27. A VOLTA DO FILHO
PRÓDIGO
Quando Marcelo Caetano
assumiu o cargo de Presidente do Conselho do Estado Novo, estando ainda Salazar
meio-vivo e pensando que ainda era ele quem ocupava esse cargo, houve muitas
esperanças na melhoria da situação geral (política, económica e social) de
Portugal. Eu fui um dos que me iludi. Ou não, apenas quis justificar para mim
mesmo uma visita a Lisboa, apesar da minha jura (quando pisei o avião que me
levava para Nova Iorque) de que não voltaria enquanto Salazar fosse vivo.
Abril de 1970, já
haviam passado vinte e dois anos que eu vivia fora de Portugal sem nunca ter
voltado, sequer em visita. Vivia, então, no Brasil, mais propriamente no Rio de
Janeiro. Convenci-me que seria uma boa ocasião para visitar a família, em
especial o meu pai e a minha mãe, felizmente ainda vivos. E ainda os meus
irmãos Rogério e Rui, com os quais tinha muita afinidade, assim como a minha
irmã Isabel, a mais velha e de quem sempre gostara muito. E ainda havia ‘gente’
a conhecer, sobrinhos e outros familiares por afinidade. Claro que tinha muita
curiosidade em rever a cidade em que vivi 24 anos e da qual guardava infinitas
recordações com as mais diversas variantes.
Resolvi viajar sem
telefonar ou escrever a anunciar a vinda, pois não estava muito seguro de que a
PIDE não me chatearia, o que provocaria preocupações aos meus familiares. Não
foi sem alegria que passei pelos controlos da chegada (policiais e
alfandegários), como se diz no Brasil, “numa boa”.
Ao chegar aos táxis e
apanhar um, falei com o condutor: “Por favor, Rua da Madalena (onde o Rogério
instalava a Livros Horizonte), mas no caminho se não o transtorna dê uma
paradinha na Versalhes.” Quando ele lá parou, entrei e pedi ‘uma bica e um
queque’. Ao terminar gritei para mim mesmo “Estou em Lisboa!”.
Para minha surpresa, o
prédio da editora não tinha elevador e esta era num terceiro andar. Para mim
era quase inconcebível aquela escada íngreme, de degraus pequenos, pelos quais
arrastei uma mala de viagem estupidamente grande (até hoje, apesar das centenas
de viagens internacionais, não sei viajar com malas pequenas, como manda o bom senso).
Finalmente, arfando, toco na porta da editora e uma jovem atende e olha para
mim perplexa, pelas roupas e pela mala, possivelmente até pela semelhança com o
meu irmão. Quando perguntei por ele, destemidamente ela tentou impedir-me
clamando “O Sr. Doutor Moura está em reunião.”. Entrei por ali adentro
arrastando a mala e dirigindo-me para de onde ouvia a voz do Rogério.
Indelicadamente, abri a porta e não sei o que soou primeiro, se foi um Rogério!
ou um Mário! Abraçámo-nos sob o olhar espantado do Padre Felicidade Alves, que
só para o conhecer teria justificado a viagem, vim a saber depois, ao conviver
com ele.
Alertado pelo telefone,
chegou esbaforido o Rui, verdadeiramente comovido. Verdade que tanto um como o
outro me visitaram no Rio, mais do que uma vez. De imediato instala-se uma ‘conferência’
para estabelecer a estratégia do ‘como’ aparecer em casa dos meus pais, sem o perigo
de isso causar emoções perigosas, dada a surpresa e a idade deles. O Rui
decidiu: “Vamos direto, não acontece nada!” E lá fomos os três e a incrível
mala no carro italiano desportivo de que ele tanto se orgulhava.
Felizmente, tanto a
minha mãe como o meu pai não se emocionaram para além de ‘que surpresa’, ‘meu
querido filho’, beijos, abraços, lágrimas e risos. Em breve, como que pela
magia de um toque de clarim ‘a reunir’, vieram muitos outros parentes (que
moravam maioritariamente em Campo de Ourique) e não tardou a ser uma balbúrdia
geral. Alguém encomendou ou apanhou salgadinhos e bolos da tradicional ‘Tentadoura’
e a confraternização foi ampla e comovente.
A folhas tantas, a
minha mãe perguntou-me, com aquele tom mais perentório do que interrogativo que
as mães sabem tão bem pronunciar: “Então, Mário, amanhã vais visitar os teus
tios e tias?” “Não, mãezinha, não é isso que penso fazer, vou querer visitar
Cabeda, quero ver como está, vou alugar um carro para ir lá!” A admiração da
minha mãe não podia ser maior e logo: “Credo, que pressa em ires lá, se nem o
teu tio António lá está há tanto tempo.” Logo os meus irmãos se prontificaram
para irmos todos juntos, pois também não iam lá há mais de trinta anos, como
eu. Para surpresa deles, e certamente pesar, falei que queria ir só. Logo o Rui
me garantiu o carro dele para o dia seguinte (um Alpha, ele sempre teve a mania
de carros desportivos). A festa prolongou-se, pois continuam a aparecer autoconvidados
que queriam ver o ‘brasileiro’, como já me apelidavam.
A minha família era
muito numerosa e muito unida, boa parte vivendo em Campo de Ourique, outros
noutros bairros, mas estavam sempre em contacto uns com os outros. Era uma
espécie de tribo e quase todos viviam em Portugal. Assim, eu que me tresmalhara
e vivia tão longe e durante tanto tempo fiquei quase como uma figura mítica,
ausente, do qual sabiam uma ou outra coisa esporadicamente, e bem estranhas, pois
tão depressa estava num país como noutro, estava casado com A ou com B, tinha mais
filhos, aqui e ali apareciam notícias sobre as minhas edições e editoras, que
também mudavam muito, os livros por mim editados com alguma presença nas
livrarias portuguesas, vinham amigos meus do Brasil falar-lhes de mim, relatos
contraditórios, etc., etc. Portanto, era
inesperado e extraordinário eu estar
ali, de carne e osso, cabeleira abundante, quase
black power, bem bronzeado, roupas
informais, espantando tantos sobrinhos que tinham nascido enquanto estava fora
e não me conheciam.
Eu não era um extraterrestre, mas vinha de longe, de muito
longe, de um país mítico, alguns nem me conheciam, outros tentavam encontrar as
diferenças com a imagem do Mário da sua memória de há muito.
Na manhã seguinte não peguei o Alpha, aluguei um carocha
(Volsksvagem 1300) amarelão e antes de partir estudei o roteiro num mapa que
encontrei no porta-luvas do carro. Lá me orientei para apanhar a estrada
nacional, e não esperava grandes alterações nela, pois pelo que vira Campo de
Ourique era quase igual a quando lá morava. Nem a cor dos prédios mudara.
Adoro conduzir, quanto
maiores as distâncias, melhor, e quando ao volante sinto-me muito bem e consigo
pensar muito. Naquele momento recordava como durante tantos anos imaginei esta
tão simples viagem das mais variadas formas. Assim como quando a vida começou a
sorrir-me no Brasil, e até mesmo antes, na Venezuela e no Canadá, quando
irrealisticamente sonhava que iria enriquecer e realizar o meu sonho: chegar
inopinadamente a Cabeda, dirigir-me ao filho do proprietário que se assenhorara
da quinta formada pelo meu tio, ou mesmo ao pai dele, o verdadeiro proprietário
(seria ainda?) e, como um novo-rico insolente, perguntar-lhe quanto queria pela
quinta. E força-lo a vender-ma, comprá-la por qualquer que fosse preço, e
rápido.
Sonho recorrente e com
as mais diversificadas variantes, mas o certo é que me ajudavam a suportar a
dura vida de emigrante que suportei nos primeiros cinco anos na Venezuela e no
Canadá.
O que ia fazer com a
quinta? Bom, isso não era relevante, o importante era comprá-la, percorre-la
devagar e saber que, finalmente, era minha. Lembro de na escola primária ler
(no livro de leitura adotado) uma passagem de um romance de Júlio Dinis, creio,
na qual um lavrador compra umas terras e quando, logo em seguida, as visita,
teatralmente ajoelha-se para beijar a terra finalmente sua. Não era minha ideia
imitar o tal lavrador, mas tecia os mais fantasiosos cenários, inclusive o de
voltar de vez a Portugal (hipótese que nunca minimamente me atraiu depois de
ter emigrado) e dedicar-me à exploração agrícola ou turística da saudosa
quinta.
Por vezes (tantas!),
imaginava-me a passear por aqueles campos da quinta de Cabeda, a admirar os
jogos da luz do Sol a varrer os trigais e as nuvens em constante transformação;
a respirar cheiros tão diversos e tão conhecidos, como o das urtigas ou das
azedinhas pisadas ou da seiva do trigo ao se lhe quebrar o caule e, ainda, da
mordida num pêssego maduro; a ouvir sons familiares como o coaxar das rãs ou o
arrolhar das rolas, ou da enxada a entrar fundo na dura terra, um ruído seco e
cadenciado ou o longínquo chiar de um carro de bois; de recordar algum
fantástico pôr-do-sol a afundar-se numa imensa e esplendorosa mancha vermelha e
amarela, cores que pareciam entrar dentro de mim de tão vibrantes.
Também, sem qualquer
razão, inopinadamente, lembrava-me de cenas fugazes mas que revia com nitidez:
o levantar do voo de algumas perdizes quase debaixo dos meus pés, a corrida
rápida de uma lebre assustada com a minha presença, uma cobra desovando e de
imediato os ovos a se abrirem para deles saírem pequenas cobras, que logo
ondulavam fugindo para as suas vidas, borboletas multicolores volteando perante
os meus olhos como que a se exibirem, as formigas em seus carreiros carregando
enormes pedaços de folhas para a horta dos seus formigueiros, um casal de
pintassilgos a carregar pequenos ramos para construir cuidadosamente o seu
ninho, ou mais tarde o pai a trazer minhocas para colocar na boca dos filhotes
de bico aberto e ávido.
Os meus olhos com
frequência inundavam-se do vermelho das papoulas atrevidas ou do verde das
alfaces, do castanho das terras recém-lavradas, das searas de trigo puro ouro,
do rosado das peras e do vermelho vivo das cerejas, do roxo das amoras
silvestres, como do azul do céu cambiante consoante as horas e até do prateado
do luar a pintar árvores e caminhos estreitos.
Tudo isto estava
entranhado em mim, no fundo do meu cérebro ou do meu coração, guardados como
num disco rígido que involuntariamente surgiam no ecrã da minha saudade, uma
viagem à minha infância. Adorava esses momentos que usufruí ao longo da vida.
Agora imaginava revê-los e corria o possível por aquela estrada.
Claro, estes flashs, que
nem sei como e porque acontecem, também eram, e são, de paisagens visitadas,
quadros de algum museu, rostos de pessoas com quem conversei e habituais ou que
apenas vi de relance e me impressionaram, momentos de amor e intimidade,
situações chocantes que tenha visto ou nas quais tenho participado, de
ninharias e de momentos importantes, que a minha retina fotografou e o meu cérebro
arquivou.
Já estava há bastantes
quilómetros correndo pela estrada nacional quando um raio atravessou
fulminantemente a minha mente e interrompeu o meu doce sonho de chegar
rapidamente a Cabeda. Nesse momento ouvi aquela voz que conheço tão bem, apesar
de não saber se é do meu anjo da guarda, do meu alter-ego, de algum familiar no
Além ou, simplesmente, da metade racional, do meu cérebro. Certo é que, desta
vez, a voz ressoava furiosa. Parei com dificuldade na berma da estrada (que
nessa época era um luxo no que generosamente chamavam de estradas) e ouvi
gritar:
“Mário, tu és parvo? Cretino? Ingénuo? Vais à procura de quê?
De Cabeda? Qual Cabeda? Aquela onde há mais de três décadas percorrias os
campos com a tua cadela Lisboa no teu encalço? És tonto! Achas que isso ainda
existe como era? Não percebes que essa Cabeda só existiu, e só existe, na tua
cabeça e no teu coração? Não te dás conta do quanto sublimaste essas
recordações dessa quinta? O que vais fazer? Dás-te conta que vais destruir as
mais belas imagens e recordações do tempo em que eras menino, um menino sonhador
e contemplativo? Saberás ou não que quando cavalgavas o Ginga, ou te deitavas nas colinas de papo para o ar a
apreciar o voo dos milhafres, ou ainda quando colhias as melhores e mais doces
frutas da tua recordação, esses foram os mais genuinamente felizes momentos da
tua vida? Nem as maravilhosas frutas brasileiras, nem as impressionantes
paisagens do Canadá e do Brasil ganham, para ti, na comparação. E, contudo,
delas também usufruíste bem.”
Estava parado e
sentado no banco do condutor, esmagado por aquele discurso. Saí do carro e
olhei em volta. Umas terras não cultivadas, algumas casitas pobres, mal
conservadas, muita tralha em volta. Num cercado quatro cabritas olhavam-me como
que a troçar de mim. Estavam magras e o pasto era ralo. Uma velha vestida de
preto saiu de uma das casas e espalhou algum milho para as galinhas que por ali
ciscavam. Quando estas se aproximaram para comer o milho, a velha, com uma
agilidade surpreendente, apanhou uma das frangas pelo pescoço e entrou em casa
com a bichinha a espernear. Imaginei-a depenada a ferver na panela fumegante,
enquanto a velha sorria antecipando o seu filho à mesa.
Uma fumaça escura
chamou a minha atenção para mais longe. Uma fábrica, de quê?, pintada de
vermelho escuro, hostil, era a razão. Não muito distantes da fábrica, vários
armazéns alinhados faziam supor capoeiras para galinhas poedeiras.
Não eram campos
bonitos, não uma paisagem de postal. A estrada tirara-lhe a imagem singela e a
beleza. Agora aquelas terras, por ventura outrora verdejantes, inspiravam
apenas amargura e tristeza. Até as árvores que ladeavam a estrada (eu
lembrava-me tão bem da sua imponência, sombra e beleza), agora estavam pintadas
de branco e com cartazes toscamente escritos à mão a tinta vermelha pregados nos
troncos, a anunciar qualquer coisa. Nalgumas percebi cartazes de touradas em
Torres Vedras.
Perguntei-me
apreensivo: “Será que Cabeda também se encheu de casas tristes, galinheiros
imensos, fábricas fumarentas? Estarão as suas terras ao abandono? Talvez nos seus vastos campos o
trigo já não ondule dourado? Quem sabe se a horta, agora não trabalhada, foi
invadida pelas ervas daninhas? E se cultivam trigo, é debulhado na eira ou
naquela máquina infernal? Os carros de bois ainda chiam dolentemente pelos
caminhos ladeados de silvas, ou agora são camionetas velhas e ruidosas a correr
por eles? Quem trabalha na quinta, permanentemente os habitantes da aldeia ou
uns quantos guineenses contratados para tarefas ocasionais, a dormir em tendas
improvisadas? E as moças ainda vestem roupas garridas, e entoam canções
maliciosas, ou foram trabalhar paras as fábricas do Barreiro?”
Estas perguntas que me
fazia, as imagens que me assaltavam e que via com nitidez, acabaram por me
deprimir e acabrunhar.
Um jeep da GNR parou ao meu lado e inquiriu
se o meu carro estava avariado. Não era para ajudar, era evidente a
desconfiança e o autoritarismo. A auréola fascista era mais brilhante do que os
botões dos seus uniformes.
Respondi: “Não,
sargento, combinei com um amigo encontrar-me aqui com ele, para irmos almoçar
em Torres, mas ele não apareceu. Vou-me embora!” “Oiça, não sou sargento, sou tenente,
não vê as minhas divisas? É brasileiro?” “Senhor Capitão, estou a visitar o meu
país, não entendo nada de patentes, desculpe. Se me dá licença, vou indo!” O
Capitão, de tão espantado com a minha desfaçatez, não me impediu de entrar no
carro e nem perguntou pela minha carta de condução. Na realidade eu tinha
comigo nada menos do que três cartas (do Brasil, do Canadá e da Venezuela), mas
não sabia bem se me habilitavam a conduzir aqui.
Entrei no carro e
decididamente segui em frente. Pelo retrovisor vejo que o tal Tenente apontava
a chapa do carro. Estranhei que um Tenente se ocupasse destas tarefas de
perseguição aos condutores, mas ainda iria ver muito mais para estranhar. Mais
adiante parei num café na expetativa da chegada da GNR… que passou acelerada.
Quando eles se afastaram entrei no carro, manobrei de volta para Lisboa,
pensando almoçar com os meus irmãos um bacalhau com grão.
Os meus irmãos
admiraram-se por ter voltado tão rápido. “Então, não foste a Cabeda, não achaste
o caminho?”, perguntaram. Com algum mau humor, respondi: “Não, não fui, e nunca
irei, e nem quero falar mais da quinta.”
E não voltei. Cabeda
ainda é para mim, passados que são setenta e cinco anos, o meu shangri-lá. No Brasil tive uma bela fazenda,
não sei quantas vezes maior do que a quinta do meu tio. Ao voltar a viver em
Portugal, comprei um moinho em ruínas (é o que aparece com outros dois nas
pinturas da Batalha do Vimieiro), recuperei-o a preceito, plantei um
maravilhoso jardim (mas eram apenas dois mil metros quadrados).
Quanto de Cabeda no moinho ou na fazenda? Os
grilos, os coelhos bravos, o arrulhar das rolinhas, o trovão frente a frente, o
cheiro da terra depois das chuvadas, os voos parabólicos das andorinhas? A
alegria de ver as árvores a cobrirem-se de folhas, mais tarde de flores e por
fim de frutos, ou de ver nos canteiros, onde pouco antes lançámos sementes, surgirem plantinhas verde-claro e triunfantes?
Colher frutas em árvores que antes plantámos esperançosamente, ou apanhar uma
rosa no nosso jardim para entregá-la à mulher que amamos?
Sim, algumas
semelhanças. Foi bom? Foi ótimo! A fazenda não era suficientemente lucrativa
para os meus gastos. Deixei-a sem a cultivar, ainda é minha, não a visito há
décadas, o meu filho cria lá cavalos de trote. O moinho foi uma maravilha
durantes dez anos. Depois de alguns roubos e assaltos, vendi-o. Tive pena? Sim!
Ponto final.
Há um poema de Manuel
Bandeira que diz: “Vou-me embora para Pasárgada/Lá sou amigo do rei/ Lá terei a
mulher que eu quero/Na cama que escolherei/Vou-me embora para Pasárgada.”
Talvez esteja na hora
de eu cantar: “Vou-me embora para o meu sonho/Lá tenho a minha cadela Lisboa/Vou
fartar-me de rir à toa/ Vou-me embora para o meu sonho/Lá cavalgarei o burro
Ginga/Vou-me embora para o meu sonho!”
***