão a lenha e onde se penduravam chaleiras com água e panelas com sopa. Era o reino da Luiza, que além disso comandava as mulheres na horta. Uma vida de tanto trabalho, sem descanso, mas ela nunca se queixava e tinha muita paciência connosco.
 Os quartos eram espaçosos, alguns com janelas, outros ligados por portas uns aos outros (a velha arquitetura portuguesa!), tetos altos forrados em tabuinhas. Neles eu imaginava as mais incríveis cenas enquanto me deleitava com a maciez dos colchões cheios com ‘camisas’ das espigas do milho. Havia duas salas importantes, uma armazenava em montes nas tábuas do chão batatas, melões, melancias, etc., sempre fresquinha. A outra era a sala de visitas, que praticamente não apareciam, mas se aparecessem lá estavam os móveis da praxe, a grande mesa com cadeirões, os aparadores pretos com serviços de porcelana e naprons, o relógio de pé badalando quando devia. Curiosamente, e nunca entendi  porque ali, uns estradinhos de ripas de madeira pendurados do teto alojavam os queijinhos de cabra ou de ovelha postos a ‘curar’. Ali? Talvez porque a sala mantinha as janelas fechadas e com cortinas, meia obscuridade, por isso não haveria moscas em cimas dos queijos.
 Ao lado da casa, uma área grande em nível bem mais baixo, fechada para a rua e para a quinta por muros, onde eram criados porcos e à noite refugiavam-se cabras e ovelhas. Para lá eram lançadas as frutas já não comestíveis ou em excesso, restos de legumes e cascas, tudo o mais que engordava os porcos grandes e brancos, turbulentos.
 Logo adiante, um comprido e alto casarão, de que a parte final com pouca luz servia para adega, fechada, porta aferrolhada, onde se perfilavam tonéis e barris. Chão de terra, com cheiro forte a vinho, resultado dos restinhos de copos que por lá eram jogados nas provas dos vinhos novos e, claro, na ‘abertura’ da água-pé, acompanhadas com chouriço na brasa. Todos estes cheiros ainda relembro.
 Na parte mais à entrada do casarão era o lagar, mais adiante a estrebaria, onde comiam nas suas manjedouras quatro bois, uma ou duas vacas, uma égua e dois jumentos. A parede lateral que dava para um vinhedo era muito alta, talvez mais de dez metros. Bem no alto, aberturas servindo de janelas, sem vidros, substituídos por algumas barras de ferro, numa das quais faziam o ninho um casal de milhafres. O curioso é que estes nunca atacaram as galinhas e pintos que por ali ciscavam, apesar de percebermos os seus voos mais longe nessa caçada.
 Depois do casarão, um imenso tanque quadrado, com um metro e tal de profundidade, armazenava a água das chuvas utilizada em regas. Para minha alegria hospedava dezenas de rãs que rompiam o ar com o seu coaxar constante. Não devo omitir que muitas vezes tentava atingi-las com pedras arremessadas pela minha fisga quando elas se expunham em cima das folhas de plantas aquáticas. Felizmente para elas, a minha pontaria era deplorável. Penso até que na realidade não queria acertar-lhes, só assustá-las, para ver o pinote que davam.
 Ainda falando dos animais, é muito importante informar que um dos burros, o Ginga, era ‘meu’, claro que meu por decisão minha. A égua era muito alta para mim e meio doidivanas, o outro burro era pequeno e feio, nunca o montava. Já o Ginga era um companheirão. Além de o montar no final da tarde, quando todos os animais eram levados à fonte na aldeia para saciarem a sede, indo eu no cortejo, cavalgando vaidoso o Ginga, tinha várias oportunidades de o montar em pequenas folgas do seu trabalho.
 Certa manhã (nunca o esquecerei!), estava na varanda, o portão para a rua aberto, quando eu vejo boquiaberto uma junta de bois a arrastar pelo chão o Ginga, hirto, de pertas para cima. Sim, isso mesmo, o meu amigão, o Ginga, estava morto, mortíssimo, percebi então. Não acreditava, na véspera, horas antes, tinha cavalgado nele. Foi o meu primeiro contacto com a morte, doloroso, inaceitável, inacreditável, injusto… como sempre o foi para mim aceitá-la, mesmo mais ao longo da vida. Mas eu era uma criança, ingénuo, como aceitar que me roubassem o meu amigo, o meu Ginga? Chorei muito, fiquei desconsolado, quis voltar para Lisboa, tinha-se desmoronado o teto do meu Shangri-lá.
 Eu conhecia perfeitamente toda a quinta, pois andava o dia inteiro de um lado para o outro acompanhado da minha cadela Lisboa. Por vezes carregava um farnel numa tosca mochila de pano e passava horas e horas a percorrer áreas fora da quinta, nas colinas lá ao longe com pinheirais aprazíveis. Depois de comer algumas fatias de pão com pedaços de queijinhos curados de cabra, bebendo depois água pelo meu cantil, deitava-me no chão, em algum amontoado de folhas ou de ervas rasteiras, usava como travesseiro a barriga de Lisboa, que, coitada, mal respirava para não me perturbar, e ficava a contemplar o jogo de nuvens ou o voo majestoso, bem lá no alto, de milhafres e águias. Ou o menos bonito e mais ruidoso dos corvos. Será que sobreviveram até hoje?
 Na quinta conhecia as mais saborosas árvores de fruta e as uvas mais apetitosas, de que dia após dia acompanhava o amadurecimento. Sem defensivos, sumarentas, comia-as com casca ou descascava-as com o meu canivete suíço de que muito me orgulhava.
 Quando o meu tio contratara aquela quinta para cultivá-la (percebi depois que uma parte do que cultivava era para o dono, em espécie ou produto, nuns casos um terço, noutros metade), a maior parte dos terrenos ainda não tinham sido cultivados. Coube ao tio António essa tarefa, que desempenhou com esforço e perseverança, por etapas, com uma ou duas parelhas de bois atrelados a um arado, devagar, pois tinha que despedaçarr na marreta algumas rochas, outras o arado levantava-as da terra, mais do fundo. Estas pedras eram posteriormente utilizadas na armação dos muros de pedra solta que desenhavam toda a quinta caprichosamente.
 Eu gostava de assistir ao lavrar, mais do que em áreas já anteriormente aradas, naquelas em que o lavrar era um verdadeiro desbravamento, um trabalho titânico, quase heroico, que espalhava pelo ar um cheiro/gosto forte e acre muito característico. É o cheiro da terra lavrada, conheço bem.
 Mas do que eu mais gostava era da eira na época da debulha. Para os que não sabem, uma eira é uma área de pouco mais de meio hectare (6 ou 7 mil metros quadrados), de preferência no alto de uma pequena elevação, onde vente razoavelmente. Para a armar, primeiro há que lavrar o terreno, de seguida passar com o rolo compressor para aplainar e compactar, depois regar com abundância. A seguir entra um rebanho de ovelhas que ficam horas andando à roda na terra molhada (esqueci de dizer que a eira é redonda, uma grande roda) para a compactar mais com os pequenos cascos das suas patinhas, de forma a que a terra não fique nem demasiado dura nem demasiado porosa. Tem a sua arte!
 Uns quantos garotos, os pastores das ovelhas, com umas varinhas e correndo por fora, obrigavam os animais a andar rápido ordenadamente em círculos. Eu ficava de cócoras (como via os garotos índios fazerem nos filmes de cowboys) num caminho mais alto que passava mais acima da eira e ficava a ver o rebanho que protestava com prolongados ‘més’. Visto assim de cima parecia uma cena de filme mudo, mais precisamente Trabalhadores a sair da Fábrica Lumière (de Louis Lumière), uma centena de operários a sair dos portões, a se empurrarem uns aos outros, imagens tremendo, como me parecia estarem as ovelhas, também se chocando umas com outras, certamente desorientadas por aquele passeio sem sentido.
 Enquanto se aprontava a eira, o trigo amadurecia e aloirava, altivo ficava na expetativa da ceifa. Chegada a hora, homens em mangas de camisa e barrete, mas principalmente mulheres vestidas de cores garridas, as mais novas, de preto por algum luto prolongado as mais velhas, todas de lenços cobrindo os cabelos, alinhavam-se na seara, e com as suas foices afiadas começavam a derrubar com golpes certeiros o trigo que ficava estendido no chão, a sua majestade de ouro ondulante chegava ao final.
 Logo a seguir, chiando pelos caminhos, possivelmente ladeados de silvas com amoras ainda verdes, pois as maduras os meninos e os pássaros já as teriam comido, chegavam ao local os carros de bois, e homens que com forquilhas apanhavam do solo o trigo e o jogavam no estrado dos carros de bois até formarem uma montanha vacilante. Os carros voltavam a chiar até à eira onde os mesmos homens desarmavam a montanha que ficava esparramada por toda a eira, quase com um metro de altura.
 Com a entrada do ‘trilho’ começava a debulha. A debulha é o ato de tirar o grão do trigo (ou outro cereal) das suas cápsulas naturais, o que é alcançado com o auxílio de um trilho, uma espécie de ‘jangada’ de tábuas sobre uns seis rolos grossos de madeira, estes com pregos grandes espetados e com cabeças enormes e salientes. Em cima deste trilho são colocadas pedras bastantes para ficar bem pesado, preparado para debulhar bem, ou seja, para as cabeças dos pregos soltarem o grão da sua espiga. Uma parelha de bois puxa este trilho que um abegão (o condutor de bois) vai conduzindo à roda da eira, horas e horas.
 Eu pedia ao abegão para me deixar ir em cima desse estrado, sentado num dos pedregulhos, à socapa, pois o meu tio proibir-me-ia se soubesse, por representar algum perigo. Sentado numa pedra ou deitado, o Sol a abraçar-me, eu entrava em transe a ouvir o canto-chão que o abegão entoava, para animar os bois ou, sei lá, a ele mesmo. Mais tarde, já não um menino mas gente, quando ouvia os cantos gregorianos recordava quase sempre este monótono e simples canto-chão que me deliciara.
 Além do mais, quando as cabeças dos pregos rasgavam os caules do trigo, este soltava uma seiva esverdeada (aliás saborosa) de cheiro muito agradável que eu aspirava com júbilo, enquanto os bois e o seu condutor continuavam nas suas infinitas voltas à eira. De quando em quando, o abegão parava os seus animais junto a uma cabana de ramos de árvores (para um eventual descanso) para beber, mas não água como seria aconselhável, dado o calor do sol escaldante, mas vinho. Sim, vinho tinto de um ‘almude’ (recipiente em latão em forma de bilha, que através de um triângulo aberto no alto do grosso gargalo marca a quantidade de vinho contida, já que o almude é uma antiga medida para líquidos com cerca de vinte litros). Ele erguia o recipiente pesado com presteza acima do seu rosto e deixava o precioso líquido escorregar pela goela abaixo. Um estalo gutural de satisfação, o passar da manga da camisa nos beiços e a volta à sua faina, com um olhar cúmplice para mim. Vim a saber que esse vinho era parte da sua jorna.
 Finalmente saía o trilho e entravam homens e mulheres com forquilhas a tirar a palha para as margens da eira, de forma a ficar apenas o grão e alguma palha. Com pás, os grãos eram jogados bem alto e aí o vento levava para longe a puínha que ainda restava do trigo, e este ficava pronto a ser ensacado. Uma batalha longa e árdua que aqueles guerreiros, armados apenas de forquilhas e pás, venciam, certo que apenas por uma estação, o milenar  arrancar à terra com muito trabalho o seu alimento.
  Passados alguns anos numa das minhas viagens de campista por acaso acampei na época da debulha num pinheiral. De manhã, ao dar uma volta ouvi um ruído pavoroso. Aproximei-me e lá estava a autora: uma grande debulhadora toda em aço, fumegando, ensurdecendo todos à sua volta. Fiquei revoltado, desarmei a minha tenda e fui para longe, para bem longe daquele sacrilégio
 Usufruí destas regalias dos oito aos catorze anos, idade em que podia ir até lá desacompanhado (outros tempos!). Terminou quando a minha tia se afastou do marido para ir viver com o filho, quando este se casou e foi viver em Portalegre. Na verdade ela odiava a quinta, a vida no campo, as fainas agrícolas e sentia a falta de com quem tagarelar.
 Todo o trabalho do tio António foi de certa forma mal compensado, pois o dono da terra pouco antes avisou-o de que precisava dela para um filho que ia casar e queria viver e trabalhar naquela quinta. Pudera, agora que ela estava toda ‘aparelhada’! O proprietário deu quatro anos para o tio António sair e nesse entretanto ele comprou um terreno de cultura (em Freiria) onde construiu uma casa e plantou um belo vinhedo.
 Acompanhei a formação do vinhedo e a construção da casa nos últimos dois anos que para lá fui. Ele levava-me (de carroça ou de bicicleta) para me mostrar com orgulho ‘a obra’ (como eu sentia que ele gostava de mim por, talvez, adivinhar o meu grande amor à terra e admiração pelo seu trabalho). Com curiosidade eu assistia ao tio António outra vez a despedrar e sulcar a terra, a armar moirões e esticar arames para a vinha se encostar, e finalmente a plantá-la ainda um nadinha. Depois ele continuou por mais dois anos a sua maravilhosa faina sem eu estar perto para poder apreciar. Felizmente viveu muitos anos e certamente no princípio de Outubro,  chamar os seus amigos para a ‘abertura’ da sua água-pé.
 Em Lisboa, nos primeiros tempos, eu pedia notícias de como ‘iam as coisas’ ao meu primo Luís. Até que um dia ele me falou que o pai tinha mudado para Freiria e abandonado Cabeda. Nesse dia chorei. Discretamente, fui-me estender em cima da minha cama e fiquei a recordar pedaço a pedaço aquela para mim maravilhosa quinta, como se a estivesse a sobrevoar de um avião, a voar baixinho, ou a ver um filme documentário. Lá estavam: a cadela Lisboa, o burro Ginga, os milhafres, o tanque e as rãs, a horta, até a vindima e o pisar da uva (ouvia nitidamente a galhofa daquelas raparigas a pisar as uvas com as saias arregaçadas), os campos de trigo louro a ondular salpicados de papoulas, a corrida das lebres e o voo precipitado das perdizes a fugir, o abegão a cantar, tudo, tudo.
 Depois imaginei o meu tio no último dia a visitar as terras que regara com o seu suor e a despedir-se com saudade antecipada de cada árvore, de cada vinha, da horta, das leiras com o restolho do trigo, de tanta coisa que ele plantara, cultivara, cuidara. Com raiva? Com amargura? Sei lá. Só sei que eu, nesse dia, estava ao seu lado, sim, com saudades de outros dias…

Uma neta dele e o marido, citadinos, melhor dito, lisboetas, curso superior, respeitados profissionais liberais, quando se aposentaram foram para lá viver.
 Quem sabe se para alegria do avô que nessa altura, certamente, já estaria a lavrar com vigor as nuvens no infinito céu.
DeMOURA
                                                    ***



sábado, 28 de fevereiro de 2015

25. DA VÃ GLÓRIA

25.   DA VÃ GLÓRIA
  Quando Manuel Laureano Rodríguez Sánchez, naquela tarde quente de 29 de agosto de 1947, estava em seu camarim a vestir o seu flamejante traje de toureiro, ficou algum tempo a olhar-se ao espelho, a apreciar o seu rosto magro, austero, os traços quase esculpidos, o seu cabelo muito preto e uns olhos da mesma cor e vivos. Contudo, estava muito longe de adivinhar como um touro, um belo miúra, Isleno de nome, como tantos que matara fulminante e implacavelmente, o enfrentaria na praça de touros de Linhares, em Espanha.
  Ao pisar a arena, como Manolete, o maior toureiro de todos os tempos até então, e segundo os aficionados até aos nossos dias, foi como sempre vibrantemente aclamado de pé pela assistência. A faena com o seu segundo touro foi como habitualmente brilhante e impecável, Manolete obrigando o touro a passar rente a ele, antes de marrar o pano vermelho, sem ele se mover um centímetro, sem sequer olhar o resfolgante animal de setecentos quilos, para aflição da plateia.
  Quando o toureiro parte para a estocada final para matar Isleno, atrasa-se alguns segundos do habitual, o touro afunda um dos cornos na veia femoral de Manolete, provocando-lhe uma abundante hemorragia que o mata  mais tarde.
 Tinha então apenas trinta anos e deixou saudades das faenas espetaculares que protagonizou durante mais de uma década nas praças de touros de Espanha, Venezuela e México. A comoção em toda a Espanha e América do Sul, e no mundo, foi imensa. Franco declara três dias de luto nacional, durante semanas os espanhóis, e não só, não falam de outro assunto recitando minuto a minuto a última faena do ídolo.
Em Portugal foi também uma choradeira geral. Clamavam: “Morte injusta!”, “Que perda irrecuperável para a tauromaquia!”, “Que tragédia a sua morte, tão novo e tão magnífico na arena!”, “Morreu o melhor toureiro de todos os tempos. Não haverá igual!”, “Que pena, morrer quando era o mais notável toureiro!”, “Era muito novo para morrer, ainda tinha muito para nos alegrar!”, etc. e tal. É foto de capa das principais revistas e os jornais dedicam grossas manchetes nas primeiras páginas.
  Eu era jovem e escrevia para algumas revistas, como a Horizonte e a Seara Nova, e para o jornal de esquerda República. Numa delas, já não me lembro qual, publiquei um artigo em que dizia que o notável toureiro morrera no local certo (a arena) e também na hora certa (no auge da sua carreira),  portanto  e indiscutivelmente fora a morte adequada.  Quase fui linchado pelos numerosos fãs de Manolete. Eu escrevera que uma estrela como ele não se pode apagar aos poucos, tem que explodir, desaparecer num ápice. Só assim será mártir e herói, chorado coletivamente, e perdurará na memória popular. Uma estrela de tal fulgor não pode esgueirar-se secretamente da sua constelação, apagar-se, ficar velho e ter uma velhice triste e amarga.
Entre parêntesis. Se conseguirem o DVD não deixem de ver Manolete –Sangue e Paixão, com Adrian Brody como Manolete e Penépole Cruz, como Lupe, a linda mulher da sua vida.
A propósito, lembro-me, quando há muitos anos vivia em São Paulo, de ir às vezes com os meus amigos a um restaurante ‘mexicano’, cuja comida era ótima. O dono teria sido toureiro e as paredes do salão estavam literalmente forradas de fotografias dele em faenas ou aparamentado à toureiro. Recordo ainda de uma impressionante com uma orelha de touro na mão… gotejando sangue. E como não bastasse, ele vinha até à nossa mesa a vangloriar-se desses seus êxitos passados, teriam sido ou não, e eu olhava para aquele gordo derrotado, barrigudo, com o cinto abaixo do umbigo, a camisa e a roupa tão amarfanhadas, uma figura tão distinta dos exuberantes trajes de ‘matador’, que me dava vontade de rir. Ao mesmo tempo, tinha muita pena dele a exibir com tanto orgulho o seu passado em fotos ruins e cagadas pelas moscas.

  Porque é que James Dean, apenas com três filmes, ficou nos anais do cinema como um ator fantástico, que realmente foi, mas não muito mais do que outros seus companheiros, também muito bons, que desapareceram da história do cinema. Talvez por ter morrido ao volante de um carro, como num dos seus filmes, com apenas 24 anos e no próprio ano desses seus filmes (A Leste do Paraíso, Fúria de Viver e Gigante). Porque é que Marylin Monroe é tão popular hoje como em vida, quando O Pecado Mora ao Lado era sucesso mundial. Possivelmente por estar no auge da sua carreira aos 36 anos e ter-se suicidado de forma dramática e um pouco misteriosa.
 Ainda no cinema, não assistimos tão recentemente ao anúncio da morte por suicídio de Philip Seymour Hoffman e logo ao justo reconhecimento do seu mérito? Na música poderia citar Elvis Presley e Charles Parker (Bird), com 37 anos, sem esquecer Bob Maley e tantos, tantos outros. E na política portuguesa, Sá Carneiro? E até, antecipadamente, o anúncio que Jon Stewart se vai retirar da televisão no pico do  êxito do seu Daily Show, que manteve por dezasseis anos,  com o segmento de humor político ‘International Moments of Zen’?
  Também recordo de um outro facto. O trânsito em São Paulo é muito ruim, como é sabido, mas ainda por cima os carros são largados em qualquer lugar, passeios, em frente de portas de garagens, bloqueando outros, um inferno. Até que um dia apareceu um ‘Salvador da Pátria’: um Diretor do Departamento de Trânsito, um tal Tenente Estrela, que declarou guerra aberta aos motoristas desrespeitadores dos bons costumes. Era presença constante nos telejornais ou em vibrantes entrevistas e comunicados, ou mesmo à frente das câmaras de televisão com uma sua equipa a rebocar carros a torto e a direito, a bloquear as rodas, até a esvaziar os pneus. Um prato cheio para os noticiários em geral, e o povinho adorava. Óbvio, não tanto quanto os motorizados. Até que numa entrevista à TV, das muitas que dava, de pé, exaltado, vociferando, não deu outra, tombou com um AVC e morreu frente às câmaras. Para muitos era um herói, passou a super-herói.
 Continuei assim a defender sempre a tese de que é no auge que o artista, o ator, o trapezista, o boxeur, o escritor, o bailarino, o músico, porque não o político e o locutor ou âncora, se devem retirar, sem necessariamente emigrar para a chamada ‘outra vida’. Se bem que, tendo a sorte (?) de ser de forma dramática, fica mais garantida a saudade perene.

  Há dias quando falei a uma amiga que tinha criado uma nova editora, ela disse-me: “Oh! Mário, está errado, já provou que é bom editor várias vezes, para quê, com a sua idade, voltar a trabalhar?”
  É facto que vendi a Editora Pergaminho há sete anos, uma editora que, na época, mais do que uma editorial era uma marca respeitada e de sucesso, e que vendi muito bem. Era a altura de me retirar. Mas parei? Não, meses depois criei a Vogais & Companhia, com o sucesso explosivo e prolongado de O Diário de um Banana,  que vendi um ano depois em boas condições, há cinco anos. Fui turista ativo durante três anos, no ano seguinte escrevi dois romances e dois livros de contos. Depois das férias do ano passado iniciei a ‘4Estações-Editora’ e a sua chancela editorial ‘O Castor de Papel’. Ao celebrar noventa anos. Qual a razão? Qual a lógica?
  Deveria ter-me retirado quando? Quando vendi a ‘Vogais’, a ’Pergaminho’ ou alguma das brasileiras, talvez a  ‘Fundo de Cultura’, ainda tão celebrada?
  Quero crer que voltei por duas boas razões: Primeiro, pela minha paixão pela leitura e pelos livros, desde muito novo, a partir dos meus oitos anos. Mas para acalmar essa paixão, dirão, não bastaria ir de quando em quando a uma boa livraria? Sim, é certo, isto é, seria se não houvesse uma segunda razão: do que eu gosto mesmo é de ‘criar’, sim, isso mesmo, criar,  no sentido amplo da palavra. E asseguro-lhes, nada como editarmos um livro para sentir a força do criar. Verdade é que já criei muitos jardins, dos mais variados tamanhos e usando as mais variadas plantas, o que sempre me deu muita satisfação. Já construí talvez duas dúzias de casas de campo, muito diferentes umas das outras, o que também foi um excelente exercício do criar. Assim como a partir da terra rasa criei três urbanizações.
 Nem quero falar de minhas experiências juvenis: a produção de bijuteria em madeira, um fracasso, mas mais tarde vi, com alegria, semelhantes em  vitrines parisienses; e uma pequena fábrica de perfumes, o de nome ‘55’ teve razoável sucesso, quase que ainda recordo o seu aroma (pesquei as fórmulas num livro de química, alemão, em tradução espanhola).

  Ao completar noventa anos, na festa com os meus numerosos familiares, disse umas palavrinhas que se enquadram muito bem, acho, no meu percurso de vida. Lembrei-lhes que subir a pé pela encosta de uma montanha, como tantas vezes fiz, não é um desafio fácil. As botas escorregam nas folhas apodrecidas e no limo, as pedrinhas atrapalham, tanto como troncos  quebrados e plantas espinhosas e atrevidas. As trilhas por vezes são interrompidas por rochas grandes e nem percebemos a razão, já que continuam adiante, mas é uma incerteza angustiante procurar a continuação. A respiração fica ofegante à medida que subimos e a mochila parece ter ficado mais pesada, mas temos que ficar atentos ao caminho que percorremos. Com frequência enganamo-nos e entramos  em veredas erradas, e por vezes temos dificuldades em encontrar a senda certa. Caímos, esfolamos as mãos e os joelhos, mas é preciso continuar, queremos continuar a subir, desejamos alcançar o alto da montanha, a nossa meta.
  Finalmente conseguimos pisar no cume, sentamos numa rocha, a respiração normaliza e a paisagem de que desfrutamos alegra-nos. Experimentamos uma sensação de vitória e de conquista, e serenamos. Lá em baixo, no vale, estão os que não subiram e cumprem o seu dia-a-dia. Algumas casas fumegam, as crianças a sair da escola são apenas pontos brancos das suas camisas. Dos animais a pastar ouvimos os bramidos, como música de fundo. Sentados e tranquilos, a sensação é tão boa que quase esquecemos que teremos que descer e que a descida é também difícil, pouco menos do que a subida. Mas temos que voltar para, também, irmos à nossa vidinha.
  Contudo, um bom montanhista, enquanto descansa no alto de uma montanha, além de olhar para o vale, mira ao seu arredor a admirar os cumes das outras montanhas em volta, algumas mais altas e certamente de escaladas mais difíceis. Então esquece as dificuldades da subida que acabou de vencer e prepara-se, mentalmente, para subir a que mais o desafia.
  Há sessenta anos que o meu trabalho é editar e dele tenho vivido, basicamente. Criei mais de uma dezena de editoras, felizmente com o sucesso suficiente para serem respeitadas pelos leitores, que é realmente o que me interessa, pois que só daí virão os resultados. Mas como o montanhista que de um alto de uma montanha ambiciona e propõe-se a subir outras, não ignorando nem temendo as dificuldades, decidi voltar a editar. Criei assim a ‘4Estações-Editora’  e a sua chancela editorial ‘O Castor de Papel’. Será difícil, eu sei, talvez esfole os joelhos ou erre a trilha, mas quero continuar. Hoje com mais razão, pois tenho uma companheira fiel e forte para me ajudar nesta escalada, a Ione França, a qual nos últimos vinte anos a mim se tem amparado e eu, com amor, a ela.
  Talvez seja isto que deva responder à minha amiga. Ela compreenderá, creio.

                                                   * * *

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Mário de Moura (DeMOURA) . O RAPTO DA EUROPA, NÃO POR ZEUS

  24. O RAPTO DA EUROPA, NÃO POR ZEUS
  O dia de ontem, 20 de fevereiro, foi um dia que ficará para a história como o dia de luto para a Europa, o dia de Finados para a União Europeia, o dia do réprobo geral à Alemanha e o dia da vergonha para Portugal.
   O dia de luto para a Europa, porque o presidente do Eurogrupo (o Sr. Jeroen Dijsselbloem), num momento crucial para esta instituição, se acobardou perante Berlim.
   O dia de Finados para a União Europeia, porque o Presidente da Comissão Europeia (Jean-Claude Juncker), um experimentado político, retrocedeu o seu apoio à causa grega e foi incapaz de impor a sua manifesta vontade a favor da antiausteridade na Europa.
  O dia do réprobo à Alemanha, porque o seu Ministro das Finanças (Wolfgang Schäuble) e a sua acólita (Angela Merkel) conseguiram travar um processo de repúdio aos nefastos programas de austeridade impostos a alguns países europeus, através do qual os gregos pediam apoio para programas mais sensatos e humanos.
  O dia da vergonha de Portugal, pela subjugação canina do seu incompetente Primeiro-Ministro (Coelho) ao lamber as botas do diabólico  ministro alemão.
  Como a maioria dos europeus, admirei a coragem e o destemor de Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis ao tentarem a saída da Grécia do programa dito de assistência, que na realidade é de agiotagem do capital internacional, não se negando a pagar a dívida do país, mas sim a equacionar a sua amortização para abrandar o sufoco e a miséria a que foi lançado uma boa parte do povo grego, e não só some-se Itália, Espanha, Portugal, Chipre etc.
  O certo é que a Alemanha que saiu destruída da 2ª Grande Guerra, provocada por ela, que no pós-guerra recebeu um colossal auxílio financeiro dos E.U. e de outros países europeus, tendo depois essa dívida perdoada, incrivelmente, hoje domina totalmente a dita União Europeia, económica e politicamente. Há alguma razão? Tem algum cabimento? E faz sentido que menospreze claramente os países europeus do Sul, a que chama de preguiçosos e gastadores? Quando a Itália, a França, a Grécia, a Espanha eram vigorosas culturas, que deram coesão e prestígio à Europa, a Alemanha era um país de bárbaros.
  O belo sonho da Europa unida, tão bem idealizado, está a ser torpedeado sem escrúpulos ou hesitações por quem dele devia melhor cuidar. Não estará na altura destes indesejáveis países do Sul saírem em conjunto da União Europeia e formarem a União Europeia do Sul, com a sua moeda e economia próprias? Sem o peso burocrático e dispendioso de Bruxelas. Dessa forma a importação de produtos alemães e de outros países do Norte da Europa seriam tributados, dando melhores oportunidades aos dos seus próprios países. A Europa do Sul não precisa dos carros, das cervejas e dos alfinetes alemães.
  E já não estaria na hora dos povos ‘gastadores’ do Sul começarem a boicotar os produtos alemães? Não haverá alguém que encabece esse movimento desde já?
Num século a Alemanha provocou três sangrentas guerras, e perdeu-as. Mas deixou sempre muita miséria, mortes e destruição. Atualmente está de novo a provocar miséria, mortes e destruição. Como não considerar os bairros miseráveis onde se amontoam milhões de habitantes destes países do Sul da Europa como novos campos de concentração, onde inocentes morrem de fome, de frio e de doenças, sem terem culpas, e apenas para que os capitalistas alemães enriqueçam? Que devemos à Alemanha? O Requiem de Mozart para acompanhar os nossos mortos?
  Ao que parece a cruz suástica esconde-se agora no símbolo do euro.
 Estamos agora à mercê do despeito, da crueldade e do cinismo do prepotente senhor Schäuble, como há décadas estivemos de um outro louco de bigodinho de triste memória. Não estará agora na hora de rever O Grande Ditador, de Chaplin?
 Como é possível que um ministro Alemão se atreva a ladrar que o povo grego não deveria ter eleito Tsipras? Que audácia e que desrespeito pelos outros povos! E como se não bastasse, depois da reunião de ontem, em que teimosa e cruelmente impediu que os outros países analisassem com atenção e democraticamente a proposta grega, ainda teve o atrevimento de dizer: “E agora o que é que o Sr. Tsipras vai dizer ao povo grego?”
  Como é possível que mais de duas dúzias de chefes de Estado europeus ‘soberanos’ fiquem calados perante estas incríveis afirmações?
  Não quero aqui e agora falar do Presidente da República de Portugal e das suas habituais gafes políticas, que bem contribuem para a nossa vergonha. Esperemos pacientemente que ele volte para o seu Algarve.
  Mas não posso deixar de falar da insensatez do Primeiro-Ministro (evitei dizer nosso), que não percebe que o ‘caso’ grego pode fazer toda a diferença, para melhor ou para pior, para a crise portuguesa. Penso que possivelmente ele não ganhará as próximas eleições (acredito nos portugueses), mas o que me pergunto é o que  acontecerá a ele posteriormente? Será julgado em Tribunal Criminal por tantas mortes e destruição que causou, ou simplesmente irá roçar as suas calças em Bruxelas ou numa grande empresa?
  Já disse que, para Portugal, 20 de fevereiro é o dia da vergonha pelo comportamento servil de Coelho à dupla alemã, mas não só. Mais caricato ainda, é a Ministra das Finanças de Portugal prestar-se ao papel de panfletária a favor da austeridade apresentando o país como um exemplo de sucesso do programa da troika, um desrespeito aos muitos milhares que aqui estão na miséria e desempregados, para agradar aos alemães.
  Não sei se se lembram de Fritz Lang no início da sua carreira de cineasta nos estúdios da UFA, no seu país, a Alemanha (Dr. Mabude e M de Matar)? Nos seus filmes dessa época apareciam umas figuras disformes e pérfidas que aterrorizavam as plateias. Depois ele foi para os Estados Unidos onde dirigiu belíssimos filmes, entre eles o corajoso Os Carrascos também Morrem (sobre o assassinato de crianças pelos nazis, estando estes ainda no poder,1943).  Parece que Lang deixou à solta, no seu país natal, descendentes desses monstrinhos.
  Não, não, a mítica Europa não foi raptada por Zeus, mas por Schäuble e Merkel!

   

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

LISBOA, MINHA DOCE E ESQUECIDA NAMORADA

23.  LISBOA, MINHA DOCE E ESQUECIDA NAMORADA

Depois de ter visitado Portugal pela primeira vez vinte anos após a minha saída em 1948, voltei muitas vezes durante o período de outros vinte anos em que continuei a viver no estrangeiro. Nos primeiros anos especialmente para estar com o meu pai e a minha mãe ainda vivos, que moravam sozinhos em Campo de Ourique, ou melhor dito rodeados de todos os seus filhos vivos (Isabel, a minha irmã mais velha, Rui, pouco mais velho do que eu, e Rogério, um pouco mais novo), mais um genro e duas noras, e nada menos que doze netos.
  Para mim, Campo de Ourique, para além do convívio com todos esses familiares (a maior parte dos meus sobrinhos eram-me até então desconhecidos), oferecia-me muito em termos de recordações da adolescência e da juventude. Contudo, Lisboa oferecia-me pouco mais, uma cidade sem grandes espetáculos e quase sem museus de porte, apenas o Museu de Arte Antiga (que eu revisitava muito, como quando era jovem) e o recém-inaugurado Museu da Gulbenkian, uma verdadeira pedrada no pântano. Dava umas escapadas a Mafra, à Ericeira, a Sintra e até a Coimbra.
Na minha segunda visita à terrinha, a política nacional divertia-me muito. Eu voltara a Portugal porque Salazar deixara de ser Presidente do Conselho de Ministros. Bom, não foi bem assim. Salazar havia caído de uma cadeira, parece que ao cortar os calos, há pouco mais de um ano atrás, e ficara incapacitado para governar, segundo os médicos, e não só, e Marcelo Caetano ocupara o cargo de Salazar. Mas o mais fantástico é que Salazar foi levado para o Palacete de São Bento, sua residência oficial como Presidente do Conselho de Ministros (como é sabido o Parlamento ficava praticamente no seu quintal das traseiras), e lá ficou como se ainda Presidente do Conselho de Ministros fosse. Os Ministros iam despachar com ele e, ao que se dizia, a D. Maria (essa controversa personagem) não o deixava ler jornais, ouvir rádio ou ver televisão. E assim se passaram dois anos, ele caiu da cadeira a 3 de agosto de 1968 (estava de férias) e veio a morrer em 27 de julho de 1970, pouco depois de eu voltar para o Brasil.
  Quase no final do falso mandato, um jornalista francês entrevistou Salazar e a folhas tantas diz-lhe: “Atualmente fala-se muito do Prof. Marcelo Caetano.” Salazar respondeu que Marcelo tinha sido do seu governo, mas como divergiam muito, ele demitira-o. Tem alguma coisa de Pirandelo, não tem?
  O que me surpreendia é que todas as pessoas com quem eu falava, mesmo as mais inteligentes e politizadas, acreditavam nesta farsa. Para mim é evidente que Salazar tinha consciência da sua incapacidade para estar à frente do Governo, armando esta cena de fingir que continuava como Presidente do Conselho, e devia divertir-se muito com as reuniões com os ‘seus’ Ministros. Esta manipulação foi o seu maior golpe como estadista e permitiu-lhe gozar por mais dois anos da mistificação de ser o todo-poderoso, o que muito lhe agradaria. Se ainda conseguia falar com ministros e jornalistas, como era possível alhear-se completamente das notícias do País e do mundo?
  Tive curiosidade de ir até à rua do Palacete de São Bento (uma mansão inserida em 20.000 metros quadrados de área, construída por um homem muito rico, no séc. 19, no terreno de um convento), esquina pela qual passei durante sete anos, duas ou quatro vezes por dia, quando ia ou vinha do Liceu Passos Manuel para casa) e fiquei parado a ver o movimento. De facto, chegavam carros grandes com motorista, fulanos no banco traseiro, certamente ministros, que iam como os bobos da corte alegrar Sua Majestade.
   Um guarda veio até mim e rispidamente informou-me que eu não podia ficar ali. Tive vontade de lhe perguntar se temia que eu matasse o morto, mas resolvi afastar-me rapidamente, pois conhecia a delicadeza da polícia portuguesa. Mas contente, pois assistira a mais um ato de uma ópera bufa.
  Mas, como disse, enfadava-me em Lisboa. Então, decidi ir até Madrid, que visitara por duas vezes em viagens à Europa, mas sem vir a Portugal. Lembrava-me da minha primeira viagem a Espanha, há 30 anos, tinha eu apenas 15 anos, por pura curiosidade, trajeto a pé e de boas recordações, que relatei no post 17, Maria Azeitona.
  Fui sozinho de comboio e na volta escrevi uma carta, ou lá o que é, sobre essa viagem, para uma amiga minha no Rio, que transcrevo abaixo com ligeiras alterações.

Não há queques em Madrid.

  Na era do jato resolvi, por maluquice e saudosismo viajar de comboio de Lisboa a Madrid. São seiscentos quilómetros unindo, quer dizer, separando, estas duas capitais, mas na realidade uma viagem que nos leva a um passado presente e mais do que medieval.
  Como companhia, meu amigo quase irmão, meu irmão quase amigo, eu próprio, cuidadosamente embrulhado em ideias fantasiosas de uma viagem de quando ainda garoto a uma cidadeca espanhola, e muitas saudades de uns tempos em que a escola era risonha, pois era apenas um menino, e só depois de homem mais que feito o menino sabe, tarde, como era bom aquele tempo. Enquanto a paisagem corria, ficámos conversando, discutindo o futuro que não sabemos se teremos, grandes planos, não realizáveis — mas afinal quantos dos nossos sonhos conseguimos realizar? Porém, seria a vida possível sem eles?
  A paisagem é anacrónica. Ovelhas e oliveiras, oliveiras e ovelhas, como nos tempos bíblicos. Fico a aguardar guardas pretorianos como os de filmes americanos. Mais oliveiras, ovelhas, algumas vacas, muros de pedra, casas de pedra, rochas, um ou outro cão, mais muros de pedra, oliveiras. Infelizmente poucos jumentos, que saudades do meu burrico Ginga, da quinta de Cabeda, a cadela Estrela e o meu casal de milhafres. E do seu voo sereno e soberano que eu admirava estirado naquela terra de cheiro tão gostoso como o de mulher amada (mas isto só vim a descobrir depois).
  Lá fora a colheita de azeitona está em marcha, ou talvez outra tarefa agrícola. Cestos e lonas, os putos, muitos, as mulheres de preto, curvadas, cansadas, que não acenam para o comboio de luxo, possivelmente até lhe rogam pragas. Em vez de burros, um ou outro Renault ou Fiat.
   Sete horas de muros de pedra a dividir as pequenas propriedades, velhas e retorcidas oliveiras, riachos prateados e as azedinhas pintando alegremente de amarelo ingénuo e puro o verde-escuro do pasto. Os grandes novelos de lã, como há milhares de anos, arrancam pacientemente o seu sustento deste pasto. Para mim, estas ovelhas representam uma viagem no tempo, não no espaço.
  Aqui e acolá, vergonha, grandes manchas de eucaliptos. Empurram, mais e mais, a vinha, o trigo, o pinheiro, o pasto, a oliveira. Em breve o português comerá e beberá celulose… e defecará imensos rolos de papel higiénico com os Lusíadas neles impresso.
  Há uma fronteira, assim o indica a parada, guardas e carimbos e, claro, perguntas idiotas. Para quê, se dos dois lados tudo é gente humilde vivendo de colheitas à custa de muito suor, um mundo simples, a vaca, a oliveira, o leite, a lã, a azeitona, o azeite, a mulher de preto. Ao mirá-las penso no ato sexual simples, sem sofisticação, a mente simples, o corpo quase virtuoso mas que gera todos estes desgraçados que fogem destas terras para Lisboa e para os Brasis da vida.
  Na chegada a Madrid, para minha desilusão, não há banda de música nem passadeira vermelha. Sinto-me o pó da bosta seca do cavalo de bandido de filme de cowboys. Mas afinal não é tão ruim assim. Telefono para uma amiga madrilena, que não se chama Carmen nem Dolores, pouco interessa, eu chamo-a de ‘minha flor’.
    É Páscoa. Vejo o desfile na Gran Via, muita pompa e fervor, muito roxo e dourado, mas, coitados, não conseguiriam desfilar no Segundo Grupo das Escolas de Samba do Rio. Falta requebro e pele escura e, claro, maconha e cachaça. Confronto com um desfile de Páscoa em Cuba, há muitos anos, e concluo que Disney liquidou as velhas tradições. Oh! Hollywood, como mudaste os homens em meio século, mais do que a Igreja Católica em vinte.
  Madrid, linda, limpa, imponente, ainda com resquícios do franquismo. Mas sem dúvida espetacular… porém não há queques em Madrid. Apenas churros e roscones. Se Portugal não estivesse a vender ainda e apenas os extraordinários feitos dos navegadores de há quatro séculos, poderia estar vendendo queques, pastéis de nata e papos de anjo para seus vizinhos, e não só.
  Madrid sem touradas, com sol e frio de março. O ritual do cinema às dez da noite e a ceia à meia-noite e depois tablado ou zarzuela. Felizmente também la siesta, que ninguém é de ferro.
   Visito demoradamente El Retiro. Está cheio e lindo. Fantasmagórico com centenas de árvores despidas de folhas, ramos implorando algo ao céu, e como elas me impressionam. Dá vontade de aguardar o renascer das suas folhas na primavera já próxima. E porque não? Acarinho algumas das suas árvores majestosas, aproveito o fresco das imensas copas das que mantiveram a folhagem, ensopo-me de verde abundante e do salpicado das cores de muitos canteiros em flor. Nem que seja só para visitar este maravilhoso parque, vale a pena visitar Madrid.
   No Prado vejo a jogar a  equipa completa: Ticiano, Velásquez, Goya, Zurbarán,  El  Greco,  Becerra e outros. Não descubro qual é o artilheiro, mas aposto em Goya. Porém, fico pensando como os bispos e beatas aceitavam aqueles nus voluptuosos, pecaminosos, mágicos? Autoflagelação ou alimento de sonhos proibidos?
  Depois Guernica. Pausa. É um murro no estômago bem dado por Picasso. O resto é água com açúcar. Penso em Lorca fuzilado em lugar incerto, no bombardeamento pelos aviões alemães, nas colunas de mercenários roubando e incendiando tudo quanto assaltavam, das crianças roubadas aos pais ou sem eles, assassinados. Além de uma obra de arte poderosa é um testemunho, um alerta, que fica, ficará por muitas gerações para lembrar aquele período negro, tão negro da história da Espanha e da humanidade. Obrigado, Picasso.
  Na época ainda não existiam os museus da Rainha Sofia e o Thyssem-Bornemisza. Por isso visito também o Museu de Arqueologia. Aquela vida há tantas dezenas de séculos impressiona-me tanto quanto os livros de Arthur Clarke, que me esperam lá fora, no quiosque de jornais. Para mim é uma medida muito grande, inaceitável, tantos milhões de anos para quem tem apenas escassos milhões de segundos.
  Mas é preciso voltar à terra, que não tem funcionado como tal para mim, regressar a um outro mundo, terceiro (?), não sei.
  De novo o comboio. A paisagem secular. Em terras espanholas há muitos touros a pastar. Manadas pretas movimentam-se lentamente como que para uma refrega. Que esperam aqueles touros, para que praça de touros irão ser lidados e mortos para glória e vaidade de que toureiro?
  A minha carruagem está quase vazia. Antes da fronteira, um sujeito, possivelmente africano ou boliviano, bem vestido, como os pretos em filme americano nos seriados, inclusive com grandes óculos escuros, vem até à primeira classe, estaca um pouco na entrada, inquieto, eu estou olhando os campos pela janela, ele decide-se e entra apressado na casa de banho. Filho da mãe, não me engana. Quando ele saiu fui conferir, não deu outra. No toalheiro, em baixo, lá está a coca em saquinhos, sedutora, ameaçadora, vale um dinheirão. De repente pensei em surripiá-la, mas tive medo e nem tinha sentido. Jogá-la fora pela janela? Um espírito burguês idiota não me deixou destruir o que valia tanto. Depois me achei uma besta.
  Assim que entrámos neste Portugal patusco, querido (?), nem sei, o dealer volta à casa de banho para apanhar a muamba. Levou um susto quando viu tudo remexido, sacos rasgados, o ‘pó’ descoberto. Agora ele ‘sabe’ que alguém ‘sabe’, mas não entende a jogada, pensará que foi algum curioso, não os guardas. Sai da casa de banho e fica especado no corredor a olhar para os viajantes nas suas poltronas. Tenho a certeza que ele ‘sabe’ que fui eu, o mais possível dos seis passageiros. Fico firme. Ele olha e não entende. Dá um tempo esperando que eu abra o jogo. Levanto-me, passo por ele e vou até ao bar. Tomo meia garrafa de vinho branco, o meu ‘pó’, líquido e saboroso.
  Entretanto, fico a pensar como os brancos estão sendo destruídos pelas drogas vendidas por outros brancos sem escrúpulos, pretos, mestiços, crioulos, árabes, asiáticos. Réquiem para uma raça! Os chineses vendem o seu ópio de segunda aos americanos ou aos lordes ingleses, que compram a coca ao mestiço boliviano, e a heroína aos argelinos. Bom negócio, sem necessidade de milionárias campanhas de publicidade. Repito, réquiem para a raça branca, música de Mozart, em CD de gravação japonesa e aparelho coreano.
  Finalmente o comboio está a chegar a Santa Apolónia. É o regresso a Lisboa ainda simplória, minha doce e esquecida namorada. Quando a locomotiva freia com aquele cinematográfico resfolgar, tenho a sensação que acabou uma sessão de cinema.
  Meus irmãos esperam-me na estação. Afinal sou gente. Eu que fiz centenas de viagens aéreas, de comboio e de autocarro, por tantos países, nunca alguém me acenou um lenço de adeus nas partidas, nunca alguém me abraçou nas chegadas.
Lisboa, 1970


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

22. DA BELEZA E DA VERACIDADE

 22.  DA BELEZA E DA VERACIDADE
  Um internauta tropeçou no meu blogue e depois fez reparos ao meu post do final do ano, em que publiquei um muito conhecido e belo texto, ‘Desiderata’, bem adequado à quadra natalícia. O leitor chamava-me a atenção para o facto de esse texto não ter sido gravado na pedra na velha Igreja de São Paulo, em Baltimore, em 1692 (como eu mencionei). Afirma que ‘Desiderata’ foi escrita em 1927 por Max Ehrman, um poeta, mas por ter sido divulgada por um padre levou a esse erro frequentemente cometido.
  Sinceramente, eu já sabia dessa versão, contudo não a mencionei: primeiro, por não acreditar muito nela, várias pessoas afirmam terem fotografado este texto gravado na pedra; segundo, porque é mais interessante que seja um texto com alguns séculos e gravado na pedra no interior de uma velha igreja do que um artigo publicado num jornaleco de província; terceiro, porque o que me importa é a beleza e a força da sua mensagem. Se foi X ou Y que o escreveram, no séc. 17 ou 20, pouco me importa.
  Imaginem que encontro uma bela poesia de Fernando Pessoa gravada na pedra no interior de uma velhíssima igreja alentejana, sem assinatura e datada de 1825. Entusiasmado divulgo-a acrescentando que é anónima e que tem quase cem anos. Deixa de ser menos bela se alguém a identificar como sendo do nosso maior poeta e de ter sido encontrada no célebre baú?
   Há um outro caso similar, que também vem levantando controvérsias. É um outro texto lindíssimo e que deveria ser divulgado nas escolas pela sua beleza, força e atualidade, um verdadeiro manifesto ecológico. Estou a falar da ‘Carta do Chefe índio (na realidade cacique), Seattle, ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce’, em 1854, quando este lhe propôs comprar uma grande área onde habitava a sua tribo e confiná-los a uma reserva.
 De novo a mesma questão. A carta não teria sido escrita diretamente pelo chefe índio Duwamish, de nome Seattle (as terras em questão são quase na fronteira do Canadá), ao presidente americano, mas sim por um tal Dr. Henry Smith que assistiu à reunião desse respeitado cacique com a sua tribo para discutir a oferta do presidente americano. Esse Dr. Smith ficou tão impressionado com a eloquência tão brilhante, lúcida e emocionante do cacique e com o profundo respeito que inspirava ao seu povo, para além da coragem das suas palavras, que anotou uns apontamentos, na base dos quais publicou essa ‘falsa carta’ num jornal (Seattle Sunday Star), em 1887, que daí em diante passou a ser conhecida como ‘A Carta do chefe Seattle ao Presidente dos Estados Unidos’ até aos nossos dias.
   Mas o que importa? O que vale é a beleza e a importância do texto. As palavras, sim, só podem ter sido pronunciadas por um índio genuíno, velho e sábio. A ironia, a lucidez, o amor à terra e aos animais, a coragem, explodem nestas linhas e tornam-nas perenes.
  Adiante poderão ler uma versão divulgada na década de setenta do discurso do cacique Seattle após o encarregado dos negócios indígenas do governo norte-americano ter feito a proposta de adquirir as terras da tribo Duwamish. Texto este traduzido pela equipe de ‘Floresta Brasil’, e mantido inalterável, no estilo e na ortografia, e do qual se originou 'A Carta do Chefe Seattle' numa versão mais epistolar e a que foi e é a mais divulgada.

O pronunciamento do cacique Seattle
O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande chefe assegurou-nos também de sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não precisa de nossa amizade.
Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações do ano.
Minhas palavras são como as estrelas que nunca empalidecem.
Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo, cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do homem vermelho.
O homem branco esquece a sua terra natal, quando - depois de morto - vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia - são nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos da campina, o calor que emana do corpo de um mustang, e o homem - todos pertencem à mesma família.
Portanto, quando o grande chefe de Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, ele exige muito de nós. O grande chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar em que possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, vamos considerar a tua oferta de comprar nossa terra. Mas não vai ser fácil, porque esta terra é para nós sagrada.
Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida de meu povo. O rumorejar d'água é a voz do pai de meu pai. Os rios são nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terás de dispensar aos rios a afabilidade que darias a um irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai embora, deixa para trás os túmulos de seus antepassados, e nem se importa. Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidos a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mãe - a terra - e seu irmão - o céu - como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelha ou missanga cintilante. Sua voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto.
Não sei. Nossos modos diferem dos teus. A vista de tuas cidades causa tormento aos olhos do homem vermelho. Mas talvez isto seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que de nada entende.
Não há sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o tinir das asas de um inseto. Mas talvez assim seja por ser eu um selvagem que nada compreende; o barulho parece apenas insultar os ouvidos. E que vida é aquela se um homem não pode ouvir a voz solitária do curiango ou, de noite, a conversa dos sapos em volta de um brejo? Sou um homem vermelho e nada compreendo. O índio prefere o suave sussurro do vento a sobrevoar a superfície de uma lagoa e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou recendendo a pinheiro.
O ar é precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas respiram em comum - os animais, as árvores, o homem.
O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se te vendermos nossa terra, deverás mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, adoçado com a fragrância das flores campestres.
Assim pois, vamos considerar tua oferta para comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, farei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos.
Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto milhares de bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o bisão que (nós - os índios) matamos apenas para o sustento de nossa vida.
O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, logo acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.
Deves ensinar a teus filhos que o chão debaixo de seus pés são as cinzas de nossos antepassados; para que tenham respeito ao país, conta a teus filhos que a riqueza da terra são as vidas da parentela nossa. Ensina a teus filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra - fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios.
De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará.
Os nossos filhos viram seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, envenenando seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, menos uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques sobrará, para chorar sobre os túmulos de um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.
Nem o homem branco, cujo Deus com ele passeia e conversa como amigo para amigo, pode ser isento do destino comum. Poderíamos ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver, de uma coisa sabemos que o homem branco venha, talvez, um dia descobrir: nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgues, agora, que o podes possuir do mesmo jeito como desejas possuir nossa terra; mas não podes. Ele é Deus da humanidade inteira e é igual sua piedade para com o homem vermelho e o homem branco. Esta terra é querida por ele, e causar dano à terra é cumular de desprezo o seu criador. Os brancos também vão acabar; talvez mais cedo do que todas as outras raças. Continuas poluindo a tua cama e hás de morrer uma noite, sufocado em teus próprios dejetos.
Porém, ao perecerem, vocês brilharão com fulgor, abrasados, pela força de Deus que os trouxe a este país e, por algum desígnio especial, lhes deu o domínio sobre esta terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é para nós um mistério, pois não podemos imaginar como será, quando todos os bisões forem massacrados, os cavalos bravios domados, as brenhas das florestas carregadas de odor de muita gente e a vista das velhas colinas empanada por fios que falam. Onde ficará o emaranhado da mata? Terá acabado. Onde estará a águia? Irá acabar. Restará dar adeus à andorinha e à caça; será o fim da vida e o começo da luta para sobreviver.
Compreenderíamos, talvez, se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as visões do futuro que oferece às suas mentes para que possam formar desejos para o dia de amanhã. Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós ocultos, e por serem ocultos, temos de escolher nosso próprio caminho. Se consentirmos, será para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez, possamos viver os nossos últimos dias conforme desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará vivendo nestas floresta e praias, porque nós a amamos como ama um recém-nascido o bater do coração de sua mãe.
Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueças de como era esta terra quando dela tomaste posse: E com toda a tua força o teu poder e todo o teu coração - conserva-a para teus filhos e ama-a como Deus nos ama a todos. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, esta terra é por ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.
                                                        ***

 Ao ler este pronunciamento do velho índio dá-me vontade de ser cineasta e fazer uma curta-metragem com base nela. O filme enfatizaria várias vezes a imagem do cacique Seattle a falar à sua numerosa tribo, uma multidão de rostos, focando de quando em quando os mais expressivos, exibiria a floresta ao fundo com as suas imponentes e seculares árvores, depois adentrava nela e explorava as frondosas copas com os seus pássaros, esquilos e outros pequenos animais, não deixaria de valorizar as altas montanhas ainda com neve, assim como rios de água cristalina precipitando-se em pequenas cascatas,  ainda uma imensa planície que servia de pasto para gazelas e veados, e no céu a majestosa águia e muitas outras aves, até borboletas a bailar caprichosamente.
   Imagino as imagens a acompanharem passo a passo as palavras corajosas do velho índio revelando as cenas que ele denuncia.
  Seria, creio, um belo e educativo documentário para passar nas escolas. Claro, uma utopia.
                                                   ***