DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

25. DA VÃ GLÓRIA

25.   DA VÃ GLÓRIA
  Quando Manuel Laureano Rodríguez Sánchez, naquela tarde quente de 29 de agosto de 1947, estava em seu camarim a vestir o seu flamejante traje de toureiro, ficou algum tempo a olhar-se ao espelho, a apreciar o seu rosto magro, austero, os traços quase esculpidos, o seu cabelo muito preto e uns olhos da mesma cor e vivos. Contudo, estava muito longe de adivinhar como um touro, um belo miúra, Isleno de nome, como tantos que matara fulminante e implacavelmente, o enfrentaria na praça de touros de Linhares, em Espanha.
  Ao pisar a arena, como Manolete, o maior toureiro de todos os tempos até então, e segundo os aficionados até aos nossos dias, foi como sempre vibrantemente aclamado de pé pela assistência. A faena com o seu segundo touro foi como habitualmente brilhante e impecável, Manolete obrigando o touro a passar rente a ele, antes de marrar o pano vermelho, sem ele se mover um centímetro, sem sequer olhar o resfolgante animal de setecentos quilos, para aflição da plateia.
  Quando o toureiro parte para a estocada final para matar Isleno, atrasa-se alguns segundos do habitual, o touro afunda um dos cornos na veia femoral de Manolete, provocando-lhe uma abundante hemorragia que o mata  mais tarde.
 Tinha então apenas trinta anos e deixou saudades das faenas espetaculares que protagonizou durante mais de uma década nas praças de touros de Espanha, Venezuela e México. A comoção em toda a Espanha e América do Sul, e no mundo, foi imensa. Franco declara três dias de luto nacional, durante semanas os espanhóis, e não só, não falam de outro assunto recitando minuto a minuto a última faena do ídolo.
Em Portugal foi também uma choradeira geral. Clamavam: “Morte injusta!”, “Que perda irrecuperável para a tauromaquia!”, “Que tragédia a sua morte, tão novo e tão magnífico na arena!”, “Morreu o melhor toureiro de todos os tempos. Não haverá igual!”, “Que pena, morrer quando era o mais notável toureiro!”, “Era muito novo para morrer, ainda tinha muito para nos alegrar!”, etc. e tal. É foto de capa das principais revistas e os jornais dedicam grossas manchetes nas primeiras páginas.
  Eu era jovem e escrevia para algumas revistas, como a Horizonte e a Seara Nova, e para o jornal de esquerda República. Numa delas, já não me lembro qual, publiquei um artigo em que dizia que o notável toureiro morrera no local certo (a arena) e também na hora certa (no auge da sua carreira),  portanto  e indiscutivelmente fora a morte adequada.  Quase fui linchado pelos numerosos fãs de Manolete. Eu escrevera que uma estrela como ele não se pode apagar aos poucos, tem que explodir, desaparecer num ápice. Só assim será mártir e herói, chorado coletivamente, e perdurará na memória popular. Uma estrela de tal fulgor não pode esgueirar-se secretamente da sua constelação, apagar-se, ficar velho e ter uma velhice triste e amarga.
Entre parêntesis. Se conseguirem o DVD não deixem de ver Manolete –Sangue e Paixão, com Adrian Brody como Manolete e Penépole Cruz, como Lupe, a linda mulher da sua vida.
A propósito, lembro-me, quando há muitos anos vivia em São Paulo, de ir às vezes com os meus amigos a um restaurante ‘mexicano’, cuja comida era ótima. O dono teria sido toureiro e as paredes do salão estavam literalmente forradas de fotografias dele em faenas ou aparamentado à toureiro. Recordo ainda de uma impressionante com uma orelha de touro na mão… gotejando sangue. E como não bastasse, ele vinha até à nossa mesa a vangloriar-se desses seus êxitos passados, teriam sido ou não, e eu olhava para aquele gordo derrotado, barrigudo, com o cinto abaixo do umbigo, a camisa e a roupa tão amarfanhadas, uma figura tão distinta dos exuberantes trajes de ‘matador’, que me dava vontade de rir. Ao mesmo tempo, tinha muita pena dele a exibir com tanto orgulho o seu passado em fotos ruins e cagadas pelas moscas.

  Porque é que James Dean, apenas com três filmes, ficou nos anais do cinema como um ator fantástico, que realmente foi, mas não muito mais do que outros seus companheiros, também muito bons, que desapareceram da história do cinema. Talvez por ter morrido ao volante de um carro, como num dos seus filmes, com apenas 24 anos e no próprio ano desses seus filmes (A Leste do Paraíso, Fúria de Viver e Gigante). Porque é que Marylin Monroe é tão popular hoje como em vida, quando O Pecado Mora ao Lado era sucesso mundial. Possivelmente por estar no auge da sua carreira aos 36 anos e ter-se suicidado de forma dramática e um pouco misteriosa.
 Ainda no cinema, não assistimos tão recentemente ao anúncio da morte por suicídio de Philip Seymour Hoffman e logo ao justo reconhecimento do seu mérito? Na música poderia citar Elvis Presley e Charles Parker (Bird), com 37 anos, sem esquecer Bob Maley e tantos, tantos outros. E na política portuguesa, Sá Carneiro? E até, antecipadamente, o anúncio que Jon Stewart se vai retirar da televisão no pico do  êxito do seu Daily Show, que manteve por dezasseis anos,  com o segmento de humor político ‘International Moments of Zen’?
  Também recordo de um outro facto. O trânsito em São Paulo é muito ruim, como é sabido, mas ainda por cima os carros são largados em qualquer lugar, passeios, em frente de portas de garagens, bloqueando outros, um inferno. Até que um dia apareceu um ‘Salvador da Pátria’: um Diretor do Departamento de Trânsito, um tal Tenente Estrela, que declarou guerra aberta aos motoristas desrespeitadores dos bons costumes. Era presença constante nos telejornais ou em vibrantes entrevistas e comunicados, ou mesmo à frente das câmaras de televisão com uma sua equipa a rebocar carros a torto e a direito, a bloquear as rodas, até a esvaziar os pneus. Um prato cheio para os noticiários em geral, e o povinho adorava. Óbvio, não tanto quanto os motorizados. Até que numa entrevista à TV, das muitas que dava, de pé, exaltado, vociferando, não deu outra, tombou com um AVC e morreu frente às câmaras. Para muitos era um herói, passou a super-herói.
 Continuei assim a defender sempre a tese de que é no auge que o artista, o ator, o trapezista, o boxeur, o escritor, o bailarino, o músico, porque não o político e o locutor ou âncora, se devem retirar, sem necessariamente emigrar para a chamada ‘outra vida’. Se bem que, tendo a sorte (?) de ser de forma dramática, fica mais garantida a saudade perene.

  Há dias quando falei a uma amiga que tinha criado uma nova editora, ela disse-me: “Oh! Mário, está errado, já provou que é bom editor várias vezes, para quê, com a sua idade, voltar a trabalhar?”
  É facto que vendi a Editora Pergaminho há sete anos, uma editora que, na época, mais do que uma editorial era uma marca respeitada e de sucesso, e que vendi muito bem. Era a altura de me retirar. Mas parei? Não, meses depois criei a Vogais & Companhia, com o sucesso explosivo e prolongado de O Diário de um Banana,  que vendi um ano depois em boas condições, há cinco anos. Fui turista ativo durante três anos, no ano seguinte escrevi dois romances e dois livros de contos. Depois das férias do ano passado iniciei a ‘4Estações-Editora’ e a sua chancela editorial ‘O Castor de Papel’. Ao celebrar noventa anos. Qual a razão? Qual a lógica?
  Deveria ter-me retirado quando? Quando vendi a ‘Vogais’, a ’Pergaminho’ ou alguma das brasileiras, talvez a  ‘Fundo de Cultura’, ainda tão celebrada?
  Quero crer que voltei por duas boas razões: Primeiro, pela minha paixão pela leitura e pelos livros, desde muito novo, a partir dos meus oitos anos. Mas para acalmar essa paixão, dirão, não bastaria ir de quando em quando a uma boa livraria? Sim, é certo, isto é, seria se não houvesse uma segunda razão: do que eu gosto mesmo é de ‘criar’, sim, isso mesmo, criar,  no sentido amplo da palavra. E asseguro-lhes, nada como editarmos um livro para sentir a força do criar. Verdade é que já criei muitos jardins, dos mais variados tamanhos e usando as mais variadas plantas, o que sempre me deu muita satisfação. Já construí talvez duas dúzias de casas de campo, muito diferentes umas das outras, o que também foi um excelente exercício do criar. Assim como a partir da terra rasa criei três urbanizações.
 Nem quero falar de minhas experiências juvenis: a produção de bijuteria em madeira, um fracasso, mas mais tarde vi, com alegria, semelhantes em  vitrines parisienses; e uma pequena fábrica de perfumes, o de nome ‘55’ teve razoável sucesso, quase que ainda recordo o seu aroma (pesquei as fórmulas num livro de química, alemão, em tradução espanhola).

  Ao completar noventa anos, na festa com os meus numerosos familiares, disse umas palavrinhas que se enquadram muito bem, acho, no meu percurso de vida. Lembrei-lhes que subir a pé pela encosta de uma montanha, como tantas vezes fiz, não é um desafio fácil. As botas escorregam nas folhas apodrecidas e no limo, as pedrinhas atrapalham, tanto como troncos  quebrados e plantas espinhosas e atrevidas. As trilhas por vezes são interrompidas por rochas grandes e nem percebemos a razão, já que continuam adiante, mas é uma incerteza angustiante procurar a continuação. A respiração fica ofegante à medida que subimos e a mochila parece ter ficado mais pesada, mas temos que ficar atentos ao caminho que percorremos. Com frequência enganamo-nos e entramos  em veredas erradas, e por vezes temos dificuldades em encontrar a senda certa. Caímos, esfolamos as mãos e os joelhos, mas é preciso continuar, queremos continuar a subir, desejamos alcançar o alto da montanha, a nossa meta.
  Finalmente conseguimos pisar no cume, sentamos numa rocha, a respiração normaliza e a paisagem de que desfrutamos alegra-nos. Experimentamos uma sensação de vitória e de conquista, e serenamos. Lá em baixo, no vale, estão os que não subiram e cumprem o seu dia-a-dia. Algumas casas fumegam, as crianças a sair da escola são apenas pontos brancos das suas camisas. Dos animais a pastar ouvimos os bramidos, como música de fundo. Sentados e tranquilos, a sensação é tão boa que quase esquecemos que teremos que descer e que a descida é também difícil, pouco menos do que a subida. Mas temos que voltar para, também, irmos à nossa vidinha.
  Contudo, um bom montanhista, enquanto descansa no alto de uma montanha, além de olhar para o vale, mira ao seu arredor a admirar os cumes das outras montanhas em volta, algumas mais altas e certamente de escaladas mais difíceis. Então esquece as dificuldades da subida que acabou de vencer e prepara-se, mentalmente, para subir a que mais o desafia.
  Há sessenta anos que o meu trabalho é editar e dele tenho vivido, basicamente. Criei mais de uma dezena de editoras, felizmente com o sucesso suficiente para serem respeitadas pelos leitores, que é realmente o que me interessa, pois que só daí virão os resultados. Mas como o montanhista que de um alto de uma montanha ambiciona e propõe-se a subir outras, não ignorando nem temendo as dificuldades, decidi voltar a editar. Criei assim a ‘4Estações-Editora’  e a sua chancela editorial ‘O Castor de Papel’. Será difícil, eu sei, talvez esfole os joelhos ou erre a trilha, mas quero continuar. Hoje com mais razão, pois tenho uma companheira fiel e forte para me ajudar nesta escalada, a Ione França, a qual nos últimos vinte anos a mim se tem amparado e eu, com amor, a ela.
  Talvez seja isto que deva responder à minha amiga. Ela compreenderá, creio.

                                                   * * *

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Mário de Moura (DeMOURA) . O RAPTO DA EUROPA, NÃO POR ZEUS

  24. O RAPTO DA EUROPA, NÃO POR ZEUS
  O dia de ontem, 20 de fevereiro, foi um dia que ficará para a história como o dia de luto para a Europa, o dia de Finados para a União Europeia, o dia do réprobo geral à Alemanha e o dia da vergonha para Portugal.
   O dia de luto para a Europa, porque o presidente do Eurogrupo (o Sr. Jeroen Dijsselbloem), num momento crucial para esta instituição, se acobardou perante Berlim.
   O dia de Finados para a União Europeia, porque o Presidente da Comissão Europeia (Jean-Claude Juncker), um experimentado político, retrocedeu o seu apoio à causa grega e foi incapaz de impor a sua manifesta vontade a favor da antiausteridade na Europa.
  O dia do réprobo à Alemanha, porque o seu Ministro das Finanças (Wolfgang Schäuble) e a sua acólita (Angela Merkel) conseguiram travar um processo de repúdio aos nefastos programas de austeridade impostos a alguns países europeus, através do qual os gregos pediam apoio para programas mais sensatos e humanos.
  O dia da vergonha de Portugal, pela subjugação canina do seu incompetente Primeiro-Ministro (Coelho) ao lamber as botas do diabólico  ministro alemão.
  Como a maioria dos europeus, admirei a coragem e o destemor de Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis ao tentarem a saída da Grécia do programa dito de assistência, que na realidade é de agiotagem do capital internacional, não se negando a pagar a dívida do país, mas sim a equacionar a sua amortização para abrandar o sufoco e a miséria a que foi lançado uma boa parte do povo grego, e não só some-se Itália, Espanha, Portugal, Chipre etc.
  O certo é que a Alemanha que saiu destruída da 2ª Grande Guerra, provocada por ela, que no pós-guerra recebeu um colossal auxílio financeiro dos E.U. e de outros países europeus, tendo depois essa dívida perdoada, incrivelmente, hoje domina totalmente a dita União Europeia, económica e politicamente. Há alguma razão? Tem algum cabimento? E faz sentido que menospreze claramente os países europeus do Sul, a que chama de preguiçosos e gastadores? Quando a Itália, a França, a Grécia, a Espanha eram vigorosas culturas, que deram coesão e prestígio à Europa, a Alemanha era um país de bárbaros.
  O belo sonho da Europa unida, tão bem idealizado, está a ser torpedeado sem escrúpulos ou hesitações por quem dele devia melhor cuidar. Não estará na altura destes indesejáveis países do Sul saírem em conjunto da União Europeia e formarem a União Europeia do Sul, com a sua moeda e economia próprias? Sem o peso burocrático e dispendioso de Bruxelas. Dessa forma a importação de produtos alemães e de outros países do Norte da Europa seriam tributados, dando melhores oportunidades aos dos seus próprios países. A Europa do Sul não precisa dos carros, das cervejas e dos alfinetes alemães.
  E já não estaria na hora dos povos ‘gastadores’ do Sul começarem a boicotar os produtos alemães? Não haverá alguém que encabece esse movimento desde já?
Num século a Alemanha provocou três sangrentas guerras, e perdeu-as. Mas deixou sempre muita miséria, mortes e destruição. Atualmente está de novo a provocar miséria, mortes e destruição. Como não considerar os bairros miseráveis onde se amontoam milhões de habitantes destes países do Sul da Europa como novos campos de concentração, onde inocentes morrem de fome, de frio e de doenças, sem terem culpas, e apenas para que os capitalistas alemães enriqueçam? Que devemos à Alemanha? O Requiem de Mozart para acompanhar os nossos mortos?
  Ao que parece a cruz suástica esconde-se agora no símbolo do euro.
 Estamos agora à mercê do despeito, da crueldade e do cinismo do prepotente senhor Schäuble, como há décadas estivemos de um outro louco de bigodinho de triste memória. Não estará agora na hora de rever O Grande Ditador, de Chaplin?
 Como é possível que um ministro Alemão se atreva a ladrar que o povo grego não deveria ter eleito Tsipras? Que audácia e que desrespeito pelos outros povos! E como se não bastasse, depois da reunião de ontem, em que teimosa e cruelmente impediu que os outros países analisassem com atenção e democraticamente a proposta grega, ainda teve o atrevimento de dizer: “E agora o que é que o Sr. Tsipras vai dizer ao povo grego?”
  Como é possível que mais de duas dúzias de chefes de Estado europeus ‘soberanos’ fiquem calados perante estas incríveis afirmações?
  Não quero aqui e agora falar do Presidente da República de Portugal e das suas habituais gafes políticas, que bem contribuem para a nossa vergonha. Esperemos pacientemente que ele volte para o seu Algarve.
  Mas não posso deixar de falar da insensatez do Primeiro-Ministro (evitei dizer nosso), que não percebe que o ‘caso’ grego pode fazer toda a diferença, para melhor ou para pior, para a crise portuguesa. Penso que possivelmente ele não ganhará as próximas eleições (acredito nos portugueses), mas o que me pergunto é o que  acontecerá a ele posteriormente? Será julgado em Tribunal Criminal por tantas mortes e destruição que causou, ou simplesmente irá roçar as suas calças em Bruxelas ou numa grande empresa?
  Já disse que, para Portugal, 20 de fevereiro é o dia da vergonha pelo comportamento servil de Coelho à dupla alemã, mas não só. Mais caricato ainda, é a Ministra das Finanças de Portugal prestar-se ao papel de panfletária a favor da austeridade apresentando o país como um exemplo de sucesso do programa da troika, um desrespeito aos muitos milhares que aqui estão na miséria e desempregados, para agradar aos alemães.
  Não sei se se lembram de Fritz Lang no início da sua carreira de cineasta nos estúdios da UFA, no seu país, a Alemanha (Dr. Mabude e M de Matar)? Nos seus filmes dessa época apareciam umas figuras disformes e pérfidas que aterrorizavam as plateias. Depois ele foi para os Estados Unidos onde dirigiu belíssimos filmes, entre eles o corajoso Os Carrascos também Morrem (sobre o assassinato de crianças pelos nazis, estando estes ainda no poder,1943).  Parece que Lang deixou à solta, no seu país natal, descendentes desses monstrinhos.
  Não, não, a mítica Europa não foi raptada por Zeus, mas por Schäuble e Merkel!

   

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

LISBOA, MINHA DOCE E ESQUECIDA NAMORADA

23.  LISBOA, MINHA DOCE E ESQUECIDA NAMORADA

Depois de ter visitado Portugal pela primeira vez vinte anos após a minha saída em 1948, voltei muitas vezes durante o período de outros vinte anos em que continuei a viver no estrangeiro. Nos primeiros anos especialmente para estar com o meu pai e a minha mãe ainda vivos, que moravam sozinhos em Campo de Ourique, ou melhor dito rodeados de todos os seus filhos vivos (Isabel, a minha irmã mais velha, Rui, pouco mais velho do que eu, e Rogério, um pouco mais novo), mais um genro e duas noras, e nada menos que doze netos.
  Para mim, Campo de Ourique, para além do convívio com todos esses familiares (a maior parte dos meus sobrinhos eram-me até então desconhecidos), oferecia-me muito em termos de recordações da adolescência e da juventude. Contudo, Lisboa oferecia-me pouco mais, uma cidade sem grandes espetáculos e quase sem museus de porte, apenas o Museu de Arte Antiga (que eu revisitava muito, como quando era jovem) e o recém-inaugurado Museu da Gulbenkian, uma verdadeira pedrada no pântano. Dava umas escapadas a Mafra, à Ericeira, a Sintra e até a Coimbra.
Na minha segunda visita à terrinha, a política nacional divertia-me muito. Eu voltara a Portugal porque Salazar deixara de ser Presidente do Conselho de Ministros. Bom, não foi bem assim. Salazar havia caído de uma cadeira, parece que ao cortar os calos, há pouco mais de um ano atrás, e ficara incapacitado para governar, segundo os médicos, e não só, e Marcelo Caetano ocupara o cargo de Salazar. Mas o mais fantástico é que Salazar foi levado para o Palacete de São Bento, sua residência oficial como Presidente do Conselho de Ministros (como é sabido o Parlamento ficava praticamente no seu quintal das traseiras), e lá ficou como se ainda Presidente do Conselho de Ministros fosse. Os Ministros iam despachar com ele e, ao que se dizia, a D. Maria (essa controversa personagem) não o deixava ler jornais, ouvir rádio ou ver televisão. E assim se passaram dois anos, ele caiu da cadeira a 3 de agosto de 1968 (estava de férias) e veio a morrer em 27 de julho de 1970, pouco depois de eu voltar para o Brasil.
  Quase no final do falso mandato, um jornalista francês entrevistou Salazar e a folhas tantas diz-lhe: “Atualmente fala-se muito do Prof. Marcelo Caetano.” Salazar respondeu que Marcelo tinha sido do seu governo, mas como divergiam muito, ele demitira-o. Tem alguma coisa de Pirandelo, não tem?
  O que me surpreendia é que todas as pessoas com quem eu falava, mesmo as mais inteligentes e politizadas, acreditavam nesta farsa. Para mim é evidente que Salazar tinha consciência da sua incapacidade para estar à frente do Governo, armando esta cena de fingir que continuava como Presidente do Conselho, e devia divertir-se muito com as reuniões com os ‘seus’ Ministros. Esta manipulação foi o seu maior golpe como estadista e permitiu-lhe gozar por mais dois anos da mistificação de ser o todo-poderoso, o que muito lhe agradaria. Se ainda conseguia falar com ministros e jornalistas, como era possível alhear-se completamente das notícias do País e do mundo?
  Tive curiosidade de ir até à rua do Palacete de São Bento (uma mansão inserida em 20.000 metros quadrados de área, construída por um homem muito rico, no séc. 19, no terreno de um convento), esquina pela qual passei durante sete anos, duas ou quatro vezes por dia, quando ia ou vinha do Liceu Passos Manuel para casa) e fiquei parado a ver o movimento. De facto, chegavam carros grandes com motorista, fulanos no banco traseiro, certamente ministros, que iam como os bobos da corte alegrar Sua Majestade.
   Um guarda veio até mim e rispidamente informou-me que eu não podia ficar ali. Tive vontade de lhe perguntar se temia que eu matasse o morto, mas resolvi afastar-me rapidamente, pois conhecia a delicadeza da polícia portuguesa. Mas contente, pois assistira a mais um ato de uma ópera bufa.
  Mas, como disse, enfadava-me em Lisboa. Então, decidi ir até Madrid, que visitara por duas vezes em viagens à Europa, mas sem vir a Portugal. Lembrava-me da minha primeira viagem a Espanha, há 30 anos, tinha eu apenas 15 anos, por pura curiosidade, trajeto a pé e de boas recordações, que relatei no post 17, Maria Azeitona.
  Fui sozinho de comboio e na volta escrevi uma carta, ou lá o que é, sobre essa viagem, para uma amiga minha no Rio, que transcrevo abaixo com ligeiras alterações.

Não há queques em Madrid.

  Na era do jato resolvi, por maluquice e saudosismo viajar de comboio de Lisboa a Madrid. São seiscentos quilómetros unindo, quer dizer, separando, estas duas capitais, mas na realidade uma viagem que nos leva a um passado presente e mais do que medieval.
  Como companhia, meu amigo quase irmão, meu irmão quase amigo, eu próprio, cuidadosamente embrulhado em ideias fantasiosas de uma viagem de quando ainda garoto a uma cidadeca espanhola, e muitas saudades de uns tempos em que a escola era risonha, pois era apenas um menino, e só depois de homem mais que feito o menino sabe, tarde, como era bom aquele tempo. Enquanto a paisagem corria, ficámos conversando, discutindo o futuro que não sabemos se teremos, grandes planos, não realizáveis — mas afinal quantos dos nossos sonhos conseguimos realizar? Porém, seria a vida possível sem eles?
  A paisagem é anacrónica. Ovelhas e oliveiras, oliveiras e ovelhas, como nos tempos bíblicos. Fico a aguardar guardas pretorianos como os de filmes americanos. Mais oliveiras, ovelhas, algumas vacas, muros de pedra, casas de pedra, rochas, um ou outro cão, mais muros de pedra, oliveiras. Infelizmente poucos jumentos, que saudades do meu burrico Ginga, da quinta de Cabeda, a cadela Estrela e o meu casal de milhafres. E do seu voo sereno e soberano que eu admirava estirado naquela terra de cheiro tão gostoso como o de mulher amada (mas isto só vim a descobrir depois).
  Lá fora a colheita de azeitona está em marcha, ou talvez outra tarefa agrícola. Cestos e lonas, os putos, muitos, as mulheres de preto, curvadas, cansadas, que não acenam para o comboio de luxo, possivelmente até lhe rogam pragas. Em vez de burros, um ou outro Renault ou Fiat.
   Sete horas de muros de pedra a dividir as pequenas propriedades, velhas e retorcidas oliveiras, riachos prateados e as azedinhas pintando alegremente de amarelo ingénuo e puro o verde-escuro do pasto. Os grandes novelos de lã, como há milhares de anos, arrancam pacientemente o seu sustento deste pasto. Para mim, estas ovelhas representam uma viagem no tempo, não no espaço.
  Aqui e acolá, vergonha, grandes manchas de eucaliptos. Empurram, mais e mais, a vinha, o trigo, o pinheiro, o pasto, a oliveira. Em breve o português comerá e beberá celulose… e defecará imensos rolos de papel higiénico com os Lusíadas neles impresso.
  Há uma fronteira, assim o indica a parada, guardas e carimbos e, claro, perguntas idiotas. Para quê, se dos dois lados tudo é gente humilde vivendo de colheitas à custa de muito suor, um mundo simples, a vaca, a oliveira, o leite, a lã, a azeitona, o azeite, a mulher de preto. Ao mirá-las penso no ato sexual simples, sem sofisticação, a mente simples, o corpo quase virtuoso mas que gera todos estes desgraçados que fogem destas terras para Lisboa e para os Brasis da vida.
  Na chegada a Madrid, para minha desilusão, não há banda de música nem passadeira vermelha. Sinto-me o pó da bosta seca do cavalo de bandido de filme de cowboys. Mas afinal não é tão ruim assim. Telefono para uma amiga madrilena, que não se chama Carmen nem Dolores, pouco interessa, eu chamo-a de ‘minha flor’.
    É Páscoa. Vejo o desfile na Gran Via, muita pompa e fervor, muito roxo e dourado, mas, coitados, não conseguiriam desfilar no Segundo Grupo das Escolas de Samba do Rio. Falta requebro e pele escura e, claro, maconha e cachaça. Confronto com um desfile de Páscoa em Cuba, há muitos anos, e concluo que Disney liquidou as velhas tradições. Oh! Hollywood, como mudaste os homens em meio século, mais do que a Igreja Católica em vinte.
  Madrid, linda, limpa, imponente, ainda com resquícios do franquismo. Mas sem dúvida espetacular… porém não há queques em Madrid. Apenas churros e roscones. Se Portugal não estivesse a vender ainda e apenas os extraordinários feitos dos navegadores de há quatro séculos, poderia estar vendendo queques, pastéis de nata e papos de anjo para seus vizinhos, e não só.
  Madrid sem touradas, com sol e frio de março. O ritual do cinema às dez da noite e a ceia à meia-noite e depois tablado ou zarzuela. Felizmente também la siesta, que ninguém é de ferro.
   Visito demoradamente El Retiro. Está cheio e lindo. Fantasmagórico com centenas de árvores despidas de folhas, ramos implorando algo ao céu, e como elas me impressionam. Dá vontade de aguardar o renascer das suas folhas na primavera já próxima. E porque não? Acarinho algumas das suas árvores majestosas, aproveito o fresco das imensas copas das que mantiveram a folhagem, ensopo-me de verde abundante e do salpicado das cores de muitos canteiros em flor. Nem que seja só para visitar este maravilhoso parque, vale a pena visitar Madrid.
   No Prado vejo a jogar a  equipa completa: Ticiano, Velásquez, Goya, Zurbarán,  El  Greco,  Becerra e outros. Não descubro qual é o artilheiro, mas aposto em Goya. Porém, fico pensando como os bispos e beatas aceitavam aqueles nus voluptuosos, pecaminosos, mágicos? Autoflagelação ou alimento de sonhos proibidos?
  Depois Guernica. Pausa. É um murro no estômago bem dado por Picasso. O resto é água com açúcar. Penso em Lorca fuzilado em lugar incerto, no bombardeamento pelos aviões alemães, nas colunas de mercenários roubando e incendiando tudo quanto assaltavam, das crianças roubadas aos pais ou sem eles, assassinados. Além de uma obra de arte poderosa é um testemunho, um alerta, que fica, ficará por muitas gerações para lembrar aquele período negro, tão negro da história da Espanha e da humanidade. Obrigado, Picasso.
  Na época ainda não existiam os museus da Rainha Sofia e o Thyssem-Bornemisza. Por isso visito também o Museu de Arqueologia. Aquela vida há tantas dezenas de séculos impressiona-me tanto quanto os livros de Arthur Clarke, que me esperam lá fora, no quiosque de jornais. Para mim é uma medida muito grande, inaceitável, tantos milhões de anos para quem tem apenas escassos milhões de segundos.
  Mas é preciso voltar à terra, que não tem funcionado como tal para mim, regressar a um outro mundo, terceiro (?), não sei.
  De novo o comboio. A paisagem secular. Em terras espanholas há muitos touros a pastar. Manadas pretas movimentam-se lentamente como que para uma refrega. Que esperam aqueles touros, para que praça de touros irão ser lidados e mortos para glória e vaidade de que toureiro?
  A minha carruagem está quase vazia. Antes da fronteira, um sujeito, possivelmente africano ou boliviano, bem vestido, como os pretos em filme americano nos seriados, inclusive com grandes óculos escuros, vem até à primeira classe, estaca um pouco na entrada, inquieto, eu estou olhando os campos pela janela, ele decide-se e entra apressado na casa de banho. Filho da mãe, não me engana. Quando ele saiu fui conferir, não deu outra. No toalheiro, em baixo, lá está a coca em saquinhos, sedutora, ameaçadora, vale um dinheirão. De repente pensei em surripiá-la, mas tive medo e nem tinha sentido. Jogá-la fora pela janela? Um espírito burguês idiota não me deixou destruir o que valia tanto. Depois me achei uma besta.
  Assim que entrámos neste Portugal patusco, querido (?), nem sei, o dealer volta à casa de banho para apanhar a muamba. Levou um susto quando viu tudo remexido, sacos rasgados, o ‘pó’ descoberto. Agora ele ‘sabe’ que alguém ‘sabe’, mas não entende a jogada, pensará que foi algum curioso, não os guardas. Sai da casa de banho e fica especado no corredor a olhar para os viajantes nas suas poltronas. Tenho a certeza que ele ‘sabe’ que fui eu, o mais possível dos seis passageiros. Fico firme. Ele olha e não entende. Dá um tempo esperando que eu abra o jogo. Levanto-me, passo por ele e vou até ao bar. Tomo meia garrafa de vinho branco, o meu ‘pó’, líquido e saboroso.
  Entretanto, fico a pensar como os brancos estão sendo destruídos pelas drogas vendidas por outros brancos sem escrúpulos, pretos, mestiços, crioulos, árabes, asiáticos. Réquiem para uma raça! Os chineses vendem o seu ópio de segunda aos americanos ou aos lordes ingleses, que compram a coca ao mestiço boliviano, e a heroína aos argelinos. Bom negócio, sem necessidade de milionárias campanhas de publicidade. Repito, réquiem para a raça branca, música de Mozart, em CD de gravação japonesa e aparelho coreano.
  Finalmente o comboio está a chegar a Santa Apolónia. É o regresso a Lisboa ainda simplória, minha doce e esquecida namorada. Quando a locomotiva freia com aquele cinematográfico resfolgar, tenho a sensação que acabou uma sessão de cinema.
  Meus irmãos esperam-me na estação. Afinal sou gente. Eu que fiz centenas de viagens aéreas, de comboio e de autocarro, por tantos países, nunca alguém me acenou um lenço de adeus nas partidas, nunca alguém me abraçou nas chegadas.
Lisboa, 1970


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

22. DA BELEZA E DA VERACIDADE

 22.  DA BELEZA E DA VERACIDADE
  Um internauta tropeçou no meu blogue e depois fez reparos ao meu post do final do ano, em que publiquei um muito conhecido e belo texto, ‘Desiderata’, bem adequado à quadra natalícia. O leitor chamava-me a atenção para o facto de esse texto não ter sido gravado na pedra na velha Igreja de São Paulo, em Baltimore, em 1692 (como eu mencionei). Afirma que ‘Desiderata’ foi escrita em 1927 por Max Ehrman, um poeta, mas por ter sido divulgada por um padre levou a esse erro frequentemente cometido.
  Sinceramente, eu já sabia dessa versão, contudo não a mencionei: primeiro, por não acreditar muito nela, várias pessoas afirmam terem fotografado este texto gravado na pedra; segundo, porque é mais interessante que seja um texto com alguns séculos e gravado na pedra no interior de uma velha igreja do que um artigo publicado num jornaleco de província; terceiro, porque o que me importa é a beleza e a força da sua mensagem. Se foi X ou Y que o escreveram, no séc. 17 ou 20, pouco me importa.
  Imaginem que encontro uma bela poesia de Fernando Pessoa gravada na pedra no interior de uma velhíssima igreja alentejana, sem assinatura e datada de 1825. Entusiasmado divulgo-a acrescentando que é anónima e que tem quase cem anos. Deixa de ser menos bela se alguém a identificar como sendo do nosso maior poeta e de ter sido encontrada no célebre baú?
   Há um outro caso similar, que também vem levantando controvérsias. É um outro texto lindíssimo e que deveria ser divulgado nas escolas pela sua beleza, força e atualidade, um verdadeiro manifesto ecológico. Estou a falar da ‘Carta do Chefe índio (na realidade cacique), Seattle, ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce’, em 1854, quando este lhe propôs comprar uma grande área onde habitava a sua tribo e confiná-los a uma reserva.
 De novo a mesma questão. A carta não teria sido escrita diretamente pelo chefe índio Duwamish, de nome Seattle (as terras em questão são quase na fronteira do Canadá), ao presidente americano, mas sim por um tal Dr. Henry Smith que assistiu à reunião desse respeitado cacique com a sua tribo para discutir a oferta do presidente americano. Esse Dr. Smith ficou tão impressionado com a eloquência tão brilhante, lúcida e emocionante do cacique e com o profundo respeito que inspirava ao seu povo, para além da coragem das suas palavras, que anotou uns apontamentos, na base dos quais publicou essa ‘falsa carta’ num jornal (Seattle Sunday Star), em 1887, que daí em diante passou a ser conhecida como ‘A Carta do chefe Seattle ao Presidente dos Estados Unidos’ até aos nossos dias.
   Mas o que importa? O que vale é a beleza e a importância do texto. As palavras, sim, só podem ter sido pronunciadas por um índio genuíno, velho e sábio. A ironia, a lucidez, o amor à terra e aos animais, a coragem, explodem nestas linhas e tornam-nas perenes.
  Adiante poderão ler uma versão divulgada na década de setenta do discurso do cacique Seattle após o encarregado dos negócios indígenas do governo norte-americano ter feito a proposta de adquirir as terras da tribo Duwamish. Texto este traduzido pela equipe de ‘Floresta Brasil’, e mantido inalterável, no estilo e na ortografia, e do qual se originou 'A Carta do Chefe Seattle' numa versão mais epistolar e a que foi e é a mais divulgada.

O pronunciamento do cacique Seattle
O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande chefe assegurou-nos também de sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não precisa de nossa amizade.
Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações do ano.
Minhas palavras são como as estrelas que nunca empalidecem.
Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo, cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do homem vermelho.
O homem branco esquece a sua terra natal, quando - depois de morto - vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia - são nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos da campina, o calor que emana do corpo de um mustang, e o homem - todos pertencem à mesma família.
Portanto, quando o grande chefe de Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, ele exige muito de nós. O grande chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar em que possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, vamos considerar a tua oferta de comprar nossa terra. Mas não vai ser fácil, porque esta terra é para nós sagrada.
Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida de meu povo. O rumorejar d'água é a voz do pai de meu pai. Os rios são nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terás de dispensar aos rios a afabilidade que darias a um irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai embora, deixa para trás os túmulos de seus antepassados, e nem se importa. Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidos a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mãe - a terra - e seu irmão - o céu - como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelha ou missanga cintilante. Sua voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto.
Não sei. Nossos modos diferem dos teus. A vista de tuas cidades causa tormento aos olhos do homem vermelho. Mas talvez isto seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que de nada entende.
Não há sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o tinir das asas de um inseto. Mas talvez assim seja por ser eu um selvagem que nada compreende; o barulho parece apenas insultar os ouvidos. E que vida é aquela se um homem não pode ouvir a voz solitária do curiango ou, de noite, a conversa dos sapos em volta de um brejo? Sou um homem vermelho e nada compreendo. O índio prefere o suave sussurro do vento a sobrevoar a superfície de uma lagoa e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou recendendo a pinheiro.
O ar é precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas respiram em comum - os animais, as árvores, o homem.
O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se te vendermos nossa terra, deverás mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, adoçado com a fragrância das flores campestres.
Assim pois, vamos considerar tua oferta para comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, farei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos.
Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto milhares de bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o bisão que (nós - os índios) matamos apenas para o sustento de nossa vida.
O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, logo acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.
Deves ensinar a teus filhos que o chão debaixo de seus pés são as cinzas de nossos antepassados; para que tenham respeito ao país, conta a teus filhos que a riqueza da terra são as vidas da parentela nossa. Ensina a teus filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra - fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios.
De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará.
Os nossos filhos viram seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, envenenando seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, menos uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques sobrará, para chorar sobre os túmulos de um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.
Nem o homem branco, cujo Deus com ele passeia e conversa como amigo para amigo, pode ser isento do destino comum. Poderíamos ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver, de uma coisa sabemos que o homem branco venha, talvez, um dia descobrir: nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgues, agora, que o podes possuir do mesmo jeito como desejas possuir nossa terra; mas não podes. Ele é Deus da humanidade inteira e é igual sua piedade para com o homem vermelho e o homem branco. Esta terra é querida por ele, e causar dano à terra é cumular de desprezo o seu criador. Os brancos também vão acabar; talvez mais cedo do que todas as outras raças. Continuas poluindo a tua cama e hás de morrer uma noite, sufocado em teus próprios dejetos.
Porém, ao perecerem, vocês brilharão com fulgor, abrasados, pela força de Deus que os trouxe a este país e, por algum desígnio especial, lhes deu o domínio sobre esta terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é para nós um mistério, pois não podemos imaginar como será, quando todos os bisões forem massacrados, os cavalos bravios domados, as brenhas das florestas carregadas de odor de muita gente e a vista das velhas colinas empanada por fios que falam. Onde ficará o emaranhado da mata? Terá acabado. Onde estará a águia? Irá acabar. Restará dar adeus à andorinha e à caça; será o fim da vida e o começo da luta para sobreviver.
Compreenderíamos, talvez, se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as visões do futuro que oferece às suas mentes para que possam formar desejos para o dia de amanhã. Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós ocultos, e por serem ocultos, temos de escolher nosso próprio caminho. Se consentirmos, será para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez, possamos viver os nossos últimos dias conforme desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará vivendo nestas floresta e praias, porque nós a amamos como ama um recém-nascido o bater do coração de sua mãe.
Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueças de como era esta terra quando dela tomaste posse: E com toda a tua força o teu poder e todo o teu coração - conserva-a para teus filhos e ama-a como Deus nos ama a todos. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, esta terra é por ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.
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 Ao ler este pronunciamento do velho índio dá-me vontade de ser cineasta e fazer uma curta-metragem com base nela. O filme enfatizaria várias vezes a imagem do cacique Seattle a falar à sua numerosa tribo, uma multidão de rostos, focando de quando em quando os mais expressivos, exibiria a floresta ao fundo com as suas imponentes e seculares árvores, depois adentrava nela e explorava as frondosas copas com os seus pássaros, esquilos e outros pequenos animais, não deixaria de valorizar as altas montanhas ainda com neve, assim como rios de água cristalina precipitando-se em pequenas cascatas,  ainda uma imensa planície que servia de pasto para gazelas e veados, e no céu a majestosa águia e muitas outras aves, até borboletas a bailar caprichosamente.
   Imagino as imagens a acompanharem passo a passo as palavras corajosas do velho índio revelando as cenas que ele denuncia.
  Seria, creio, um belo e educativo documentário para passar nas escolas. Claro, uma utopia.
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